6.As razões de uma política ultramarina: dois discursos

Oliveira Salazar (12 de agosto de 1963). Marcello Caetano (5 de março de 1974).

 

O que há em comum?
A ideia de que Portugal não está à venda, as criticas às Nações Unidas, a garantia de que financeiramente a guerra no Ultramar é sustentável e ainda a consideração de que não é possível dar a independência de um dia para o outro com o mesmo argumento – ou seja, as populações das colónias não estão preparadas e os inimigos de Portugal estão à espreita.

O que se altera 11 anos depois?
Portugal não está em África para cumprir uma missão providencial, sem África o país continuará a subsistir enquanto nação independente.

Onze anos separam estes discursos. Senão vejamos, através da análise dos textos e das explicações de Adriano Moreira, professor e antigo ministro de Salazar e de Fernando Rosas, professor de História da Universidade Nova de Lisboa.

O que separa Salazar de Caetano?

 

Primeiro os discursos:

“Vamos ver se nos entendemos” (Oliveira Salazar)

Conceito de Nação e ação civilizadora

 “O conceito de Nação é inseparável, no caso português da noção de missão civilizadora”

O que é a ação civilizadora?
É aproveitar os elementos úteis das diferentes culturas, atenuar os divisionismos e rivalidades tribais, fazer com que todos participem no trabalho comum, despertar a “consciência do nacional”.

Isto é: criar uma pátria que eleve “as gentes ao nível de uma civilização superior”.

Independência de Angola e de Moçambique

Ouve-se falar, reclama-se lá fora em altos gritos a independência de Angola mas Angola é uma criação portuguesa e não existe sem Portugal

Quanto a Moçambique refere que este “só é Moçambique porque é Portugal, que o mesmo é dizer: desfeito o cimento que nos liga e que o faz parte da Nação Portuguesa, não haverá mais Moçambique nem na história nem na geografia”.

O multirracialismo português

“Já começa a ver-se que a única probabilidade de êxito dos novos Estados está em consagrar os mesmos princípios de não discriminação e ou igualdade racial que nós proclamámos e praticámos sempre.”

Salazar considera neste discurso que uma sociedade multirracial “é uma forma de vida e um estado de alma” e não uma construção jurídica, pelo que ambos só podem “manter-se apoiados numa longa tradição”.

Conceito de territórios coloniais
Salazar mais uma vez lembra a definição da Assembleia Geral das Nações Unidas, através da resolução 1541 de 15 de dezembro, sobre territórios coloniais para lembrar que nunca lhe foi feita justiça e adiantar que aqueles que reclamam a descolonização deviam, em primeiro lugar, definir o termo, uma vez que no seu entender não existe uma noção precisa “do que em fenómeno tão complexo se contenha”.

Independência
Considerando que a confusão de conceitos sobre descolonização se estende também à autodeterminação e à independência, Salazar manifesta a sua discordância daqueles que consideram que “deve dar-se a independência imediatamente e depois se verá“, como se a independência encerrasse “em si mesma todas as virtualidades”.

Adianta que há duas graves confusões:

  • Autodeterminação igual a independência e
  • Autodeterminação igual a plebiscito.

Sempre lembrando a possibilidade de abandonar as Nações Unidas, Salazar considera que os interesses vitais das populações não podem estar à mercê de conluios inter-raciais, formulas compromissórias, votos obtidos em combinações escusas, manipulados por dizeres emotivos, não inteligíveis nem responsáveis contra Portugal.

E por isso reitera que se opõe à ingerência abusiva de terceiros na vida da Nação independente e em defesa da doutrina da Carta.

Os novos imperialismos da Guerra Fria
Salazar via no continente africano o grande espaço de competição das “duas mais poderosas Nações – os Estados Unidos e a Rússia – ou de três, “pois que a China comunista fez ali a sua aparição”. Salazar deixa claro neste seu discurso que:

A Rússia…

“Está por detrás de todos os movimentos de pseudo-emancipação”

Os Estados Unidos…

  “Estão trabalhar e ajudar, com todo o seu poder, a constituir em toda a África Estados independentes, correspondentes às antigas colónias ou territórios integrados nas nações europeias”.

Isto , segundo Salazar, com o pretexto de estarem a livrar África da influência russa ou comunista.

“As duas Nações fazem uma política idêntica, embora aparentemente com fins diversos”

Salazar vê, contudo, nesta “luta contra Portugal em África que tem por palco a ONU e por agentes diretos os países africanos” apenas a repetição de outras lutas que Portugal enfrentou em outras épocas, agora por um motivo político, ou seja, a independência de todo o Ultramar. E lembra como a colonização portuguesa foi diferente:

“Historicamente Portugal não tem vivido do Ultramar mas vive para o Ultramar; o desenvolvimento de um território em que a população está fixada para viver processa-se em termos diferentes do dos territórios de pura exploração colonial, em que o colono, cumprida a sua missão, se retira com tudo o que trouxe e com tudo o que ganhou; por fim, não estando as Províncias Ultramarinas Portuguesas fechadas ao emprego de capitais estrangeiros, estes realizaram ali grandes empreendimentos, porque os capitais privados atrai-os sobretudo a estabilidade e a honestidade da administração, praticamente traduzidas na segurança dos investimentos”.

E não deixa de ressalvar que a obra seria maior “se as criticas” fossem substituídas por auxílio financeiro.

Duas ideias erradas

“Há no mundo duas ideias erradas acerca da nossa causa. Uns pretendem que acessos de nacionalismo antiportuguês irrompem da política de opressão, que é a nossa em África, como é aqui, como era em Goa, hoje já ‘libertada’ e infeliz na sua libertação (…) Mas ninguém sabe explicar como é que essa política de opressão só dá fritos de terrorismo, e muito raros e pecos, quando o fermento de interesses estrangeiros é introduzido na massa a levedar”.

“Outros cuidam que Portugal vive sobretudo do Ultramar e constituirá para ele ruína total a sua eventual perda. O embaixador da Noruega no último Conselho de Segurança que nos foi dedicado sugeriu mesmo a contribuição dos países ricos para nos indemnizar dos prejuízos e ajudar-nos a montar noutras bases a nossa vida (…) Simplesmente o Ultramar Português pode ser vítima de assaltos mas não está à venda.”

Depois de elogiar a resposta do país e o esforço dos militares, Salazar conclui:

“Diante desta lição eu entendo mesmo que não se devem chorar os mortos. Melhor: nós havemos de chorar os mortos, se os vivos os não merecerem.

 

Discurso de Marcello Caetano

Marcello Caetano propõe:

“Uma nova reflexão”

Admitindo que o problema mais grave do país é o Ultramar, e tendo em mente a intensificação das pressões internacionais, Marcello Caetano propõe uma nova reflexão e no seu discurso passa em revista as “orientações seguidas pelo governo, de acordo com o sufrágio popular e dentro das linhas traçadas na revisão constitucional de 1971”.

Pressão Internacional
Marcello Caetano adianta que o objetivo de “uma sociedade pluricontinental e multirracial está a ser perturbada pela crescente pressão internacional adversa”. Uma pressão que considera está a ser “determinada por preconceitos preconceitos ideológicos, por interesses imperialistas, por solidariedades continentais  que cada dia encontra novas maneiras para se manifestar, afastando todos os limites da razão e todas as normas da moral e do direito internacionais.”

Justificação para a guerra
Marcello Caetano considera que Portugal agiu em legítima defesa e recusa a ideia de “virar costas aos territórios ultramarinos” e fazer as malas à semelhança do que aconteceu com outras potencias europeias.

Caetano insiste que Portugal não pode deixar de …

“Proteger populações cuja vontade é permanecerem portuguesas, nem deixar de preservar uma obra de civilização erguida e mantida por obra e grande Portugal e que só com Portugal subsistirá”.

A obra civilizadora que já Salazar preconizava ao afirmar que o conceito de Nação era inseparável da noção de missão civilizadora “muito para além da exploração das riquezas naturais dos territórios achados”.

Lembra que se Portugal deixasse África todos os que lhe são leais, independentemente da sua cor ou etnia, “seriam vítimas da vingança inimiga”.

Há “uma necessidade moral de preservar vidas e bens”.

As operações militares em Angola, Moçambique e Guiné são justificadas como resultado de um processo de legítima defesa perante uma agressão que foi “preparada e desencadeada a partir de territórios estrangeiros”.

Diz Marcello Caetano que as forças militares que “servem na África portuguesa”  e que tem “cerca de metade dos seus efetivos constituídos por africanos não fazem a guerra, asseguram a paz, não dominam, não subjugam, não anexam, não conquistam, apenas vigiam e repelem quando necessário a força pela força, proporcionando aos habitantes a possibilidade de fazer normalmente a sua vida, apoiando a sua evolução e progressão social e garantindo o fomento e o progresso dos territórios.”

 “O que está em causa é a adesão das almas, não a conquista de terras ou a subjugação dos povos”.

A missão no Ultramar
A missão traçada por Marcello Caetano passa por…

“Garantir o prosseguimento e o aperfeiçoamento de sociedades onde se não pratiquem discriminações raciais, a consolidação das sociedades multirraciais, a autonomia progressiva do governo das províncias com o respetivo estado de desenvolvimento e os seus recursos próprios, participação crescente das populações nas estruturas politicas e administrativas, fomento dos territórios com ampla abertura à iniciativa, à técnica, ao capital de todos os países, sob a única condição de se proporem valorizar a terra e a gente e não explorá-las.”

Unidade Nacional
Considera Marcello Caetano que “a unidade nacional não prescinde das variedades regionais“. Numa referencia aos que criticaram o facto de a revisão constitucional de 1971 não ter ido mais longe na concessão de autonomia, o presidente do Governo considera que se avançou até “onde razoavelmente pareceu que se podia ir”. Fala mesmo de uma autonomia “ampla” que excede as faculdades dadas às federações.

E por é que Marcello mantém esta centralidade, fazendo lembrar a frase de Salazar – uma capital, um governo, uma política?

Porque considera que é necessário “manter integra a soberania do Estado una e indivisível e a supremacia do governo central” para evitar discriminações em sociedades onde convivem diferentes etnias.

Mais tempo para deixar as províncias
Marcello Caetano insiste na ideia de que precisa de tempopara potenciar o aproveitamento das riquezas naturais, a criação de infra estruturas, promover a educação, a valorização das pessoas e o trabalho.

Recusa a ideia de acelerar as soluções políticas e condena quem está sempre a questionar a solução adotada e sufragada nas eleições de 1969. Considera o chefe do governo que “discutir-se todos os dias a decisão que se executa e a execução do que se decidiu” são trunfos dados aos inimigos.

Plebiscito às populações?
Não. O chefe do Governo considera errado impor-se à aceitação das populações africanas os princípios da democracia europeia, incluindo o direito a pronunciarem-se através do voto. Considera que para povos que na sua maioria não ultrapassaram o estádio da organização tribal isso não faz sentido.

As Nações Unidas
Tal como Salazar, também Marcello Caetano critica fortemente a posição da organização por todos os anos votar uma moção preconizando o reconhecimento por Portugal da  autodeterminação e independência dos territórios portugueses em África.

Adianta mesmo que se o país decidisse fazer um plebiscito perante as Nações Unidas não teria qualquer valor porque a organização, segundo Marcello Caetano só considera legítimos os resultados “que corram ao sabor dos seus desejos”. E nesta intenção das Nações Unidas, Marcello Caetano inclui o inimigos de Portugal, “as poderosas nações imperialistas que manobram os movimentos ditos de libertação para conseguirem os seus objetivos próprios”. Reitera que estes é que são os inimigos e não “as populações locais que continuam fiéis a Portugal”.

E por isso, Marcello Caetano conclui que não há negociação possível com os grupos que apelida de “movimentos terroristas“. Porque no seu entender negociações só podem conduzir a um fim: a entrega das províncias ultramarinas.

Admite o “regresso dos terroristas à sua terra” e até a sua “reintegração na pátria portuguesa” e ainda a aceleração do processo de participação dos naturais das províncias na sua administração mas coloca de parte qualquer acordo com os movimentos independentistas.

 

Duas interpretações para os dois discursos

Adriano Moreira – Ministro do Ultramar de Oliveira Salazar de 1961 a 1963

A informação que chegava ao gabinete do ministro do Ultramar “era infernal”, era “uma coisa de morrer”. O povo não sabia ao certo o que estava a acontecer. Só algumas elites da universidade percebiam o que estava a acontecer no Ultramar.

“Compreendi a urgência de substituir o conflito de culturas não tratando com tolerância mas com respeito”.

Admite que as reformas que encetou chegaram tarde porque já havia registo de violência em Angola.

Salazar “até determinado momento nunca impediu nenhuma reforma”. Adianta que para ele “modificar-se era uma grande prova de capacidade intelectual”.

 “Foi um período de sacrifício de convicções.”

“Entre a guerra de 14 e a de 39-45 tornou-se evidente que cada nação tinha direito a ser um Estado o que significou o fim dos impérios europeus”. Assim, “verdadeiramente o que ficou  foi um império euro-mundista repartido entre Holanda, Bélgica, França, Inglaterra e Portugal”.  A guerra “foram anos de mais e recursos de menos que acabaram num acordo militar“.

Referindo-se a Salazar: “Ele até acabar viu a Europa como a tinha visto em estudante e portanto há que resistir”. Em termos pessoais era uma pessoa que “não tinha a ambição do poder e quando aceita o poder é para conservar mas sem interesse pessoal“.

Sobre a pressão das potencias internacionais refere Adriano Moreira: “A luta jurídica apenas encobria reais politicas que se queriam seguir”.

“Eu, por exemplo, pus em liberdade o Agostinho Neto do qual eu só sabia que era um bom poeta”.  Lembra: “É evidente que  as reformas que eu fiz feriram muitos interesses estabelecidos”. E quando foi chamado por Salazar ao Forte de São Julião ele disse-lhe: “As reações que eu estou a sofrer são de tal ordem que não tenho a certeza de poder continuar a ser presidente do Conselho e portanto decidi mudar de politica. Eu respondi: Vossa excelência acaba de mudar de ministro e ele responde disse-me: Eu já esperava que me dissesse isso”. “Quem era dono de concessões, de terras para culturas obrigatórias perdeu fortunas”.

Reconhece que quando saiu do governo já tinha a “impressão que estávamos a aproximar do fim“. Uma sensação partilhada por outros como o Almirante Sarmento Rodrigues o último governador branco que nomeou antes de deixar o Governo.

A atuação de Marcello Caetano “foi limitada pelas suas convicções e sobretudo porque as resistências do pais já estavam bastante gastas“.

Sobre Marcello Caetano: “Não quis voltar a Portugal. Ficou no Brasil. Foi muito respeitado”. Mas, “quando se mexesse numa coisa que ele tivesse feito, zangava-se, era de vidro”. Sobre as divergências entre os dois: “Eram birrazinhas. Eu tomei sempre isso nesse sentido”.

Fernando Rosas, professor universitário

O discurso de agosto de 1963 destinou-se a por fim à ideia de que havia possibilidade de chegar a acordo com os norte-americanos.

Com o decorrer da guerra, a noção de Imperio que Salazar transmite é diferente. No fim da guerra o que ele diz é que “perante um mundo bipolar entre os Estados Unidos e a União Soviética, a Europa só tinha possibilidade de subsistir desde que tivesse a coragem de preservar a sua retaguarda colonial”.

A cedência em Africa dá-se sobretudo seguir à crise do Suez em 1956. Salazar percebe o drama da retirada das forças europeias e lamentou o facto de “a Inglaterra e a França terem capitulado perante a questão do Suez”. A vaga das independências começa nesta altura. O Portugal salazarista não ficou totalmente sozinho no início. A França ainda mantem Argélia e o Congo até meados de 60. Depois é que “Salazar fica orgulhosamente só.”

No discurso de 63, o que “Salazar oferece aos portugueses é uma guerra interminável”.

Ainda admite um conjunto de reformas e por isso chama o Adriano Moreira para fazer algumas reformas “contra os aspetos mais escandalosos do regime colonial” mas o próprio é travado porque Salazar precisa do apoio dos colonos brancos.

As reformas do Adriano Moreira podiam fazer sentido 10 anos antes.

As outras potencias anteciparam a descolonização “cederam” a independência. Salazar tal como Caetano viria a fazer para a Guiné, recusou sempre render-se com o pretexto de que isso seria abrir um precedente. A existência de uma ditadura em Portugal prolongou a guerra.

O cansaço da guerra vai acabar por se manifestar nos oficias intermédios.

Marcello Caetano não preconiza “um puro colonialismo da política ultramarina do salazarismo”. Marcelo defende que não está em África por causa de algum tipo de missão providencial ou porque Portugal não subsiste sem as províncias ultramarinas. Marcelo Caetano defende que Portugal permanece em África porque é preciso garantir a defesa dos portugueses que estão lá.

Marcello Caetano, ao colocar a questão, neste termos também deixa perceber que se trata de uma questão negociável.

A estratégia na revisão constitucional de 71 já é um pouco essa preparar as independências brancas.

Debatia-se com um drama político emocional muito grande. Não queria ser o coveiro do Império e por outro lado tinha a consciência que a guerra não se conseguia aguentar. No entanto, nunca percebeu que já não tinha tempo.

Marcello Caetano, nos últimos três meses de governação, já era um homem sozinho.

No plano internacional a situação também só foi piorando. A autorização para a operação “Mar Verde” não ajudou.  Mesmo assim Caetano contou com da administração norte americana de Nixon, a França de De Gaulle em França e a RFA de Willy Brandt.

Qualquer solução que Marcelo Caetano encontrasse vinha fora de tempo porque iria prolongar a guerra. Só havia uma solução: negociar. E isso Marcello não queria.