2.A declaração de Spínola de 27 de julho de 1974

A caminho da descolonização

Com a queda da ditadura, começa a abrir-se o caminho para a descolonização. Porém, este seria um caminho tortuoso, repleto de conflitos políticos e, em certos casos, revestindo-se de aspetos bem violentos. Na metrópole existia uma profunda divisão relativamente à questão colonial. Embora a maioria dos partidos e movimentos políticos concordassem na necessidade pôr fim à guerra – tornou-se nesta altura famoso o slogan do MRPP “nem mais um soldado para as colónias” ou ainda “queremos os nossos filhos amanhã”–, não havia um consenso relativamente ao processo de descolonização.

As posições dos diferentes partidos:

  • Para a extrema-esquerda, como o MRPP e o PCP-ML, era urgente conceder a independência imediata aos territórios ultramarinos;
  • O PCP, de Álvaro Cunhal, tomava uma posição um pouco mais prudente, pronunciando-se a favor do início das negociações apenas com os movimentos de libertação que considerava anticolonialistas (PAIGC,  MPLA e FRELIMO);
  • O PS de Mário Soares demonstrava fortes reservas relativamente à solução federalista preconizada por António de Spínola e defendia a negociação direta das independências com os movimentos de libertação.

Depoimento de Mário Soares sobre as várias posições em Portugal em relação à descolonização.  Fonte: Arquivo Histórico da RTP, LX01002985XD.

 

Spínola presidente da República
A 15 de maio de de 1974 António de Spínola toma posse como Presidente da República. Desde logo reconhece o direito dos povos à autodeterminação e a necessidade de explorar os caminhos para a paz.

“(…)todas as possibilidades que possam conduzir à paz no Ultramar, havendo entretanto de acelerar-se ao mais elevado ritmo a regionalização das estruturas políticas dos territórios ultramarinos, com apelo à participação dos seus naturais nas atividades de gestão pública”.

Também o programa do I Governo Provisório, que integrava representantes de partidos como o PS, o PPD e o PCP, seguia a mesma linha:

  • alertava para a necessidade de as “populações residentes” nos territórios ultramarinos poderem “decidir o seu futuro no respeito pelo princípio da autodeterminação”;
  • reafirmava “a exploração de todas as vias políticas” que pudessem “conduzir à paz efectiva e duradoura no ultramar”;
  • defendia “a manutenção das operações defensivas” com vista “a salvaguardar a vida e os haveres” de todos os seus residentes.

Uma posição semelhante tinha sido defendida poucos dias antes, em Luanda, pelo Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, Francisco Costa Gomes, quando este afirmara a intenção do governo português de “continuar a lutar contra os guerrilheiros” até que estes aceitassem as exigências portuguesas de cessar-fogo e se apresentassem como partido político.

Mudanças no terreno. O caso da Guiné-Bissau.
No mesmo dia da tomada de posse do I Governo Provisório, em Dakar, as autoridades portuguesas, representadas pelo indigitado Ministro dos Negócios Estrangeiros Mário Soares, iniciavam informalmente as negociações com o PAIGC, com vista a um cessar-fogo na Guiné-Bissau.

  • A 21 de maio, num gesto de boa vontade para com o governo português, o PAIGC ordenava a suspensão temporária das suas manobras ofensivas.
  • No dia seguinte, a Assembleia Geral do MFA aprovava uma moção em que exigia ao governo português o reatamento das negociações com o PAIGC, o reconhecimento imediato da República da Guiné-Bissau e o direito à autodeterminação do povo de Cabo Verde. No entanto, esta posição não agradava a Spínola, que insistia na realização de um referendo prévio.
  • A 25 e 31 de maio as negociações realizadas em Londres acabariam por se revelar inconclusivas.

Excerto programa Independência Já! Uma História a Pretos e Brancos – Arquivo RTP

 

Mudanças no terreno. O caso de Moçambique.
A 5 de junho iniciavam-se em Lusaca as primeiras negociações entre o governo português e a FRELIMO. Tal como com as negociações com o PAIGC, a delegação portuguesa encabeçada por Mário Soares fora incumbida por Spínola de obter um cessar-fogo, não dando garantias sobre a independência do território.

A posição da FRELIMO
Só haveria cessar-fogo quando o governo português reconhecesse o direito do povo moçambicano à independência e a FRELIMO como seu legítimo representante. As negociações com este movimento de libertação acabariam por ficar suspensas até à resolução da situação na Guiné-Bissau. Ainda assim, o encontro de Lusaca ficou marcado pelo célebre abraço entre Mário Soares e o presidente da FRELIMO Samora Machel, traduzindo bem a posição do secretário-geral do PS relativamente às negociações com os movimentos de libertação.

“Os 500 Dias do Fim do Império…”
Entretanto na metrópole iam-se agudizando as divergências entre Spínola e a Comissão Coordenadora do MFA relativamente à descolonização.

No dia 8 de junho Spínola convoca uma assembleia de oficiais na Manutenção Militar a fim de decidir quem deveria conduzir este processo. Como tantas outras, a reunião começou com manifestações de confronto entre os militares presentes, sendo que alguns destes acabaram mesmo por abandonar a sala. As principais divergências relacionavam-se com a questão de Moçambique e a exigência da FRELIMO de ser reconhecida como único interlocutor nas negociações com o governo português – posição defendida pela Comissão Coordenadora do MFA mas recusada por muitos dos oficiais. Porém, a assembleia acabaria por mostrar-se decisiva por, pela primeira vez, se verificar uma posição coletiva contra a continuação da guerra colonial e a favor de um cessar-fogo imediato com os movimentos de libertação.

DECISÃO: Um cessar fogo imediato!

Iniciavam-se assim os 500 dias que iriam levar ao “Fim do Império Português”.
Decidido o cessar-fogo, como se iria realizar o processo de descolonização?

A pretensão de Spínola…
Spínola tenta fazer valer a sua posição relativamente ao processo de descolonização. Num discurso proferido em 11 de junho, por ocasião da tomada de posse dos novos governadores-gerais de Angola e Moçambique, Silvino Silvério Marques e Henrique Soares de Melo, o Presidente da República declarava o compromisso de Portugal em descolonizar os territórios ultramarinos, mas apenas a partir do momento em que a democracia ali estivesse estabelecida.

A falta de acordo do MFA…
Dois dias depois, convoca nova reunião na Manutenção Militar, onde se propunha exigir ao MFA um voto de confiança na sua pessoa, o alargamento dos seus poderes presidenciais e o seu reconhecimento como condutor do processo de descolonização. A Comissão Coordenadora do MFA denuncia a estratégia spinolista, gerando-se um aceso debate durante o qual Spínola, convencido de que havia conseguido fazer vingar a sua proposta, abandona a reunião. A fim de clarificar a situação, no dia seguinte (14 de junho) a Coordenadora pede uma audiência ao Presidente República, demonstrando que não estava disposta a ceder às suas exigências.

A falta de acordo dos movimentos de independência…
A posição de Spínola de fazer um processo de descolonização gradual, com recurso a referendos sobre a independência, gerou fortes protestos por parte dos vários movimentos de libertação. A terceira ronda de negociações com o PAIGC, iniciada em Argel pela mesma altura, terminaria assim também de forma inconclusiva.

Mudanças no terreno. O caso de Angola.
Em Angola, as negociações para o cessar-fogo revelar-se-iam ainda mais complexas. Embora em finais de maio o comandante-chefe das forças portuguesas Franco Pinheiro tivesse ordenado a suspensão de todas as operações ofensivas, era mantida a proibição da difusão da propaganda política dos três movimentos de libertação até que estes renunciassem à luta armada. O primeiro movimento a declarar tréguas foi a UNITA, a 14 de junho.

Uma posse polémica…
O novo governador-geral, o general Silvino Silvério Marques, que já havia exercido o cargo no tempo de Salazar (1962-1966), mas que recentemente se havia “convertido” à solução federalista, toma posse. Silvério Marques fora incumbido por Spínola de preparar um referendo sobre o futuro de Angola, mas a escolha revelar-se-ia polémica. A Comissão local do MFA e a esquerda angolana, que via no general um herdeiro do salazarismo e um defensor de uma solução neocolonial, moveram-lhe uma oposição política feroz (Pimenta, 2015, 160-161).

Uma posse que gera violência…
A crispação política contribuiria para um clima de crescente tensão social em Luanda, com episódios de violência racial que degenerariam em tumultos nos musseques da capital em meados de julho de 1974. Face a esta situação, a Comissão do MFA em Angola acusou Silvério Marques de inação e fez um ultimato exigindo a sua substituição. A 22 de julho, Spínola nomeou uma Junta Governativa com poderes civis e militares que seria presidida pelo almirante António Alva Rosa Coutinho. Este era o mais jovem membro da Junta de Salvação Nacional e desde cedo deixaria patente o seu alinhamento com as posições da Comissão do MFA, em Angola.

O fim da opção federalista de Spínola
A pressão da ala esquerda do MFA, na metrópole e no ultramar, fragilizava cada vez mais a posição de Spínola conduzindo à frustração das suas ambições federalistas. Para este desfecho contribuiu também o fraco apoio com que o presidente contou da parte das potências europeias e dos EUA.

Sem o apoio dos EUA…
A 19 de junho, Spínola encontrara-se com o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, na ilha Terceira, procurando convencê-lo de que a União Soviética procurava utilizar os territórios ultramarinos portugueses para fortalecer a sua posição no Atlântico Sul. Porém, Nixon estava fragilizado pelo recente caso do Watergate e a administração americana tinha outras prioridades na sua agenda internacional, pelo que o encontro se revelaria bastante infrutífero. Por outro lado, o historiador Pedro Aires Oliveira (2015, 69-70) refere que as potências europeias não tinham interesse em apoiar a solução federalista de Spínola devido aos riscos que esta comportava quanto à evolução política em Portugal e à desilusão que as experiências democráticas nos países africanos recentemente emancipados haviam provocado.

Cada vez mais isolado politicamente…

  • No dia 9 de julho, o primeiro-ministro do Governo Provisório, Adelino de Palma Carlos demitia-se na sequência do fracasso de um golpe preparado pelo próprio Spínola.
  • Uma semana depois tomava posse o novo governo, composto por vários membros da ala esquerda do MFA, incluindo Ernesto Melo Antunes e o primeiro-ministro Vasco Gonçalves (II Governo Provisório, 18 de julho de 1974- 30 de setembro de 1974).
  • No dia 27 de julho, Spínola promulgava a Lei Constitucional nº7/74, na qual era mencionado pela primeira vez que “o reconhecimento do direito à autodeterminação, com todas as suas consequências” incluía “a aceitação da independência dos territórios ultramarinos”.

Discurso do Presidente da República António de Spínola de 27 de de julho de 1974. Fonte: Arquivo da RTP, LX047969XD.

O reconhecimento do direito à independência

“(…) o momento de reconhecer às populações dos nossos territórios ultramarinos o direito de tomarem em suas mãos os próprios destinos, concretizando-se desse modo, o desenvolvimento da política de autenticidade que sempre defendemos”.
(General António de Spínola – 27 de julho de 1974)

As outras notas do discurso de 27 de julho

  • Spínola nega que os portugueses tenham tido uma vocação imperialista e considera que foi apenas a procura de uma vida melhor que motivou o povo “na demanda de novos mundos”. Distingue, no entanto, dois períodos. Um primeiro com o liberalismo, a monarquia e a I República em que, segundo Spínola, a política ultramarina estava legitimada pelo “consenso moral”e pela prática do “humanismo lusíada” e um segundo com o Estado Novo em que se passou a limitar nações “como se limitam coutadas”.
  • Spínola marca a diferença ao referir que os povos africanos “são perfeitamente capazes, por si sós, se institucionalizarem politicamente e de defenderem a sua própria liberdade”, faltando por isso apenas remover a última barreira, ou seja, o enquadramento legal da descolonização.

E para que dúvidas não houvesse sobre o momento histórico em presença esclareceu:

Mais:

  • Spínola reconheceu tratar-se de uma tarefa “complexa” mas garantiu que iria ser cumprida para Portugal poder ficar no mundo “de cabeça erguida”. Chamou-lhe uma “vitória sobre nós próprios, sobre os nossos erros, sobre as nossas contradições”. Considerou um momento histórico que o mundo ansiava: a paz na África Portuguesa .
  • Deixou ficar os votos para que a liberdade, a democracia, a multirracialidade e o progressos social fossem efetivamente uma realidade e “não apenas uma motivação explorada por terceiros”.
  • Referiu que Portugal não negaria a sua responsabilidade e continuaria a ser uma segunda Pátria.
  • Uma palavra ainda para os portugueses em África a quem garantia que nada teriam de recear e que as autoridades dos novos países honrariam “o sentido de justiça”.

A título de desabafo, Spínola aborda como foi difícil tomar a decisão que tomou. Uma decisão que chega na altura própria e cujo adiamento seria uma “flagrante negação de nós próprios”.

O fim do projeto federalista 
O projeto federalista de Spínola caía assim por terra. Ainda que o Presidente da República acalentasse durante algumas semanas a ideia de controlar o processo de descolonização em Angola (ver capítulo seguinte), este discurso constituiu um momento histórico e uma determinação irreversível quanto ao futuro do ultramar português. No dia seguinte, questionado sobre as fases da descolonização, Spínola confirma que a Guiné Bissau será o primeiro caso a ser conhecido e confirma papel nesse processo do PAIGC. Garante ainda que Portugal ficará ligado “para sempre” a todos os territórios portugueses a descolonizar.

O apoio da ONU no processo de descolonização
Cinco dias depois, o secretário-geral das Nações Unidas Kurt Waldheim chegava a Lisboa para uma visita oficial a convite do Presidente da República. Nesta ocasião, Waldheim discutiu com Spínola, Vasco Gonçalves e Mário Soares o futuro dos territórios ultramarinos portugueses e as modalidades de uma possível assistência da ONU no processo de descolonização.

Conclusões:

  • No comunicado final apresentado ao secretário-geral, o governo português comprometeu-se a respeitar as suas obrigações quanto ao capítulo XI da Carta das Nações Unidas e à resolução nº1514, relativa à “concessão de independência aos povos e territórios coloniais”.

O comunicado mencionava também as disposições do governo em relação a cada um dos territórios ultramarinos:

  • no caso da Guiné-Bissau assinalava o pronto reconhecimento da sua independência e a “transferência imediata” de poderes;
  • no caso de Cabo Verde, a cooperação com “os órgãos competentes das Nações Unidas com vista a acelerar o processo de descolonização”;
  • em relação a Moçambique, a prossecução das negociações com a FRELIMO e a aceleração do processo de independência;
  • no caso de Angola, a “intenção de estabelecer (…) contactos com os movimentos de libertação de modo a poderem iniciar-se (..) negociações formais”;
  • em relação a  São Tomé e Príncipe, o governo português comprometia-se “a aplicar as decisões das Nações Unidas” quanto à autodeterminação e independência deste território.

Estava finalmente aberto o caminho para a independência das colónias portuguesas.