A Carla tem 34 anos. É estudante de programação e uma amante de videojogos. À primeira vista, parece-nos tímida ou introvertida, com os olhos a deambular pela sala, perguntando-nos, os olhos, muitas coisas, esperando pacientemente pelas respostas. Ao mesmo tempo é como se tivesse algo em suspenso para dizer.
Sair da zona de conforto é um receio da maior parte de nós. O desconforto e os desafios deixam-nos sem chão, mas para a maior parte de nós a sensação de ansiedade pode ser só momentânea. A Carla lida com essa ansiedade todos os dias e tem-lhe ganhado todos os dias. Ou quase todos. A este sentimento tão exasperante soma-se uma depressão em estado latente. Não é uma sensação nova e também não é uma sensação resolvida. Por esta altura, parece já uma característica pessoal.
As minhas emoções são uma montanha russa. Chorar e não saber porquê. Toda a gente perguntar-me o que se passa e eu não saber (…) Estar triste é um pouco mais casual, com o tempo essa tristeza passa. Ter depressão é estar constantemente com esta dor interior, é quase como estar sempre triste. Ou se estiver a sentir-me um pouco mais leve tenho ainda essa tristeza dentro de mim.
A depressão ainda é considerada uma fraqueza superável. Encontrar a razão para este sentimento é a missão de grande parte das pessoas que rodeiam os que sentem esta doença mental por razões endógenas ou exógenas. Numa sociedade que vive obcecada pelo sucesso, pela produtividade e pelo trabalho em equipa, a não-compreensão deste sentimento limita os resultados e atrasa o avanço.
A medicação aparece como resposta para muitos dos pacientes que lidam diariamente com ansiedade e depressão. E se para alguns abdicar dela pode parecer uma missão bem cumprida com a ajuda de outros subterfúgios [recorde-se o caso do Rafael], para outros a medicação tem uma importância crucial na estabilização do quotidiano.
É mesmo necessário medicação no meu caso. O meu cérebro não produz os químicos suficientes para manter o meu estado de humor equilibrado (…) O mindfulness foi o que me fez olhar para mim própria e conseguir perceber por que reajo a estas situações, porque sou da forma que sou, aceitar-me mais e perdoar-me mais.
Para além da medicação, a Carla faz um trabalho muito pessoal que a ajuda a lidar com as crises de ansiedade. A aceitação de um estado de coisas incontrolável constitui um dos primeiros passos para controlar esta doença.
É chato quando estamos a ter um momento alegre e de repente passamos para outro extremo (…) Normalmente eu ajudo-me a mim própria. Passo muito tempo a ler, para saber tomar conta de uma forma independente (…) Também tomei a decisão de fazer terapia, ir frequentemente ao médico, ir às consultas com a psicóloga. Tive mesmo de parar e dizer para mim própria “tu estás presa num ciclo e tens de o quebrar”
Para a Carla, seria importante se desde muito cedo todas as pessoas aprendessem a lidar consigo próprias e buscassem um acompanhamento profissional que as ajudasse a superar algumas inquietações. O estigma da doença mental afasta grande parte da população do apoio psicológico que pode ser essencial na desmistificação de ansiedades ou situações limite.
As pessoas ainda escondem muito, ainda há aquela coisa de se nos abrirmos as pessoas vão falar, “lá vem a maluquinha!” (…) Há sempre aquelas piadas que não parecem ofensivas mas passado algum tempo torna-se ofensivo (…) Cada semana que eu estive hospitalizada foi uma experiência horrível. Não sinto que tenha trazido nada de bom para que me ajudasse a lidar com a depressão e a ansiedade (…) Não havia nenhum acompanhamento; era basicamente acordávamos de manhã, tomávamos banho e vestíamos, pequeno-almoço e medicação e depois o resto do tempo fazíamos o que quiséssemos. O efeito secundário da medicação que fazíamos era sonolência, por isso era muito comum ver alguém à procura de um sítio para dormir.
A ansiedade social é muitas vezes o primeiro impedimento quando se trata de participar em atividades que incluam novas pessoas. A Carla considera-se uma pessoa criativa e tem-se empenhado na construção de universos e personagens para videojogos, seres de realidades paralelas da ficção. No entanto, e apesar do seu interesse pessoal e profissional em tudo o que diga respeito a essa área, há muitos eventos nos quais acaba por não aparecer.
Às vezes há encontros temáticos na internet e eu quero muito ir só que à última da hora não vou. Não é por estar com preguiça, é por ter de lidar com as pessoas naquele contexto…assusta-me um pouco e não sei muito bem falar com elas. Tenho este medo irracional de não saber falar com elas e acabo por ficar em casa (…) Eu estou interessada na produção de videojogos e algumas pessoas eu conheço pessoalmente. Mas como não tenho nada para mostrar no campo, é mais o meu entusiasmo, acabo por me recatar e não ir.
Quando passa por aquilo a que chama “um mau bocado”, a vida para. Não consegue fazer nada; nem sequer jogar videojogos. Coisas que geralmente lhe trazem alegria – como ler ou ver um filme – ficam completamente fora de questão. Há uma espécie de paralisação total do corpo e da mente, que regressa incessantemente ao estado depressivo e a um peso no peito com os quais lida o melhor que consegue. Para a Carla, o recato e uma pausa são os melhores amigos que pode pedir em momentos como esse. Algo que nem sempre é compreendido pelos que a rodeiam. A busca de um porquê ou de uma solução tipo penso-rápido não encontram aqui uma resposta simples.
Mesmo durante as entrevistas de trabalho, há quem esconda que sofre de uma doença mental com medo de sofrer represálias antecipadas; quando a depressão não implica necessariamente com as capacidades profissionais.
Num dos trabalhos que eu tive, na entrevista perguntaram-me se eu era uma pessoa saudável e eu disse que me considerava uma pessoa saudável. Mais tarde eu tive um episódio e estava a explicar ao meu chefe que estava a sentir-me um pouco em baixo e ele acusou-me de ter mentido na entrevista. E foi um momento horrível para mim. O preconceito é tanto que começamos a ficar com o preconceito dentro de nós; será que isto são as minhas características de carácter que eu tenho de melhorar?
O momento histórico que vivemos incita-nos à rapidez, ao imediatismo, aos resultados e à ação. Há uma incompreensão generalizada em relação à doença mental porque, aparentemente, parece-nos incontrolável. No caso da Carla, aquilo que sente tem vindo a ser controlado através de terapia e de medicação, num claro interesse em superar as dificuldades que os processos químicos do seu cérebro lhe exigem.
Embora partilhemos o mesmo espaço tantas vezes, é impossível sabermos o que acontece dentro da cabeça de cada um. Obrigar o outro a reagir na mesma velocidade que nós não é razoável. Aprender a lidar com a doença mental é cada vez mais uma necessidade premente, com vista à verdadeira inclusão dos que dela padecem.
Temos de parar de dizer às pessoas com depressão para sorrirem. Para irem dar um passeio, para irem apanhar sol. De dizer “isso não é nada, o que tens é macaquinhos na cabeça” (…) Quanto mais eu não consigo expressar-me, mais as pessoas acham que eu estou a fazer birra. Mas não, estou apenas frustrada porque estou a tentar comunicar e não estou a ser ouvida.
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