O João tem 23 anos. Estudou comunicação e jornalismo e tem tanto de extrovertido quanto de interventivo. Talvez a educação académica lhe tenha acicatado o gosto pela atualidade, mas foi o que o seu caminho pessoal lhe foi dando que permitiu a confiança que hoje tem a falar sobre assuntos como o que nos juntou em entrevista.
O João é homossexual, nascido numa aldeia do Ribatejo, o Sardoal. Lá, onde o contacto das populações com a religião é tão comum, João escolhia manter-se discreto e dentro de um grupo restrito de pessoas que o compreendiam e o aceitavam.
Eu achava curioso a Bíblia. Pensava “se fosse para publicar um livro cheio de ódio, como é que esse livro chegou aos dias de hoje?”. E a verdade é que as pessoas não nascem com ódio, nascem um prato raso; e esse ódio é-lhes posto em cima. Vai o ódio, o preconceito, o nojo, a raiva, vai o medo, a incompreensão… Isso tudo são camadas que são impostas por quem cria uma pessoa. Mas uma pessoa pode pensar por si própria. Eu digo sempre que a religião é a principal culpada dos maiores males do mundo.
Na escola, assistiu à condescendência dos professores em relação a insultos que repete, para que os conheçamos, não para que os aprendamos.
Ainda hoje, em 2019, palavras como paneleiro, bicha, maricas, pé de salsa – que é o meu favorito – são termos aceites naquelas ruas. E na sala de aula os professores não faziam nada em relação a estas coisas. Ainda hoje não fazem porque são os mesmos professores de quando eu lá andava.
Ler, ver filmes e séries tornaram-se os seus refúgios enquanto viveu no Sardoal. Fugia ao ódio procurando a normalidade que esses mundos lhe garantiam que existia. Não se assumiu para o mundo; foi contando a quem lhe era próximo conforme foi sentindo essa necessidade.
Sair do armário para os outros foi uma coisa mais gradual. Não por mim, porque eu já estava aqui em Lisboa, na Universidade, mas mais por “como é que os outros se vão sentir? Coitadinhos, vão ficar tão desiludidos com o que eu faço da minha vida… que é só minha”…
Imaginava o momento de contar à mãe como algo constrangedor para ambos. Porém, a mãe acatou a notícia da sua orientação sexual como se fosse qualquer outra. Sem dramas.
Acho que com as mães é mais fácil, porque as mães só querem que os filhos sejam felizes. E se calhar as mães que não ficam felizes com o filho homossexual ou com a filha lésbica ou com o filho transexual, à partida não mereciam ser mães. Se não estão prontas para criar uma pessoa, não estão prontas para amar.
Para além da mãe, contou aos irmãos, que “sempre souberam, nunca tive de lhes dizer nada”. Em relação ao pai, o assunto nunca esteve propriamente em cima da mesa.
Sair da escola no Sardoal e ir para a ESCS, em Lisboa, foi “a melhor coisa que podia ter acontecido”. Aí encontrou finalmente pessoas de mente aberta que não lhe perguntavam o que era, mas que antes o estimulavam intelectualmente, o integravam e o deixavam ser o que quisesse.
Sou muito diferente da pessoa que entrou em 2013 na faculdade… Devo muito do que sou e do que faço àquela escola, àquela faculdade, àquele grupo de pessoas. Teria tido uma vida completamente diferente do que se nunca tivesse ido lá parar (…) À medida que os extremos crescem para um lado – e temos pessoas cada vez mais extremistas e mais estúpidas – também tens pessoas cada vez mais boas e mais puras e dispostas a dar a mão e dizer “o meu filho é gay ou a minha é lésbica e o que é que importa?”. E muitas vezes a casa começa a ser o lugar seguro.
Apesar de a homossexualidade já não ser um assunto tabu na comunicação social, a luta pela aceitação efetiva dos que têm uma orientação sexual diferente da heterossexual está longe de acabada. As leis portuguesas promovem os direitos iguais, mas a sociedade não está ainda instruída para lidar com a diferença de uma forma descontraída e despreocupada.
Já tentei esconder a minha identidade para muita coisa que eu queria alcançar. O meu primeiro estágio… É sempre uma questão de avaliação dupla. Eu tenho de entrar na entrevista de emprego e pensar “será que tu tens esse preconceito? Tenho de me esconder porque tu estás no lugar de me dar o emprego ou recusá-lo e eu sei que a tua escolha não vai ser com base no currículo mas com base naquilo que tu vês em mim?”
De há uns anos para cá, o João deixou de acreditar que esconder aquilo que é seja a melhor opção para conseguir um trabalho. Afinal, se tiver de esconder à primeira o que é, como poderá manter-se num emprego em que não o aceitem?
Precisamente porque sabe que toda a gente precisa de uma voz e de um espaço para ser o que quiser, é que criou um podcast. Achou necessário fazê-lo para quebrar com a hegemonia do homem branco e heterossexual neste género de conteúdos.
Nós vivemos numa sociedade em que ser preto, ser mulher, ser gay, ser trans, ser drag, continua a ser uma raíz e uma fonte de humor. Enquanto formos uma fonte de piadas, é porque não somos cidadãos de pleno direito.
Sobre a comunidade LGBTI+, João sublinha que o pink washing ou a utilização da comunidade pelas marcas para passar ideias de inclusão social e abertura de espírito não ajuda verdadeiramente à causa. A comunidade não quer ser um poster de campanha; antes quer ser encarada como uma comunidade que merece tanto respeito como qualquer outra. Mesmo que o próprio grupo seja permeável a uma divisão muito própria.
A Marcha do Orgulho LGBT é tão necessária. O mês do Pride é tão necessário! (…) Porque a Marcha do Orgulho LGBT significa no fundo três coisas celebrar aquilo que foi conquistado, lamentar aquilo que se perdeu e aqueles que se perderam e bater o pé por aquilo que ainda falta conquistar. E desenganem-se, que em Portugal ainda falta conquistar muita coisa. Uma delas é essa luta moral pelos valores, e ninguém quer impor ideologia de género… Nós pensamos em ideologia de igualdade.
Embora em Portugal já seja permitida a adoção e a co-adoção por casais homossexuais, assim como a Procriação Medicamente Assistida para todas as mulheres, ainda há quem considere que estas pessoas não deveriam ter filhos, alegando a necessidade de uma “família tradicional”.
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Usam sempre o mesmo argumento: uma família é um pai e uma mãe (…) Eu às vezes preferia ter tido uma mãe e uma mãe, porque a minha mãe valeu por dois! Às vezes não respondo, porque é daqueles comentários que não tem lugar no meu discurso (…) Os gays e as lésbicas deste mundo estão a criar os filhos que os heterossexuais não quiseram criar e que abandonaram!
Os mitos que ainda existem em relação às pessoas homossexuais prendem-se com a promiscuidade, o exibicionismo, até com a forma como a população em geral imagina um homem gay ou uma mulher lésbica. No caso dos homens, criticam os maneirismos e a forma de vestir e falar.
A cena dos gays serem felizes… Se calhar celebramos mais que os outros porque vivemos um período da nossa vida em que não somos honestos para com os outros. A partir do momento em que estamos confortáveis quase que queremos celebrar isso! Acho que somos felizes porque já fomos muito infelizes.
Talvez a melhor citação da entrevista com o João seja esta:
Temos de parar de dizer que ser gay é uma fase. Não é uma fase, não é uma constipação. É ótimo!