O Rafael tem 25 anos. É chef de cozinha num restaurante nas Furnas, nos Açores. As tatuagens que lhe pintam o pescoço, a cara, a careca e os braços são as mais visíveis, mas é preciso olhar com mais atenção. Os óculos escondem uns olhos que vêm dispostos a contar muitas coisas; mais até do que as tatuagens prometem. O que já é ponto de partida suficiente para percebermos que nem são elas a história maior.
Antes de se mudar para a ilha, trabalhou em restaurantes como The Insólito, no Bairro Alto, ou o Mercado Time Out, no Cais do Sodré. Desligou-se da multidão por opção. O ar cool, que ficaria tão bem enquadrado nesses novos locais da moda, é na verdade um outro caminho que escolhe quando se sente asfixiado. Tem depressão endógena com tendências esquizofrénicas, uma doença que não depende dos estímulos exteriores para se fazer notar e que pode influenciar o seu estado de espírito quando menos espera.
A primeira vez que procurou um médico foi por sugestão da mãe, depois de ter tido um ataque psicótico. O pai, que morreu quando o Rafael tinha 16 anos, tinha sido até aí o ponto de partida de tudo o que escolhia para a sua vida.
Eu sempre gostei de tatuagens, mas a minha educação foi muito rígida. Eu tinha cabelo comprido e queria fazer rastas e ele dizia que me ia pôr fora de casa se eu fizesse isso. Era uma educação não muito aberta… Ele era a única pessoa que eu aceitava que me dissesse que não (…) Ele é que ditava o humor da casa (…) Eu nunca pude saber até o meu pai morrer aquilo de que eu gostava. Eu gostava do que ele me dizia para gostar.
Com a morte do pai – que sempre tinha querido que fosse para medicina – Rafael virou as suas atenções para a matemática aplicada à economia e gestão. Pela mesma altura começou a fazer tatuagens. Mas rapidamente se apercebeu que o mundo corporate não o aceitaria facilmente.
Procurei cursos que dessem bolsas públicas e o único que dava nesse ano era o ISEG, pela EDP Renováveis (…) Os dez melhores alunos foram receber a bolsa e quem a entregava nesse ano era o Professor Eduardo Catroga (…) Quando estávamos todos a tirar a foto, ele estava atrás de mim e disse, em cima do palco, pavilhão cheio “este gajo tem um aspecto um bocado esquisito”.
As saídas profissionais de um curso do género estariam sempre relacionadas com instituições bancárias, seguradoras, empresas financeiras, espaços que muito provavelmente olhariam para a figura do Rafael com alguma estranheza. O atendimento ao público então estaria fora de questão, já para não falar nos comentários que decerto teria de suportar. Mas esta necessidade de esconder alguém com tal “aspeto” tem mais a ver com questões culturais do que com incapacidade.
A primeira vez que fui a Amesterdão foi ainda antes do Euro, pré-2000, quando ainda se tinha de fazer câmbio. E a pessoa que estava a trabalhar no banco tinha tatuagens e tinha um mohowak verde, lembro-me perfeitamente (…) Aqui em Portugal não vejo isso a acontecer nunca mesmo!
Por cá, dedicou-se então à cozinha, porque “sabia que era o único meio em que ninguém se ia importar com o meu aspeto”. Teve entrevistas de trabalho em que lhe foi pedido que entregasse registo criminal (quando o mesmo não acontecia com os colegas). No dia-a-dia, é frequentemente alvo de olhares invasivos, que incomodam.
Ninguém me trata muito mal, ninguém é rude comigo. Mas olham sempre de lado. Olham e falam… E eu costumo sempre dizer: “A maneira como vocês olham para mim é muito mais agressiva do que qualquer tatuagem que eu tenha na minha cara”.
No caso, o facto de Rafael ter uma depressão endógena com tendências esquizofrénicas pode até ser ponto de partida para mal entendidos.
As pessoas nem imaginam o que vai dentro da minha cabeça (…) Quando estou num espaço mais negativo ou mais psicótico é complicado lidar com esses olhares. Às vezes aqui dentro [na cabeça] pensa-se em coisas muito absurdas…
São as tatuagens que chamam a atenção das pessoas para Rafael. Seja no autocarro, no centro comercial ou à mesa do chef nos restaurantes com cozinha aberta, nunca está completamente à vontade. Pouco tempo depois de se mudar para uma casa nova, por exemplo, teve uma visita da polícia, que recebera uma queixa: tinha sido apontado como traficante de droga. Porquê? Por nada.
A culpa não é das pessoas. É os preconceitos em que a sociedade vive. A pessoa não pensa que eu trafico droga; ela pensa na ideia de que uma pessoa com tatuagens na cara vende droga.
Não são sequer as drogas que o ajudam a superar seja o que for. Pelo menos não essas… Mas nem as prescritas faziam grande diferença (positiva) na sua vida.
Decidiu deixar de tomar a medicação para a depressão porque não sentia que alguma vez o tivesse ajudado. Deixavam-no lento, com a visão em túnel.
Eu tomava muitos comprimidos mesmo. Ansiolíticos, antipsicóticos, para o apetite… e adormece muito a mente (…) Eu tomava Xanax, risperidonas e assim. Há pessoas que tomam isso e conseguem ter um dia normal; eu não. Eu pareço uma múmia!
Lidar com a medicação e aprender a conviver com os efeitos dela é um processo interno mas que nem por isso consegue fugir ao estigma que a sociedade tem com a doença mental. Não raras vezes, quando chegava a hora de tomar os comprimidos, Rafael sentia o olhar inquisidor dos que o rodeavam, muitos com opiniões sobre os efeitos da medicação e soluções mágicas para resolver a depressão que sentia.
O antidepressivo é o único medicamento que eu conheço em que as pessoas comentam sobre o seu efeito. Sem terem qualquer conhecimento sobre que é que o medicamento faz!
As propostas passavam por ir dar uma volta, beber um copo, sair de casa. Uma pancadinha nas costas resolvendo uma questão de saúde que continua a ser encarada como uma escolha, o que revolta aqueles que só queriam passar pelos pingos da chuva da forma mais natural possível e que, em vez disso, nunca sabem como vão acordar no dia seguinte.
Os ataques psicóticos do Rafael não são, logicamente, elemento comum a todas as pessoas deprimidas. A esquizofrenia que lhe foi diagnosticada, aliás, assusta ainda mais as pessoas. Confirma que há uma ideia generalizada de que todas as pessoas esquizofrénicas são violentas e perigosas, que veem coisas e que de um momento para o outro “vão desatar a esfaquear pessoas”. Explica até que são muito mais as vezes em que procuram o isolamento numa sala, por puro medo de que algum monstro vá sair de um canto escuro do que a vontade de agredir alguém.
Por isso, nos dias piores, quando só apetece fugir para o meio do mato para gritar, Rafael vai tatuar.
Suportar a dor ajuda a lidar com os problemas.
Nunca tentou esconder as tatuagens que ia fazendo. Por isso é que é fácil vê-las a espreitar por fora da camisa, por baixo do gorro. Estão nas maçãs do rosto e nas têmporas, nos nós dos dedos, no peito e no pescoço. Não o irrita que lhe perguntem o que significam, mas dispensava os olhares ostensivos; sobretudo quando param a olhar-lhe diretamente para a cara.
Vivemos numa época em que se tornou até comum ver chefs de cozinha tatuados. Os mais célebres são encarados pelo lado cool, considerados “fora da caixa”. Mas para os outros, como o Rafael, a associação das tatuagens ao vandalismo, ao banditismo e até à falta de inteligência continua a ser o mais habitual.
Eu não sou burro por ter decidido fazer tatuagens na cara. Simplesmente não me importo com isso! Quando a agulha entra na derme não vão sair neurónios pelos buracos na pele. Não vou ser menos inteligente por causa disso. Sou igual.
A relação das tatuagens com a depressão endógena é na verdade uma espécie de catarse que encontrou para si próprio. Elas ajudam-no a superar os dias maus, mais do que servem de bandeira para um estilo de vida apontado por uma sociedade como “marginal”. A doença mental, que vive por baixo dos desenhos na pele, é o que mais angustia o Rafael. Ainda é grande o estigma em relação à depressão, que não se vê mas que devia ser levada tão a sério como qualquer outra doença.
Gostava que houvesse nisso uma grande mudança. Seja uma depressão que seja exógena, que é temporária e que acontece agora por causa de um evento muito traumático, seja uma depressão que é para a vida inteira que nasceu já com a pessoa… Acho que ia facilitar imenso a vida de quem se sente assim procurar ajuda.