A Joana tem 39 anos. É filósofa de profissão, guru do Twitter, curiosa, conversadora e amante de cães. É voluntária na Uppa Animais, tem tatuagens e gosta de se vestir de preto, embora pinte o cabelo de cores inesperadas.
Aparentemente, a Joana é dessas pessoas que estão sempre bem dispostas. Inequivocamente, a Joana não parece a idade que tem. E talvez estas duas características estejam também associadas àquilo que quis partilhar: a Joana é gorda.
Há uma certa injustiça em escrevê-lo de forma tão seca. Porque a Joana não está dentro dos cânones de gordo que a sociedade aprende a desrespeitar sem pudor. Não tem uma obesidade mórbida, não se movimenta com dificuldade. Não há desconforto em nós que a olhamos. Mas na cabeça dela, embora reconciliada com a questão, ainda existe essa imagem.
Eu fui sempre a gorda da turma. E era a gorda da turma que tinha boas notas. Dois problemas já, não é? (…) Nós quando somos miúdos não temos tanta capacidade para lidar com isso, estamos a descobrir-nos, é muita hormona, muita pressão dos grupos (…) Até é muito fácil metermos na nossa cabeça, porque os outros dizem, “como és gorda não tens hipótese. Primeiro vais ter de falar com ele, para ele perceber que és inteligente… e isso demora imenso tempo”.
A ideia de que uma pessoa com excesso de peso precisa de compensar essa falha com capacidade intelectual está bem enraizada. Para quem se sente gordo e para quem aponta o dedo a quem tem excesso de peso, as relações amorosas são um desafio, só ultrapassado em dificuldade pela escolha de roupa nas lojas de pronto-a-vestir.
Há umas centenas de anos o ideal de mulher era uma mulher roliça, com carnes, mulheres fartas… E a moda criou aqui uma pressão para que isso deixasse de ser assim (…) Eu ia às lojas normais, como toda a gente vai, via uma calças e perguntava “tem o 42/44?” e a resposta era “Ai, nós não temos números grandes”… E a pessoa sente que é uma baleia!
Neste assunto, Joana tem sorte. A mãe costureira sempre a ajudou a criar roupas à medida, não só do seu tamanho mas também da sua personalidade. Nas tais lojas de números grandes a roupa não potencia a autoestima, já que lembra “sacos de batatas” e se foca sobretudo em disfarçar o corpo. O desconforto esconde-se, mas a fraca noção de si mesmo fica sempre lá. Mesmo quando se perde alguns quilos.
Há um ano, estava com o peso no limite, tive de fazer uma adaptação e perdi 18 quilos (…) Fui a uma loja e disse à senhora “estou à procura de L ou de um XL” e a senhora respondeu-me que um M estava bom. E aquilo caiu-me… Nós estamos tão habituados a vestir aquele tamanho e a estarmos reconciliados com aquele tamanho que mesmo perdendo peso continuamos a achar que somos gordos e que vestimos o tamanho de antigamente…
Sempre que sente que está a resvalar para um peso que não considera saudável, Joana pede ajuda. Fez exames que a ajudaram a perceber algumas coisas sobre a sua saúde e sobre o seu traiçoeiro sistema endócrino, que incentiva uma relação muito oscilante com o peso. E em nada tem a ver com a preguiça ou com a falta de cuidado associadas a este género de fisionomia.
Há, aliás, muitos outros motivos para o excesso de peso. Questões de saúde física (como o hipotiroidismo ou medicações específicas) ou mental (como uma depressão) mais ou menos controláveis podem ser o ponto de origem do que vemos. É a consciência de cada um sobre o seu peso que deve balizar uma tomada de ação acerca disso. Procurar o equilíbrio, sem olhar ao julgamento, é essencial.
A comida muitas vezes é uma forma de nós ultrapassarmos outras necessidades. Quando estamos num período de stresse é muito comum as pessoas refugiarem-se na comida; como o chocolate (…) Tem de se avaliar que tipo de vida é que a pessoa tem e se ela está confortável com isso (…) Há pessoas saudáveis que têm peso a mais.
Não é a comida, no entanto, que faz diferença na vida da Joana. É como se não correspondesse ao ideal do gordo...
Em Portugal, as refeições são muito associadas ao social, combinamos tudo sobre a forma de um almoço ou de um jantar… E eu às vezes tenho de dizer que não, porque depois o central daquilo é o comer e eu sei que não vou comer coisas que gosto. Sei que isto parece mal, mas eu não sinto grande prazer em comer.
A ideia pré-concebida do gordo desenha-o com obesidade mórbida, talvez com fracas noções de higiene e, sobretudo, pouco amor próprio. Mas a mesma avaliação não contorna aqueles que têm excesso de peso por razões de saúde ou até porque, ainda estando dentro dos padrões saudáveis, preferem ver-se maiores. O simples desejo de serem assim é muitas vezes incompreensível para a maioria da população.
Gordo. O adjetivo é tornado arma de arremesso, que magoa e insulta. O gordo que é dito com carinho em casa é soco velado na rua, nas conversas que se escondem.
Temos de parar de dizer às pessoas gordas que a culpa é delas. Pode não ser… e muitas vezes não é.