O Isaac tem 22 anos. É fotógrafo, amante de cães, viciado em cigarros e charutos, feminista, ativista e transexual. À nascença, os órgãos genitais femininos assinalavam no documento de identificação o género feminino. Aos cinco anos questionava-se por que tardava tanto crescer-lhe um pénis, comparando-se com os outros colegas rapazes. Foi a avó quem lhe explicou que isso não iria acontecer.
Eu não percebi que havia qualquer coisa errada. Simplesmente as pessoas começavam a tratar-me no género feminino e eu ficava… “não, é masculino”.
Depois da conversa com a avó, que sempre o apoiou, Isaac estabeleceu uma meta para uma mudança de vida. Teria de esperar até aos 18 anos para começar um tratamento hormonal que permitisse a transição para o género masculino. Uma decisão que, embora fosse inquestionável, não foi de fácil aceitação para os pais, que lhe pediram que fizesse as coisas com calma. Não era uma oposição que os fazia hesitar, senão uma preocupação com o bem-estar do Isaac, potenciada pelo choque de terem de refazer todas as ideias delineadas para um filho que nascera menina.
Disseram que não era algo em que nunca tivessem pensado, que estavam cá para mim e que não iam deixar de gostar de mim pelo que eu na verdade sou. O facto de eu ter feito o meu coming out para os meus pais e o facto de eu me ter tornado na pessoa que eu realmente sou ajudou imenso a uma relação familiar. Porque é sempre estranho e constrangedor estar frente-a-frente com alguém e não podermos mostrar o nosso verdadeiro eu.
A disforia de género acompanhou-o sempre mas era quando lhe pediam que se comportasse “mais como uma menina” que se sentia sufocar. Que se sentasse como uma, que falasse como uma, que fizesse a depilação… Como comportar-se como uma coisa que não era? E, sendo, por que não deixar que as meninas se comportassem de outra maneira?
Na escola primária, jogava à bola, brincava com carros, participava, no fundo, naquilo que a sociedade relaciona com o comportamento masculino e as atividades de rapaz. Nunca exigiu um tratamento no masculino até terminar o secundário. Só quando entrou na faculdade se sentiu finalmente à-vontade para assumir terminantemente a identidade com que sempre se identificara.
Numa escola secundária as pessoas conseguem ser bastante cruéis (…) Cheguei ao IADE, contei o meu processo e eles foram 100% supportive, tornaram-se numa segunda família para mim. Isso ajudou-me bastante e empoderou-me bastante.
Até lá, Isaac teve de lidar com todas as transformações físicas comuns. Para seu infortúnio, foi uma criança que se desenvolveu cedo e que, demasiado consciente da sua identidade de género, criava até falaciosas imagens sobre si mesmo para justificar algumas mudanças.
[Com oito, nove anos] a minha inocência e ingenuidade eram tantas que eu achava que me estavam a crescer peitorais. E quando os “pesos mortos”, como eu lhes chamo, as mamas [cresceram] eu comecei a fazer binding.
O binding consiste no ato de constringir as mamas mediante o uso de tecidos como ligaduras ou camisolas especiais de neoprene, com o intuito de achatar o peito e torná-lo o mais liso possível, para que não se perceba qualquer volume.
Usou ligaduras durante uma década, o que resultou em danos musculares e ósseos irreversíveis. Fosse que estação do ano fosse, por baixo de qualquer camisola Isaac usava ligaduras que lhe apertavam o tronco e as mamas e que viriam a causar urticárias muito graves na pele. Hoje, três anos depois de ter feito uma mastectomia, continua a ter de se lembrar de corrigir a postura.
Outra coisa que incomoda bastante são as ancas. Isso deixou tantas marcas psicológicas em mim que dois anos depois de estar em testosterona eu continuava a sentir que tinha ancas. Quando era mentira: eu tinha passado de um 31 de homem para um 29. Não há mais pequeno que isso!
Isaac foi um caso rápido no Serviço Nacional de Saúde. Depois de pedir os dois pareceres médicos que permitem tanto a mudança de nome como o início do tratamento, as mudanças físicas chegaram rápido e o corpo que conhecia começou então a mudar para o corpo que sempre tinha associado à sua identidade de género e até à sua personalidade.
O regresso ao ambiente de balneário (desta vez masculino) aconteceu apenas depois da mastectomia… e foi afinal muito mais fácil do que estava à espera. As leis preveem a limitação da prática de atividades desportivas de competição a todos os transexuais, devido aos níveis elevados de hormonas. Doze anos de basquete ficaram assim para trás, mas nesta nova vida os prognósticos fazem-se com otimismo.
Não houve uma única vez, mesmo em balneário, que eu sentisse que alguém estava a olhar para as minhas cicatrizes. Ou se olhavam era mesmo cagativo!
Só este último verão se sentiu totalmente confiante para tirar a camisola em público; e nada teve a ver com as cicatrizes que tem no peito – que dessas tem orgulho. Foi a ideia de si próprio que teve de alterar, de deixar de procurar defeitos e resquícios do corpo que tinha.
Hoje em dia, a palavra transexualidade foi abolida e a psicologia mantém apenas a designação de transgénero. Desde que a identidade de género de uma pessoa não bata certo com o seu corpo, e não sendo exigido qualquer processo cirúrgico ou hormonal, estamos pois perante uma pessoa transgénero.
A lei que tanta conversa gerou em 2018 sugeriu a abertura para a mudança de género e de nome no Cartão do Cidadão em Portugal a partir dos 16 anos, o que, explica Isaac, nada tem que ver com o tratamento hormonal ou operações. Para fazer essas mudanças no registo é necessário um parecer médico. De qualquer “médico ou psicólogo que ateste a capacidade de decisão informada para as pessoas menores de 18 anos”, de acordo com o site da República Portuguesa.
Por outro lado, para um processo de transição de terapia hormonal ou redesignação sexual a pessoa terá de consultar uma nova lista de médicos que estão distribuídos sensivelmente por três hospitais: Santa Maria, Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (Hospital Júlio de Matos) e Hospital Magalhães Lemos.
Para desmistificar a coisa, ninguém fica internado [no Hospital Júlio de Matos]. Basta uma pessoa deslocar-se a uma consulta externa, levar já um parecer médico, que pode obter em algumas associações LGBT que têm serviço de acompanhamento psicológico, como a ILGA Portugal.
É comum para as pessoas transgénero verem-se a braços com questões relacionadas com a sua genitália. Para a sociedade, a alteração do sexo é muitas vezes encarada como o compromisso final de uma pessoa com a sua nova identidade de género. Sem operação ao sexo, a mudança não está “finalizada”; quando isso não tem de ser a preocupação central de quem não se identifica com o sexo com que nasceu.
A sociedade tende a não compreender que a genitália das pessoas trans é privada como a de qualquer outra…
A necessidade de humanizar o SNS para casos de pessoas trans está na base das preocupações de Isaac como ativista, mas também à educação falta dar alguns passos essenciais. As ações de sensibilização em relação a pessoas LGBTI não estão incluídas nas aulas de educação sexual e nem preveem uma exploração e ponderação capazes da sexualidade de cada um.
A minha opinião é que há uma forte negligência a nível institucional e escolar para minimizar bullying face às pessoas LGBTI.
É preciso distinguir identidade sexual e identidade de género quando falamos destas questões. No caso, para o Isaac, a sua sexualidade nunca esteve em questão. Apoia a exploração sexual de cada um, mas assume-se como heterossexual.
A minha orientação sexual nunca foi questionada por mim nem pelos outros. No entanto a orientação sexual de pessoas que estão com pessoas trans é.
Isaac namora com uma rapariga cis – ou seja, não transexual – heterossexual que se apaixonou por ele ainda quando o tratamento hormonal estava só no início. Isso, no entanto, não elimina o facto de Isaac ter sido sempre o homem que é; mesmo que o corpo não o acompanhasse. As dúvidas dos que os questionam assentam, no fundo, na relação sexual per si que estas pessoas possam ter ou não de acordo com o que é expectável.
Para ele, é óbvio que há muitas pessoas que nunca sentiram a necessidade de questionar o prazer sexual para além do que se pode fazer com um pénis ou uma vagina.
Porque as pessoas quando não se deparam com questões de identidade de género ou identidade sexual não exploram a sua sexualidade e ficam tão focadas no falocentrismo (…) Quando as coisas não são bem assim as pessoas questionam. Ao ponto de as pessoas perguntarem à minha namorada “como é que vocês fodem?” ou “Isaac, quanto é que a tua pila vai medir?”
A normalização das pessoas trans ainda está longe de ser uma realidade. A curiosidade mórbida e não construtiva, o medo e o desapego da sociedade em relação à identidade de género impedem o desenvolvimento da personalidade de quem nasceu com o corpo desfasado daquilo que o cérebro lhes conta sobre si. É preciso desassociar a transsexualidade do trabalho sexual e da bizarria. Sobretudo, é preciso…
Parar de associar a transexualidade a uma coisa negra e obscura. Não é. São pessoas normais que têm sonhos e objetivos, famílias e sentimentos. Não vão chover picaretas.