A Estela tem 52 anos. No início dos anos 90 escolheu a Áustria como segundo país, por amor. Mudou-se para Salzburgo com três línguas na bagagem, presentes da sua ocupação enquanto guia turística. Com os 24 anos que tinha, levava consigo abertura de espírito e zero hesitações.
Estela mudava-se, no entanto, para uma Áustria conservadora, ainda fora da União Europeia, com políticas de direita e gentes que criavam um fosso entre os locais e os estrangeiros.
A situação era muito parecida com aquilo que eu vejo agora. Com pessoas a afastarem-se de tudo o que fosse estrangeiro (…) Mas haver pessoas a corrigirem o meu alemão, a perguntarem de onde é que eu era como se tivessem direito a todo o tipo de informação e a distinguirem o que eles eram de mim foi um choque.
A desconfiança que sentia no tom de quem a interrogava não tinha a ver com curiosidade, senão com uma completa demarcação cultural de quem chegava de novo. Seria de esperar que um país tão fustigado pela derrota na II Guerra Mundial se tivesse tornado mais inclusivo, mas era como se a Áustria não tivesse vivido a guerra em primeira mão. A discriminação existia por culpa do medo, potenciado pelos partidos que iam subindo na hierarquia política. Um pouco como assistimos no tempo em que vivemos…
As pessoas não tinham interesse em saber porque é que eu lá estava. Vi-me em situações desagradáveis de ter que me distinguir de outros estrangeiros. Demorei a perceber que estava a fazer o jogo da discriminação dizendo “eu não sou da Turquia, eu não sou da Jugoslávia…” Para eles não era importante saber de onde é que tu eras.
Não ser “dali” era fator decisivo para redesenhar uma conversa. O racismo não era um assunto desconhecido, mas para a Estela foi inesperado. Mesmo que o seu alemão tivesse melhorado, o aspeto que tinha deixava sempre algumas dúvidas e desintegrava-a de uma sociedade que sempre tinha sido ponto de encontro de culturas. Afinal, estamos a falar do centro da Europa.
Eu não podia alugar uma casa (…) Os anúncios de jornal diziam “não se aluga a estrangeiros” ou então “só para austríacos” e isso era uma coisa normal, não era considerado discriminatório. Hoje em dia isso não acontece, mas eles procuram ouvir como é que tu falas. Há estratégias novas para aquilo que o politicamente correto foi alterando.
Mesmo para arranjar emprego teve de superar alguns obstáculos. Quando concorreu para trabalhar na bilheteira do maior evento cultural do país – eventos que primam pela convergência de artistas de vários países – Estela ficou de fora por não ser austríaca. Chegou a escrever uma carta para os jornais; a resposta justificava limitações políticas e de leis.
Na altura as coisas estavam como agora acontece em muitos países: sem autorização de estadia não tens autorização de trabalho, sem autorização de trabalho não tens autorização de estadia.
Em 1994, a Áustria entrou finalmente na União Europeia, alterando-se alguns termos legais. Só que as vivências permaneceram mais ou menos na mesma. A multiculturalidade daquele país não facilitou a tolerância; tal como acontece em Portugal.
Não é uma questão de História. É uma questão de educação e de medo (…) Os refugiados, os estrangeiros no geral são considerados um perigo… ninguém sabe porquê (…) E o país continua a lidar com isso alimentando esse medo. Que é um medo que não é real mas que ajuda muito as pessoas que não querem pensar, que têm receios, que têm medo de perder uma determinada posição…
Estela chegou a ter a hipótese de pedir a nacionalidade austríaca, mas recusou. Para isso teria de perder a nacionalidade portuguesa. Embora tivesse vivido por lá 25 anos – meia vida – sempre acreditou que não era o sítio de onde vinha que deveria fazer mudar as mentalidades de quem cruzava o seu caminho com intenções descabidas.
De onde eu venho, onde eu nasci, que religião possa professar ou que opção sexual tenho não tem nada a ver com aquilo que as pessoas possam usar contra mim (…) Ninguém é responsável por ter nascido aqui ou ali.
Curiosamente, da mesma forma que sofria com os olhares e indagações dos austríacos, viu-se também envolvida em situações de defesa de outros estrangeiros que, de uma forma ou de outra, pareciam já mais habituadas a comportamentos discriminatórios, que toleravam em silêncio. Como se fosse uma inevitabilidade.
É a passividade das pessoas que a inquieta. Considera que os conceitos de bem e mal, certo e errado, estão enraizados em qualquer um e que assistir a uma injustiça sem querer intervir é só uma forma de compactuar com o medo.
Vagas migratórias sempre houve, pessoas de várias cores e credos sempre houve… Não aconteceu nada de novo. Mas a atitude das pessoas para com isso também não é nova. É como se não aprendessem (…) O tipo de vocabulário está a repetir-se…
Hoje, a comunidade de emigrantes portugueses na Áustria mudou muito. Mas a forma de receber quaisquer estrangeiros, para Estela, devia pautar-se pela ideia de inclusão e não te integração. A primeira porque prevê a diferença, a segunda porque exige o desaparecimento da cultura própria.
Esse mito de que “ai eles vêm para aqui e não se adaptam!”. Nem têm que o fazer! As pessoas têm de respeitar regras e leis de convivência, mas não temos de fazer tudo igual…
Para esta portuguesa, é pela diferença, também, que conseguimos chegar àquilo que somos. Criar comunidades fechadas, até entre emigrantes, não promove a conversação entre pessoas diferentes. E mesmo o assumir dos próprios preconceitos pode potenciar uma mudança positiva no que construímos para nós; mas é o que fazemos com essa noção que nos diferencia.
A discriminação é um ato, não é um preconceito (…) As pessoas podem pensar o que quiserem mas têm de ter cuidado a agir. E o respeito pelo outro exige esse cuidado.