Jorge Silva Melo revela-se em auto-retrato, num filme que percorre meio século de memórias, projetos e encontros
« Sou eu que escrevo esta carta, como se fosse uma carta, sim, sou eu. Não tanto para falar de mim, mas do que me prometeram, daquilo que perdi, daquilo que consegui continuar. Prometeram-me um mundo de linhas simples, cresci quando se fazia, ao lado da minha escola, o edifício das Águas Livres de Nuno Teotónio Pereira, Portugal saía do português-suave que se sobrepôs ao modernismo. O mundo que imaginei meu seria assim, simples, sem enfeites. Foi o que me prometeram tantos dos que vieram antes de mim. Visito aqui os locais – nem todos – que me disseram seriam os da minha vida. Que foi feita por outros que a desenharam. Em Lisboa, ou em Paris, onde trabalhei e onde me sinto em casa. Ou Roma onde não cheguei a instalar-me. Lembro muita gente que me contou o mundo – mas nem todos. É uma carta. Ou… É um auto-retrato (auto-filme? auto-golo) comigo de costas: para que quem veja, veja o que eu vejo. Aquilo que vejo (vi, verei) será aquilo que sou? Mas é uma carta, é a ti que quero contar, a ti, rapaz que quiseste ser ator.
Uma deambulação por meio século, sim, uma carta talvez. Viagens pela minha vida, podia chamar-lhe eu, que tanto gosto de Garrett. Um traveling como ele gostaria, uma história solta, memórias, projetos, encontros. Também porque, desde 1995, tenho feito vários retratos de artistas (Palolo, Bravo, Lapa, Skapinakis, Bartolomeu, Ângelo, Sena, Ana Vieira e preparo Sofia Areal e Fernando Lemos), comecei a pensar que é isso a minha vida, estes encontros, ver, ouvir, cortar, mostrar, provocar. Quero, com este filme continuar a mostrar o que vejo.
Transcrevo, de um artigo que escrevi para o Diário de Notícias: Quando, novinho, olhei para o espelho, hei-de ter percebido que não era pelo sex-appeal que havia de seduzir os outros. Não foi por isso que desesperei. Ou que desisti de seduzir. Aos cinco anos, tratou-me da asma em Madrid um médico extraordinário, (…) D. Gregorio Marañon. E há-de ter sido por essa altura que a mim próprio disse: velho, isso mesmo, velho é isso o que eu quero ser. E não é que isso seja difícil, pois todos os dias o consigo: ser mais velho. Com todas as características que se atribuem a essa categoria desde sempre em vias de extinção: caturra, vigilante, embirrento, resmungão, quezilento, complicado, solitário, memória de elefante, injusto, parcial, citação pronta e anedota ilustrativa para qualquer caso da vida, colhendo as tempestades dos ventos que em novo semeei, com má fama e desleixado no vestir ou na barba por fazer. Mauzinho.
Assim escondo (ou penso suplantar) a juvenil graça que me faltou, o músculo tenso, e deixo a barriga crescer ao sabor dos doces da casa que em qualquer cidade do mundo, Sevilha, Berlim, Lisboa, acabo sempre por descobrir com todo o colesterol possível. Vivo sozinho e desarrumado, procurar um livro, encontrar uma cassete é um quebra-cabeças nesta casa grande onde moro, perto do Rato e do Marquês. Os meus amigos têm a chave de minha casa, e há chaves espalhadas de Cracóvia a Antuérpia, Berlim, Paris, Cacilhas, Estocolmo, Madrid. Ou no escritório. (…) Gosto de conversar e mais ainda gosto de desconversar. Gosto de passear. Sozinho mas também com outros mas não com muita gente. Um dia hei-de voltar a Roma. (…) Não tenho gato mas talvez um dia me decida, que é de gatos que eu gosto, de os olhar e à sua majestade. Porque gostava de ser lembrado como alguém que, como os gatos, se passeou. Um “flâneur”. E gostava de escrever com a independência do Garrett. O Garrett das Viagens, também passeante. Passeante pela vida, como os gatos. Mas a envelhecer embirrento, como os homens.
Será parecido com isto este filme? Assim o tentarei, passeando. » Jorge Silva Melo