Uma viagem intensa pelo passado e pelo futuro do Bairro S. João de Deus, um documento vivo da história recente da cidade do Porto, num documentário de Pedro Neves
Um dia, quase tudo se transformou num monte de escombros e mato. Restaram fantasmas que vagueiam entre os campos, as ruínas e o nevoeiro. Alguns desses fantasmas estão vivos. São gente que ficou, gente que volta, gente que deambula pelas memórias difíceis daquele que foi o mais maldito bairro da cidade. Só que este Tarrafal, o nome do campo de morte lenta da ditadura salazarista, não fica em Cabo Verde, mas sim em Portugal.
Pedro Neves, realizador nascido em Leiria mas radicado no Porto, procura introduzir-se na vida das pessoas que ali habitam para viver com elas as suas esperanças e frustrações. Vê-se um rasto de ruínas que convoca as memórias sobre a identidade do bairro, mesmo que a sua decadência social e humana tenha sido demasiado devastadora. Nesse aspeto, há um ponto comum das conversas, das músicas e mesmo das práticas que são retratadas: a heroína, essa droga destruidora de toda a estrutura coletiva.
Exibido num esgotado Grande Auditório Rivoli, durante o festival de cinema Porto Post Doc, ‘Tarrafal’ começa com imagens da RTP captadas durante uma intervenção da polícia, e daí viaja para o silêncio da atualidade, onde acompanhamos uma figura misteriosa de tronco nu a cavalo entre a vegetação rasteira. Passa depois para os destroços e ruínas deixados pela destruição camarária de 2008, antes de cair num cântico cigano e logo a seguir numa cena de intimidade absoluta: pai e filha visitam o bairro desaparecido da zona da Campanhã, e ele explica à criança como e onde cresceu naquela existência que ela desconhece, agora invisível.
O filme torna-se envolvente pelas suas técnicas de aproximação às pessoas, deixando-as fazer parte da história: é um filme também delas, do seu imaginário. Há, nesse gesto, um sopro de vida, uma vontade de descobrir um futuro, porque estas pessoas não vão desaparecer, nem mesmo estes espaços urbanos onde é difícil encontrar esse futuro.