Dramaturgia de Nuno Carinhas e Pedro Sobrado a partir do auto de Gil Vicente, numa produção do Teatro Nacional de São João que revelou Leonor Salgueiro.
Maratona de vida ou morte no tempo-recorde de uma hora, o espetáculo criado por Nuno Carinhas parte de um dos autos menos representados de Gil Vicente, o dramaturgo de que não nos chegou um único retrato, mas que tinha mil caras, como um arraial.
Alma revela-nos talvez a sua face mais hierática e lírica, conjugando duas metáforas maiores da imagética religiosa: peregrinação e refeição. No epicentro, disputada pelo Anjo e pelo Diabo, uma singular personagem vicentina, uma Alma, carácter individual e alegoria de toda a espécie humana, luta contra o tempo e faz um trajeto de provação, mudança, descoberta. – “Oh, andai! Quem vos detém?”
«A ‘Alma’ viaja no corpo de mulher jovem que vai ser iniciada à vida, à mercê do desconhecido, encorajada pelo Anjo e tentada pelo Diabo, até chegar à pousada que é a Igreja. Uma peça escrita há 500 anos pode ser mais pertinente que outra escrita hoje. Vicente não passa de moda, como qualquer dramaturgo universal, ainda hoje nos interpela com argúcia. Nas peças dele estão raízes de uma portugalidade reconhecível que importa partilhar.» Nuno Carinhas
Ao contrário das Barcas, onde Vicente erige um monumental teatro post mortem, Alma propõe um pequeno teatro da vida humana, encenando-a como viagem, com os seus avanços e recuos, obstáculos e desvios.
Com uma dramaturgia que é também um excurso por lugares pouco frequentados da nossa literatura – Vitorino Nemésio, Guerra Junqueiro e Teixeira de Pascoaes, Alma é um espetáculo plasticamente intenso, que perfaz um arco que vai do ritual sagrado à festa profana.