“Que bom, aqui os animais andam à solta. É lindo ver os cavalos e as vacas em liberdade.”
“Acha que sim? Pois eu digo-lhe que esta liberdade, muitas vezes, parece mais um castigo.”
“A liberdade um castigo?”
Nunca tinha pensado na liberdade como um castigo.
Ele explicou. Durante o inverno, o verde topo da serra cobre-se de neve e grande parte dos cavalos e vacas que costumam andar à solta, sem dono à vista, continuam por sua conta. Passam fome, sucumbem ao frio. “E às vezes nem é preciso chegar o inverno: uma noite destas, cinco cavalos foram atacados por lobos. Esta ideia moderna de a liberdade ser uma coisa muito ecológica é uma estupidez. Antigamente, aqui, os animais eram vitais para a sobrevivência das pessoas e elas cuidavam-nos. Recolhiam-nos à noite, davam-lhes de comer no inverno. Agora que todos partiram e que não lhes dá jeito vir cá acima cuidá-los, vêm com a conversa de que a natureza resolve tudo. É mentira. Eu, que estou aqui o ano todo, bem vejo o que sofrem.”
Dono de um restaurante de referência para caminhantes e caçadores, Fernando Gonçalves é o único habitante permanente de Santo António de Vale de Poldros, no cume da serra da Peneda, Alto Minho, a 1.200 metros de altitude. A aldeia, abandonada, tem algumas casas de veraneio que permanecem fechadas grande parte do tempo. E depois tem cardenhas. Cardenhas são abrigos de pedra construídos pelos pastores de outrora. A um conjunto de cardenhas chama-se branda. A branda de Vale de Poldros é uma das maiores do Alto Minho. Um património etnográfico, histórico e cultural extraordinário que noutro país mais amigo das suas heranças e tradições poderia ser um qualificado destino turístico.
No que às cardenhas diz respeito, na ausência de qualquer tipo de proteção patrimonial, o abandono tem sido a salvação. Se mais gente quisesse fixar-se ou visitar a longínqua, a poética aldeia de Vale de Poldros, provavelmente já teriam desaparecido todas.
Triste ironia. Para os animais, a liberdade é um castigo. Para a branda de Vale de Poldros, o abandono tem sido o garante da preservação da sua genuinidade. Tenho, temos visto muito disto ao longo dos quase quatro anos de Visita Guiada por todo o país: o esquecimento pode salvar…