Retrato biográfico assumido em que a inclusão dos dois realizadores – João Pedro Fonseca e Pedro Cabeleira -, pinta uma forma exterior de observar o mundo e a artista visual Alice Joana Gonçalves, ditando também como o próprio meio artístico se olha a si mesmo.
Parte I – Passado
João Pedro Fonseca:
Uma narrativa do passado conta-se através das imagens e dos arquivos que em tempos pertenceram a um momento e hoje é uma memória. Nesta abordagem à vida passada da Alice conta-se uma história labiríntica entre as mais variadas formas e abordagens, tanto do foro dos registos concretos como do reino das sensações – juntos formam uma abordagem singular onde a mistura de fragmentos temporais dão corpo à consciência da artista.
Entre processos de colagem digital, vídeos, sons, registos de performances, etc., nasce um compasso de tempo que marca as ideias e monta uma interpretação pessoal da artista. Esta interpretação ramifica-se para um conflito entre um diferente espaço e tempo – o passado e o presente.
Todo o espaço onde a Alice se desenvolveu como performer está exclusivamente registado num percurso onde hoje já não é possível aceder, esse acesso só pode ser gerado através da construção de um imaginário baseado nos documentos e arquivos – é nesse limbo entre a construção de um imaginário e as questões presentes que se irá construir uma espécie de máquina do tempo que nos permite viajar às memórias e assim construir uma identidade única sobre um olhar singular.
Parte II – Presente
Pedro Cabeleira:
O trabalho da Alice faz-me lembrar uma ocupação do sentir. Não reconheço o seu trabalho como algo susceptível à interpretação, mas algo muito mais ligado ao momento e ao sentir. Interessa-me trabalhar o presente neste projecto precisamente por essa ligação tão estreita entre o momento e a sensação. Ao falar com ela percebi que as suas referências não entravam no campo do intelectual, mas no campo do sensorial. “São coisas do dia-a-dia”, explicava-me ela sobre o seu processo.
A beleza e o encanto do dia-a-dia, do quotidiano e do mundano, é algo que tenho vindo a tentar decifrar com o meu trabalho e continua a ser para mim um dos mais belos desafios em filmar o que seja. A minha intenção foi precisamente entrar em simbiose com o processo criativo da Alice e com uma estrutura que se vai construindo, não ao abrigo da lógica, mas da intuição e do quotidiano.
É precisamente nessa justaposição entre o espaço de ensaio, o espectáculo e o quotidiano que baseio esta ideia do presente. Um presente justaposto entre várias sensações que dão origem ao seu resultado final, que avançam em metamorfose de uma coisa até a outra, até chegarmos ao tal momento que falo quando assistimos a um espetáculo seu.
Tudo isso tem as ambições de um olhar deslumbrado, um olhar mais orgânico, que assume um visual mais homevideo para poder ter liberdade absoluta sobre a minha própria criação. O facto de filmar de uma forma mais intimista permite-me trabalhar de uma maneira simples e em bruto este seu lado de procura pelo resultado final, permite-me procurar, desde o mais pequeno gesto ao mais pequeno olhar, aquilo que depois se vai transformando no objecto.
Também este registo permite uma extensa flexibilidade e encaixe a qualquer improvisação que vá decorrendo ao longo do processo e a uma uniformização de tudo, procurando manter sempre na mesma experiência todas as fases que levam ao presente, porque através da conversa com a Alice, foi precisamente isso que me transpareceu, todos os pedaços interessam, sem grande explicação ou análise por trás disso, para a construção do todo que depois nos é apresentado.
Depois de ter registado, encapsulado estes momentos, foi com base no trabalho de montagem, em tom de fluxo de consciência, em que uma sensação leva a um gesto, ou um objecto se traduz num corpo – algo que apenas poderá ser explorado de uma forma intuitiva – que o filme entra em simbiose com a própria performance a que vamos assistir.
Através de sobreposições, de um trabalho de montagem livre, imersivo, que o filme deixa entrar não só na ideia de processo, mas acima de tudo, que deixe entrar no presente, e que seja uma experiência, em que a beleza dos corpos e a intensidade do som e da música das performances de Alice sejam vividas como se tivéssemos ao mesmo tempo no palco e dentro da sua cabeça.
Parte III – Futuro
Alice Joana Gonçalves:
Utilizo o vídeo como a ferramenta de estudo sobre o próprio processo criativo, e em tom making off, observo e reflito sobre o próprio método e universo criativo construindo um pensamento quase filosófico, mas pessoal, sobre a maneira como vivemos esta realidade, que ficicionamos, ocultamos, recortamos, filtramos, justapomos, para configurarmos o nosso “destino“ e o nosso sentido do “eu”.
‘I Am the Queen of The Horses’, é uma IMAGEM de mim própria que repito milhões de vezes e que projeto no futuro. Uma jovem mulher artista que cavalga um lindo cavalo selvagem e em que ela própria se sente um cavalo – livre nas ideias, mas questionando e desconfiando da sua forma de estar e ser, ajustando-se esforçadamente pela imagem de si própria.
I’m the girl of the horses
I’m a beautiful horse
I’m the queen of the horses
What is it that unravels when reason falls asleep and the instincts command us irresistibly?
I look and I see just silence replacing the people
in that moment when all my deep feelings
…I open my legs and sit on the horse riding.