Márcia apresenta-se como “artesã de canções”.

Talvez poucos se lembrem. Talvez muitos não saibam. As primeiras vezes que ouvimos a voz de Márcia, em disco ou em concerto, foi a bordo de um grupo de dança à moda antiga. Era dela a voz de candura nostálgica que se ouvia nos temas da canção ligeira e romântica com que o Real Combo Lisbonense encenava um regresso a uma época em que a música portuguesa revelava tiques tímidos de twist, yé-yé e rock’n’roll. Canções que, à época da sua criação original, eram banda sonora para dançar e ser adolescente num país que tentava enganar (por umas horas) os muros altos que se erguiam à sua volta. Em 2008, quando João Paulo Feliciano montou o Real Combo Lisbonense, era só a nostalgia dessa música, como que libertando-se de um tempo que já não existe, que se ouvia Márcia interpretar em “Sensatez” ou “O Fado É Bom para Xuxú”.

É mais ou menos aqui que começa a parte mais visível desta história. Márcia já tinha passado pela típica primeira experiência juvenil nos palcos da música com a banda Ana’s Blame. Foi com esse projecto que participou na colectânea Bandas de Garagem, em 2001; foi na sequência dessa gravação que apareceram os primeiros convites para se juntar ao catálogo de multinacionais que não demoraram a identificar um talento em bruto que precisava apenas de meia oportunidade para se manifestar; e foi a todas essas propostas que Márcia fechou a porta, consciente de que as canções que tinha começado a rabiscar não eram carne para canhão, não eram simples mercadoria para aumentar a facturação anual.

Resguardou-se, era ainda tempo de crescer, foi para o Hot Clube estudar em 2002, tirou o curso de Pintura e só quando João Paulo Feliciano descobriu a sua voz (ela que era amiga da filha do músico e artista plástico) numa maqueta soube que tinha chegado a altura de sair da sombra e convidou-a para o Real Combo Lisbonense e a editora Pataca Discos.

Com eles pôde pisar os palcos dividindo a atenção e não sofrendo com os holofotes (que a deixavam a arder de vergonha quando se apresentava em palco sozinha com a guitarra).
Estreou-se em nome próprio em 2009 com um EP de cinco temas chamado apenas “Márcia”, publicado pela Optimus Discos, já depois de ter participado com a versão original d’ “A Pele Que Há em Mim” na colectânea “Novos Talentos FNAC” do mesmo ano. 

E é, de facto, uma questão de pele. Voltando a ouvir essa canção em estado virginal, num tom confessional, de quem acabou de acordar para um novo dia ainda a processar emocionalmente os acontecimentos da véspera, os pés ainda mal fora da cama, essa capacidade de Márcia se meter debaixo da pele de quem ouve e agitar os cordelinhos das emoções é tão flagrante que não há como ter defesas para o seu canto e o encantamento que produz. É dessa simplicidade de se meter por atalhos, de não complicar canções que são tão garbosas que não precisam de disfarces alguns, que vem muito do seu poder de sedução.

“Dá”, o primeiro álbum, lançado em 2010 pela Pataca Discos de João Paulo Feliciano, tornou-se num pequeno fenómeno de popularidade, com Luís Nunes (então Walter Benjamin, hoje transformado em Benjamim) responsável pela produção.

Sem trair a sua natureza de cantora discreta e fazedora de canções fundadas na delicadeza, a certeira mão pop de Luís Nunes puxava por um cenário musical em que Márcia já não soava frágil nem indefesa. Era o ponto de partida ideal para que a sua escrita parecesse em definitivo universal.

Perante a popularidade da voz e da canção que lhe dava corpo, a Warner apressa-se a contratar a cantora e no ano seguinte reedita “Dá” com um precioso acrescento. A Pele que Há em Mim deixava de ser um tema esquecido no final do EP de estreia e regressava num tocante dueto com JP Simões.

Antes ainda de se aventurar na gravação do segundo álbum, Márcia teria três encontros fundamentais: com o guitarrista Filipe Cunha Monteiro, que a acompanha desde então; com a fadista Ana Moura, para quem escreveria o tema Até ao Verão, afirmando a sua marca autoral; e com o escritor de canções Samuel Úria, ao lado de quem aparecia no dueto Eu Seguro, do álbum “O Grande Medo do Pequeno Mundo”, de Úria.

Na verdade, os dois tinham-se já conhecido em 2009, quando Úria a empurrou para o palco, ajudando-a a superar as inseguranças. Esse momento seria recuperado por Márcia na forma de Menina, um dos singles de “Casulo” (2013), tema partilhado com Úria e que, em conjunto com Deixa-me Ir, abria uma janela com vista para todo o tom do álbum: uma mulher a libertar-se de amarras e de medos, a não deixar que o mundo lá fora ganhasse poder sobre a sua vida íntima.

Márcia voltou aos discos em nome próprio em 2015. Para agitar as águas, chamou para a cadeira de produtor o músico brasileiro Dadi Carvalho, homem ligado aos Tribalistas e às carreiras de Caetano Veloso e Marisa Monte, entre muitos outros. Apaixonado pela verdade que detectava nas canções de Márcia, Dadi ajudou a colorir “Quarto Crescente” (2015), disco apresentado pelos singles “A Insatisfação” e “Bom Destino”, e abrilhantado por um novo e abençoado dueto com o músico paulista Criolo, em “Linha de Ferro”.

Feito de memórias e de fantasmas com os quais Márcia lida no interior das canções, “Quarto Crescente” é o exemplo perfeito desta forma de construir canções como se fosse uma artesã. Não há em si nada de industrial ou de escrita fácil e de mera reprodução de fórmulas ganhas. Há antes o respeito por cada tema e um investimento tão pessoal e cuidado que se torna impossível não nos sentirmos íntimos dela e não nos convencermos que partilhamos consigo os nossos dias. Como só acontece com os maiores escritores de canções.

Por isso não é de estranhar que tenha escolhido compor e dar voz ao tema que traz ao Festival da Canção.

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