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Marcas de Batom

Texto e locução: Isilda Sanches | Sonoplastia: Gualter Santos

No livro Lipstick Traces, Marcas de Batom, na tradução portuguesa, uma Bíblia do jornalismo musical, Greil Marcus une os os pontos que dão dimensão político-filosófica ao punk, colocando-o em continuidade com outros movimentos disruptivos como o Dadaísmo ou o Situacionismo.

Neste artigo, peço emprestado o titulo de Greil Marcus para tentar perceber de que maneira o punk foi também um veiculo de emancipação, uma expressão da vontade e poder femininos.

Não que o punk tenha sido o primeiro género a revelar miúdas com atitude e vontade de romper as normas. Nos anos 60 mulheres como Grace Slick já desafiavam clichés, distanciando-se da pop delicodoce, da soul pingo de mel ou da folk flower power, tipicamente reservadas às vozes femininas, para cantar sobre drogas e guerra em canções como “White Rabbit“. Pouco antes do punk, no início dos anos 70, a fantástica Betty Davis, ex modelo, ex-namorada de Sly Stone e Jimmi Hendrix, além de mulher de Miles Davis, mostrava presença e atitude bastante arrojadas em canções como “If I’m In Luck I Might Get Picked Up Tonight“, de 1973, a história de uma mulher que sai à noite à procura de companhia.

Falar de rock psicadélico e funk num contexto punk até pode parecer despropositado, mas ajuda no enquadramento. Mais importante do que respeitarem as regras de estilo, as mulheres no punk aproveitaram para as questionar, desafiando de forma consistente um meio dominado pela testosterona. Até ao punk, salvo exceções como as citadas, e outras como Moe Tucker, baterista dos Velvet Underground, às mulheres parecia estar reservado o papel de groupies, no máximo o de cantoras sensuais que um negócio montando por homens tinha desenhado à medida dos seus desejos. No entanto, não deixa de ser irónico que uma das mulheres mais famosas do punk seja Nancy Spungen, cujo maior feito para esta história foi ter sido namorada de Sid Vicious, alegadamente morta por ele…

Nancy Spungen, tal como a ideia do punk, tinha vindo da America. Malcolm McLaren tinha visto os New York Dolls e sido manager deles durante algum tempo, conviveu com a cena de Nova Iorque quando figuras como Richard Hell começavam a fazer-se notar (diz-se que a ideia dos alfinetes de ama foi roubada a Hell que os usava porque tinha de facto camisas rasgadas e tentava assim impedir que se desintegrassem completamente). Patti Smith começava também a ganhar protagonismo com uma postura invulgarmente forte. Patti Smith cantava a gloria dos desalinhados travestida de jovem Rimbaud, um ícone sem prisões de nenhum género. Hoje em dia, Patti Smith faz questão de dizer que nunca foi de facto punk, mas os livros de história costumam escrever outra coisa. Musicalmente, o seu território é rock, demasiado bem tocado para ser comparado à dissonância pueril do punk. Patti Smith não vestia o uniforme do punk e nem sequer usava batom, mas ajudou a lançar as sementes de uma revolução em que toda a gente, homens e mulheres, abusou da maquilhagem ( consta mesmo que era um assunto de conversa recorrente entre os punks, fator de choque mais do que ferramenta de sedução). Nesse aspeto o batom era uma espécie de símbolo de unificação e igualdade. A Patti Smith interessavam mais a palavra e o significado. Horses, o álbum de estreia saiu um 1975.

 

Quando o punk rebentou oficialmente em Inglaterra, em 1976, 77, não havia muitas mulheres no movimento, pelo menos com protagonismo. Chrissie Hynde, outra americana a viver em Londres, escrevia para o NME e trabalhava de vez em quando com Vivienne Westwood e Malcolm McLaren na boutique Sex, a loja de roupa que ditou as regras de vestuário do punk e servia de epicentro do fenómeno. Chrissie Hynde seria uma figura fundamental na cena mas nessa altura ainda nem tinha formado os Pretenders. De qualquer modo, os concertos dos Sex Pistols tiveram um efeito infeccioso e muitas mulheres sentiram urgência em fazer o mesmo que eles.

Siouxsie Sioux que fazia parte do chamado “contingente de Bromley”, o gang de seguidores dos Sex Pistols que acompanhava a banda para todo o lado, até programas de televisão, foi das primeiras a chegar-se à frente. Siousxie já tinha uma imagem forte, vagamente inspirada no Laranja Mecânica de Kubrick, mas ainda não era a Diva gótica em que viria a tornar-se mais tarde. No universo punk, Siouxsie Sioux era uma espécie de pin up, com o seu ar de Dominatrix. O impacto era tremendo quando subia ao palco com uma banda só de homens. Curiosamente, tiveram bastante dificuldade em conseguir contrato de gravação. “Hong Kong Garden” foi o primeiro single, em 1978, mas Siouxsie and the Banshees já tocavam ao vivo há uns anos.

 

Tal como Siouxsie Sioux, também as Slits foram pioneiras na cena. As Slits foram a primeira banda punk exclusivamente constituída por raparigas. Tinham uma energia primordial contagiante, crua e catártica, gritavam e tocavam de forma aparentemente caótica mas encontravam sempre o ritmo e tornavam-se imparáveis. Formaram-se depois de um concerto dos Sex Pistols e fizeram primeiras partes dos Clash. Foram das primeiras bandas do punk a interessar-se por reggae e dub e ajudaram o género a passar para outro nível e tornar-se mais complexo e ambicioso. Como na época toda a gente fazia versões, as Slits também fizeram algumas de clássicos reggae como “Police and Thieves” de Junior Murvin, ou de “Heard It Through the Grapevine” de Marvin Gaye, o clássico soul a que deram tratamento punk-funk-reggae. Dennis Bovell, produtor jamaicano, produziu Cut, o primeiro álbum da banda, editado em 1979. Ari Up, Viv Albertine e Tessa Pollitt aparecem na capa quase nuas, apenas com trapos presos à cintura com cordéis, cabelos desgrenhados, cobertas de lama… pareciam amazonas saídas dos confins da selva. Lá dentro canções como “Spend, Spend, Spend”, “Shoplifting”, ou “Typical Girls”.

 

Ainda que permaneçam um nome relativamente obscuro, as Slits merecem letras bem gordas na história da musica popular do séc. XX. Não só porque musicalmente foram destemidas e fizeram algo de muito próprio e bastante novo, mas porque inspiraram muitas miúdas a seguir o seu exemplo. A portuguesa Ana da Silva, a viver em Londres, foi uma dessas jovens mulheres inspiradas a pegar numa guitarra e subir ao palco. Ana e Gina Birch formaram as Raincoats em 1977, o nome assim escolhido supostamente porque Ari Up das Slits usava muitas vezes gabardine (raincoat) em palco e isso tinha muito impacto. A primeira versão ainda teve contributo de vários músicos do sexo masculino mas em 1978 adotaram um line up exclusivamente de raparigas. São também um dos nomes que ajudou o punk a crescer e tornar-se outras coisas. John Lydon, ex Johnny Rotten, era fã, Kurt Cobain citava as Raincoats como uma das suas bandas de eleição e ouvindo canções como “Fairytale In The Supermaket”, o single de estreia (reeditado agora a propósito do Record Store Day), percebe-se o porquê do buzz (o videoclipe é recente).

 

O punk no feminino teve desde logo uma expressão política muito vincada. Não era só sobre “No Future”, “Fuck The System” e “Do-It-Yourself”, era também sobre combater estereótipos de género, imagens de marca do sexo feminino, era sobre emancipação, capitalismo, consumo… Poly Styrene, uma rapariga de 18 anos com aparelho nos dentes que dava cara pelos X Ray Spex, levantou todas essas questões. Os X Ray Spex foram uma das primeiras bandas do punk londrino e tinham saxofone, coisa invulgar, quiçá influencia da fase final dos Stooges, mais tarde vista em bandas como James Chance and The Contortions, um dos nomes centrais da no wave novaiorquina (movimento fundamental na libertação do punk dos constrangimentos rock originais). ” Bondage, up Yours!” , o primeiro single dos X Ray Spex, saiu em 1977. A saxofonista, Lora Logic, tinha apenas 15 anos, não ficou muito tempo na banda porque tinha obrigações escolares, a vocalista, Marion Elliot, Poly Styrene, mal tinha feito 18 anos. Marion tinha estudado opera mas subvertia toda essa escola em gritos estridentes com palavras de ordem acutilantes sobre a escravidão da sociedade moderna, capitalismo, consumo e sexualidade. Poly Styrene, que escolheu o nome porque lhe lembrava plástico e uma estrela pop era de plástico, foi uma das figuras femininas mais libertadoras e inspiradoras do punk, também uma das mais abertamente políticas.

 

Voltemos aos Estados Unidos para falar de Lydia Lunch, uma das figuras mais carismáticas do underground novaiorquino de final dos anos 70, emergiu na cena em 1977 com os Teenage Jesus and The Jerks (banda que também tinha James Chance que depois formaria os já citados Contortions). Mais tarde, Lydia trabalharia com toda a gente importante do pós punk, Sonic Youth, Nick Cave, Einsturzende Neubauten, Jim Thirlwell/Clint Ruin/Foetus…Lydia Lunch, poeta, actriz, escritora, pensadora, agitadora, feminista, iconoclasta, tem influência transversal. Nicolas Jaar, produtor de musica eletrónica, é um dos fãs confessos e um dos principais financiadores de um documentário sobre ela, atualmente em fase de produção através de uma campanha kickstarter. Através da editora Other People, Jaar está também a reeditar material antigo, como o disco de spoken word Conspiracy of Women (1990).

 

Lydia Lunch com a sua guitarra lancinante, voz e raciocínio aguçados e ar poderoso e abertamente sexual, era uma das mulheres mais intimidantes do punk. Poderíamos dizer algo semelhante a propósito da alemã Nina Hagen, que estava em Londres quando o punk rebentou, viu concertos de Sex Pistols e Slits e, no regresso à Alemanha, aplicou o que aprendeu, tornando-se num icone de poder feminino. Apesar da imagem e da atitude, o som de Nina Hagen sempre foi mais rock, hard rock, do que punk, mas até teve flirts com reggae. Blondie, aquela a que alguns chamaram a “Barbie do punk”, talvez por ser demasiado bonita para os standards do movimento, também aparece muitas vezes misturada com a cena e teve flirts com todos os géneros, do reggae ao Disco. Certamente foi exemplo de afirmação feminina, mas o normal é arrumar Blondie na new wave, para os mais ortodoxos, a versão limpinha do punk.

 

Na Alemanha também houve uma new wave, mas era convictamente suja e tendia para o apocalipse. Chamou-se neue deustche welle à fervilhante cena pos punk alemã, onde germinaram bandas como os lendários Einsturzende Neubauten ou as X Mal Deutschland, na primeira formação, um quinteto só de mulheres. O primeiro single, “Schwarze Welt”,  saiu em 1981. Mais tarde, como outras bandas punk, derivaram para o gótico, mas na fase inicial eram mais punk funk.

 

Os estilhaços do punk chegaram a todo o lado. Até ao Brasil. As Mercenárias eram um quarteto de São Paulo só de mulheres. Poucos, fora do Brasil, sabiam da sua existência até a editora britânica Soul Jazz ter lançado, em 2005, uma coletânea com material gravado entre 1982 e 1985, entre o punk mais urgente e as derivações funk do pós punk. Uma perspetiva brasileira do som que chegava de Londres, Manchester ou Nova Iorque.

 

Em Nova Iorque, no Bronx, está outro dos nomes incontornáveis nesta história de mulheres e musica: as ESG, uma das referências máximas do pós punk. A história das ESG é tudo menos comum e, ao contrário de quase todo o punk, nasce de uma vontade materna de proteção. Renee, Valerie e Mary Scroggins são 3 irmãs a quem a mãe comprou instrumentos musicais para se entreterem dentro de casa em vez de andarem na rua expostas a más influencias. Uma história cândida com desenlace revolucionário. O primeiro ep, lançado em 1981, é funk reduzido a esqueleto, simples e direto como o punk e com um groove imparável. São um dos grupos mais samplados de sempre e certamente uma das influências mais fortes na cena de Nova Iorque de inícios de 2000, sentida sobretudo em bandas como LCD Soundsystem.

 

Não podemos falar de punk, política e feminismo sem falar Crass, anarco punks idealistas, viviam num squatt  (casa ocupada) seguindo fielmente a ética e estética Do-It-Yourself. Foram das primeiras bandas a editar os seus próprios discos e vendê-los a pouco mais do que o preço de custo, eram ecologistas, vegetarianos, pró-direitos dos animais, das minorias, dos oprimidos, contra a autoridade e as grandes corporações… tinham duas mulheres em palco, sempre abordaram as questões de género, mas em 1981 lançaram um álbum chamado Penis Envy em que todas as canções eram sobre o universo feminino e um regime cultural e político de dominação sexual. A ultima canção, “Our Wedding”, foi distribuída em flexi disc numa revista de histórias românticas para adolescentes, chamada Loving, que promoveu a oferta com o argumento de que poderia fazer o dia de casamento das leitoras “extra especial”. Os editores não se preocuparam em ouvir o disco antes. Na canção, Joy de Vivre, a vocalista, fala de obediência, mentira, medo…

 

O punk teve muito mais mulheres. As Au Pairs de Lesley Woods e Jane Munro, Gaye Advert, dos The Adverts, Delta 5, Bush Tetras, Poison Ivy dos Cramps, até Tina Weymouth dos Talking Heads que, não sendo bem punk, conviviam bem com a cena, ou Laurie Anderson que também fez parte da vanguarda de Nova Iorque que militava na No Wave, na transição dos anos 70 para os 80,uma cena vibrante que Brian Eno capturou na histórica compilação No New York, em 1978. Kim Gordon, baixista dos Sonic Youth, também fazia parte desse grupo de artistas, músicos e performers, era amiga de Glenn Branca, o homem das orquestras noise de guitarras, à frente de bandas como Theoretical Girls. Branca editou na sua Neutral Records os primeiros discos dos Sonic Youth que surgem em 1981, desde logo dispostos a quebrar tudo, sobretudo rótulos e cordas de guitarras. O primeiro álbum saiu em 1982, Kim tem um papel importantíssimo no baixo e na voz.

 

Desta história também fazem parte mulheres como Susan Seidelman, a realizadora de Desesperadamente Procurando Susana cujo primeiro filme, Smithreens, é um retrato do submundo de Nova Iorque no início da década de 80 com Richard Hell num dos papeis principais. Todas estas mulheres quebraram barreiras e preconceitos, abriram caminho e criaram descendência. Em bandas brit pop como as Elastica, no indie rock visceral de PJ Harvey, no movimento riott grrrl americano dos anos 90,  com bandas como Bikini Kill ou as Hole de Courtney Love, no electro clash de Chicks on Speed, Peaches ou Le Tigre, no rock, na eletrónica, nas Pussy Riot, e há também quem diga até na Miley Cirus. Histórias de mulheres que usaram a musica para escapar ao destino de raparigas típicas e no processo fizeram, e continuam a fazer, musica incrível além de revoluções pessoais e sociais.