Oub'lá

Thurston Moore

 

“Rock ‘n’ roll é aquilo que adoro e aquilo a que sou devoto desde miúdo”

 

Apanhámos Thurston Moore a meio da nova digressão pelo seu país. Um regresso à sua pátria para mostrar o novo disco, Rock ‘n’ Roll Consciousness, depois de há uns anos ter decidido mudar-se para Londres. O fundador dos Sonic Youth regressou aos álbuns este ano, mas já o podia ter feito mais cedo, até porque este trabalho até era para ser editado no ano passado: o clima político nos EUA, a campanha eleitoral tensa entre Trump e Clinton, fizeram com que Moore o adiasse para não se envolver naquela “paranóia”. Este é um disco com marca agitadora — sempre — mas que propõe um crescimento interior, antes de partir para o exterior. “Talvez o próximo disco venha carregado de noise, mesmo arrasador, que permita incinerar a Trump Tower”, ri-se Thruston que nos fala da sua quase irónica mudança para uma Europa aos soluços, mas que o aproxima de uma Lisboa inspiradora, de um país que tem uma marca neste Rock ‘n’ Roll Consciousness. “Na verdade, alguma das letras deste disco vem de ter passado algum tempo nos Açores. É um disco muito ligado a Portugal: a capa do disco é a fotografia de uma fotógrafa lisboeta, chamada Vera Marmelo.”

 

Queres explicar-nos esta ideia por trás do título do teu disco, a consciência do rock ‘n’ roll? 

Eu estava a pensar apenas em como me sentia ao ser músico, ao estar numa banda, nesta ideia de as pessoas se juntarem e partilharem este amor pela criatividade, sejam elas o artista ou o ouvinte. Eu sou as duas coisas. E qualquer pessoa que goste de música, arte, fotografia ou cinema, está sempre a pensar na inspiração que está por trás e nos sentimentos que a transmitem, no lado criativo, mesmo que não sejam eles os artistas. E pensei nessa relação que tem que ver, sobretudo, com alegria, partilha, amor… em que toda a gente é bem vinda, sem fronteiras, sem muros entre culturas e géneros. E dei por mim a pensar: este é um sítio que oferece uma verdadeira salvação à consciência planetária. E foi por isso que lhe chamei Rock ‘n’ Roll Consciousness: é aquilo que adoro e aquilo a que sou devoto desde miúdo. Para mim até é algo religioso, porque é uma relação de querer trabalhar de uma forma muito espiritual, mas ao mesmo tempo académica, com os pés assentes no chão. Vou fazer 60 anos em 2018 e cheguei a um ponto em que estou muito concentrado naquilo que quero ser neste mundo.

 

Mas esta foi a primeira vez que pensaste na música e no rock ‘n’ roll desta forma assim mais completa?

É a primeira vez que lhe consegui chamar algo (risos). Acho que sempre o senti nos meus ossos, mas agora, ao ver o mundo ser tão desafiado por ideologias fascistas, vontades políticas de termos medo de outras pessoas — algo tão anti-humanitário — que, de certa forma, é uma verdadeira honra estar em oposição a tudo isso. E o rock ‘n’ roll sempre teve presente a ideia de que todas as pessoas são bem vindas e estamos aqui todos para nos ajudarmos uns aos outros. Por isso, para mim, é uma honra protestar contra medidas anti-humanitárias.

 

Todo esse ambiente político em que vives — e vivemos — foi uma motivação para escreveres este disco?

Enquanto o escrevia, não. Não teve mesmo nada a ver com o clima político dos EUA ou com aquilo que eu ia vendo pela Europa. Sempre tive uma atenção e consciência política-social, sempre fui ativista, mas este disco não foi inspirado por agendas políticas. Sabia, quando o terminei, que havia canções mais direcionadas para isso, como é o caso do tema “Cease Fire” que é, basicamente, uma canção anti-armas e contra as ideologias extremistas, que estava no disco e optei por tirá-la.

 

O que te motivou a fazer essa canção?

Duas coisas: os tiroteios em Paris que aconteceram em nome de ideologias extremistas, e também a loucura da lei das armas na América que permite que jovens psicopatas possam ter acesso a armas militares e entrar em escolas primárias, que foi o que aconteceu numa cidade em Connecticut, muito perto do sítio onde cresci nos anos 1970. Mas houve outra canção que escrevi e que ficou fora do disco, chamada “MX Liberty”, que também ficou fora do disco e que são a minha forma de gozar com estas conspirações de supremacia branca que se vão vivendo na América. Eu queria que o disco tivesse canções que significassem um novo começo, uma nova primavera, novas ideias de beleza, que se concentrasse nas ideias de misticismo e oráculos de renascimento. Eu até estive para editá-lo no ano passado, mas foi um ano tão perturbador com as animosidades na campanha entre o Donald Trump e a Hillary Clinton que sabia que seria algo para se perder e desconsiderado no meio de todo aquele caos. Depois do resultado surpresa da eleição, em que este palhaço ficou encarregue dos destinos dos EUA, apercebi-me que seria melhor que o álbum fosse editado na primavera de 2017, como um documento de energia benigna. Mas eu só queria escrever canções num espaço pessoal que é assim que tudo costuma começar.

 

Ser oposição também foi ir contra a corrente das vontades? Ir contra aquilo que seria esperado?

Foi uma escolha pessoal. Senti que o disco deveria focar-se mais nesta ideia de divindade. Talvez o próximo disco venha carregado de noise, mesmo arrasador, que permita incinerar (risos) a Trump Tower. Na verdade quero rodear a Trump Tower com músicos noise e amplificadores e fazermos um concerto com o volume tão alto que abane e faça cair aquilo tudo, ou pelo menos que lhe caia aquele pó de ouro falso.

 

A música continua a ser a melhor forma de protesto?

A arte e a música são duas formas incríveis de protesto, porque são a voz, a emoção e a consciência das pessoas. Não tens de concordar com o que dizem, mas a música e a arte são o melhor jornal do mundo. Acho que o jornalismo é muito importante — e até estudei jornalismo na faculdade, porque é das posições mais honradas que se pode ter neste mundo: poder reportar. Para mim, a escrita de rock ‘n’ roll é tão importante como os músicos de rock ‘n’ roll. Ler as críticas escritas por Lester Bangs, Richard Meltzer ou até Patti Smith, antes de ela começar a gravar. Eu li-os a todos nos anos 1970 e os nomes e as palavras deles eram tão importantes como as pessoas sobre quem eles escreviam: o Lou Reed, o Iggy Pop, Sly Stone, John Coltrone, James Brown… e ainda adoro escrever sobre música e ideias musicais.

 

“Senti que o disco deveria focar-se mais nesta ideia de divindade. Talvez o próximo disco venha carregado de noise, mesmo arrasador, que permita incinerar a Trump Tower”

 

Mudaste-te para Londres há um par de anos e é curioso que saíste de uns EUA a braços com uma crise política-social, com um presidente que todo o Mundo parece odiar e que está a meter o país um contra o outro… 

(risos)

 

… e foste para Londres, a capital de um país que está a rever a sua posição na União Europeia, que quer fechar fronteiras…

É quase irónico, não é? Eu sou um cidadão norte-americano: a minha família mais próxima está lá, a minha filha de 23 anos mora em Nova Iorque. É lá que estão os meus sobrinhos, os meus irmãos moram em Connecticut; a minha mãe de 89 anos mora lá… eu amo os EUA e estou muito triste porque acho que tudo isto se definiu numa tomada de posse… venenosa. Vivo num conflito porque, por um lado, não quero estar lá por ser humilhante e embaraçoso; mas por outros lado quero estar lá para poder lutar pela verdadeira natureza do país e trazê-lo de volta depois de o seu solo sagrado ter sido pisado. E quero proteger a minha família, a minha filha, que é uma mulher… porque na base disto tudo está um medo enorme de mulheres! O Donald Trump saiu da toca a degradar e a desvalorizar as mulheres. Para mim é contra a natureza do mundo, que diz que somos todos filhos da Terra. Até é algo criminoso. Muito sinceramente, acho que ele deve deixar a Casa Branca algemado. E quero estar lá a lutar por isso.

 

Mas nesta altura moras em Londres!

Sim, porque ao mesmo tempo quero ser um cidadão do planeta! Quanto mais falamos de muros e fronteiras, mais me faz querer ir na direção oposta de erradicar todas as fronteiras e poder viver em qualquer lado. Em Inglaterra há um grupo enorme de pessoas que é pró-Brexit, mas eu moro em Londres, numa outra bolha intelectual. E senti que o Brexit fundamentou-se numa campanha de paranóia contra pessoas que não são inglesas, que vêm de fora e ficam com trabalho… o que é uma treta e é baseado nesse medo de outras pessoas e que vêm de países em guerra! O importante, para mim, é que temos todos de tomar conta uns dos outros. Se há uma comunidade de pessoas deslocada temos de tomar conta de todos em vez de andarmos a oprimir-nos.

 

Este Rock ‘n’ Roll Conciousness foi gravado em Londres com o produtor Paul Epworth, que tem tanto crédito no mundo das baladas e da música pop. Porque é que o escolheste?

Ele chamou-me à atenção depois de eu estar a falar com o Mark Stewart, o vocalista dos The Pop Group, que gravaram e eles gravaram com o Paul. Eu estava à procura de um estúdio para gravar e o Mark disse-me para eu ligar ao Paul. Não sabia quem ele era porque não presto muita atenção a essas coisas dos grandes produtores, mas percebi que ele era responsável por muita da música de sucesso da Adele — que acho linda e maravilhosa — e outros grandes nomes, como a Rihanna — que também acho que é maravilhosa — Florence And The Machine, The Horrors. Mas isso não me interessava, o que eu queria era o estúdio. Liguei-lhe e percebi que é uma pessoa maravilhosa — temos a mesma data de aniversário. E o estúdio dele chama-se The Church e é mesmo uma igreja, uma catedral lindíssima com duas mesas de mistura analógicas. Soube, de imediato, que tinha de gravar lá. Então negociei com ele algo que pudesse pagar, porque não sou uma estrela do rock rica, e trabalhei muito de manhã à noite, muito focado. E ele foi incrível, porque sabia que não ia trabalhar comigo como sendo alguém como a Adele. Eu não estava à procura de alguém que me ajudasse com a composição ou com a escrita de canções, só precisava de um espaço que fosse altamente funcional e ele deu-me isso.

 

Na fase da mistura do disco já foi diferente. Optaste por trabalhar com alguém que compreendesse esta estética mais noise rock do teu disco.

Sim, o Randall Dunn que trabalhou com os Sunn o))) e com os Earth, Burial… levei-lhe as fitas até ao estúdio dele em Seattle e foi lá que ele misturou o disco. Acabou por tornar-se numa ligação muito fixe entre duas cidades que foram muito importantes para mim nos meus anos de rock ‘n’ roll. Foi muito fixe passar de um estúdio super-pop, em Londres, para outra zona mais pesada em Seattle, ainda que tenha sido tudo pela intuição que é o que mais gosto de fazer.

 

Falaste aí nos teus “anos de rock ‘n’ roll”… mas ainda vives nos teus anos rock, não é?

(risos) Sim, ainda vivo nos anos rock ‘n’ roll e sempre vivi, desde que peguei numa guitarra. Há certos lugares que são muito importantes para mim: Nova Iorque, Seattle, Los Angeles… Londres. Há uns que são mais importantes do que outros, é claro. Estás a ligar-me de Lisboa?

 

“Na verdade, alguma das letras deste disco vem de ter passado algum tempo nos Açores. É um disco muito ligado a Portugal: a capa do disco é a fotografia de uma fotógrafa lisboeta, chamada Vera Marmelo. Ela tirou a foto e eu sempre a quis usar como capa de um disco e consegui!”

 

Sim, de Lisboa. E ia perguntar-te se nos últimos anos se Lisboa também se terá tornado numa dessas cidades marcantes para o teu rock ‘n’ roll.

Lisboa, para mim, é uma alma tão distinta… é em Lisboa que se ouve fado, que tem a beleza completa da alma e do coração das pessoas. Vemos isso e sentimos também na arquitetura, por exemplo. Se eu fosse uma estrela do rock super rica teria uma casa em Portugal! Mas passo aí o máximo de tempo possível, claro. Os meus amigos na ZDB são tão gentis e deixam-me ir até aí e ficar. E adorava poder falar a língua portuguesa, que tem um som tão lindo: é percutida e sonora ao mesmo tempo. Eu vou aí muitas vezes em busca da inspiração: o Sérgio [Hydalgo] da ZDB já me convidou a fazer residências em Lisboa, na Madeira e nos Açores — onde passei uma semana a escrever. Na verdade, alguma das letras deste disco vem de ter passado algum tempo nos Açores. É um disco muito ligado a Portugal: a capa do disco é a fotografia de uma fotógrafa lisboeta, chamada Vera Marmelo. Ela tirou a foto e eu sempre a quis usar como capa de um disco e consegui! (risos)

 

Quando é que voltas?

Assim que possível… não sei. Estou a começar a digressão e agora estou na carrinha! A andar de um sítio para outro. Ontem em Portland, amanhã em São Francisco. Estou no noroeste dos EUA, está a chover e podia estar em qualquer lado do mundo, mas é aqui que estou… quanto mais depressa chegar a Portugal, melhor (risos)!

 

Entrevista: Bruno Martins