Oub'lá

Pega Monstro

 

“Há uma intimidade maior com as letras do que se calhar havia noutros discos”

 

Há um ano, em setembro de 2016, Maria Reis e Júlia Reis — as irmãs que compõem as Pega Monstro — andavam pela Praia Grande, em Sintra, a cerca de uma hora da Lisboa que as viu nascer e que as viu crescer como banda. Um amigo emprestou-lhes uma casa para poderem armar por lá as baterias, guitarras e microfones e preparar o regresso aos discos.

A propriedade onde se instalaram era propriedade da família do amigo. Um espaço com duas casas. A de baixo e a Casa de Cima. Foi na “de cima” que nasceram estas sete canções do novo trabalho, o terceiro de longa-duração de Maria e Júlia, que nos faz ter a certeza de um crescimento permanente das Pega Monstro. Foi sobre a marca do passar dos anos que conversámos com as irmãs: o que fez mudar na forma como compõem canções; o mudarem de casa e deixarem de viver juntas, duas décadas depois de convivência mais constante. Mantém-se a precisão na altura de “partir a loiça toda”, mas as Pega Monstro já não querem só levantar os volumes dos amplificadores ou carregar nas baterias: também querem fazer-se ouvir de outra forma. Pelas palavras  e pelas melodias de voz. Corridinhos punk, ó-i-ó-áis distorcidos e fadinhos de calças rasgadas.

 

Se eu vos perguntar como descrevem o disco, de certeza que vão responder-me que é um trabalho mais maduro, que reflete o vosso crescimento. Mas o que é que isso quererá dizer?

Maria — Acho que é um bocado inevitável o nosso crescimento, até porque as pessoas vão crescendo e vão tendo outras ideias daquilo que acham que é preciso ouvir ou fazer. E acho que quando estávamos a fazer este disco — e as canções em si, depois quando fomos para estúdio ficámos a perceber que as canções têm o seu poder próprio. A produção foi algo mais simples “straight to the point”, para possibilitar que as canções sejam o principal daquilo que é o som do disco.

 

Mas esse “straight to the point” não era já uma característica das Pega Monstro?

Maria — Sim, em termos de velocidade…

Júlia — É isso que não se perde. Quando falas de crescimento — e do que é que isso quer dizer — acho que também há que dizer que esse trabalho coletivo só evolui também por causa de um trabalho individual que também vem com esse crescimento. Ou seja: trabalhamos em conjunto, mas há uma parte daquela procura que é feita só com o nosso instrumento (bateria, guitarra e voz) de uma forma individual, a procura do nosso som, para depois dizer aquilo que temos em conjunto.

 

“Foi uma ocasião feliz, em que não tínhamos espaço para ensaiar e ele disse que tinha a casa vazia, que podíamos ir para lá uns tempos. É uma casa incrível, com uma sala incrível… e Sintra é aquela coisa mágica” — Maria Reis

 

Sendo irmãs há espaço para o processo individual? Ou são muito cúmplices e partilham tudo?

Júlia — Acho que toda a gente sente a falta de espaço, por isso o trabalho individual passa por ir à procura desse espaço. Isso requer disciplina, vontade, gozo, curiosidade.

 

Ainda moram na mesma casa?

Maria — Agora já não.

 

Essa mudança pode ter alguma influência nessa maior descoberta do lado íntimo de cada uma?

Maria — Ainda é uma coisa recente, mas acho que sim. Mas mesmo quando vivíamos juntas tentávamos ter sempre o nosso espaço.

Júlia — E de uma forma literal: ir para o estúdio sozinhas e brincar com aquilo que se tem, sermos curiosas pelos sons que se conseguem sacar.

Maria — Quando começámos, também foi assim: eu interessei-me por música numa descoberta pessoal, sozinha em casa, sem nada para fazer, a ver vídeos e a tocar guitarra. É um prazer que foi muito individual no início.

 

Uma das coisas que tem vindo a sentir-se nas Pega Monstro é a busca de uma ideia mais clara daquilo a que chamamos canção. O que acham?

Maria — Sim, e também a possibilidade de uma estrutura de canção ter várias camadas, várias interpretações daquilo que é o standard da canção. As partes instrumentais, as vocalizações em que podem não ter nada de importante para dizer, mas que fazem parte daquilo que para nós é uma canção: um feeling, uma sensação ou um clima.

Júlia — E foi uma coisa que sempre tivemos. E o crescer nessa estrutura da canção também é divertido, curioso… “vamos lá ver onde é que isto vai dar”, mas manter uma espécie de lógica.

Maria — Sim, acho que somos inteligentes [riem-se as duas]. E isso nota-se.

 

Concordo que se nota: é um disco em que mostram que também sabem escrever, que escrevem coisas bonitas, rebeldes e emotivas. Quem é que escreve?

Maria — As letras sou eu.

 

Sobre o que é que tiveste vontade de escrever neste Casa de Cima?

Maria — O que distingue mais dos outros dois discos foi ter dedicado tempo para que cada verso desse prazer em cantar. E acho que isso é importante para se tocar ao vivo e gostar-se sempre daquilo que se está a dizer. É muito importante para não ficar farta da canção. Há uma intimidade maior com as letras do que se calhar havia noutros discos. E acho que as pessoas também reconhecem essa intimidade…

 

E é fixe ver que vocês ainda só têm 23 e 25 anos…

Júlia — Agora já 24 e 26… (risos).

Maria — Fizemos anos há duas semanas.

 

E fazerem música há uma década — lembro-me, pelo menos, d’Os Passos em Volta — marca muito essa maturidade.

Maria — Sim, e ser uma espécie de profissional muito cedo. Aos 18, por aí, já estávamos a tocar regularmente. Não era como agora, mas já sabíamos o que era dar um concerto e fazer um disco.

 

“Queríamos que as vozes estivessem mais perceptíveis do que nos outros discos, pelo menos mais limpas…” — Maria Reis

 

Explica lá melhor o que é isso de “espécie de profissional”.

Maria — [A música] fazer parte do teu dia a dia; acordar de manhã e saberes que tens uma data de coisas para fazer, inclusivamente tocar e dar um concerto, ou ir para estúdio. Faz parte da tua profissão.

 

O que é que fazem mais, para lá da música?

Júlia — Eu estou a tirar um mestrado de Ciências Cognitivas.

 

Isso é o quê?

Júlia — [Risos] É muita coisa! É uma espécie de curso interdisciplinar em que tens psicologia, neurociência, inteligência artificial, linguística… tudo o que é relacionado com o cérebro, basicamente.

 

Essas Ciências Cognitivas também podem ter algum reflexo na tua música?

Júlia — Hum… é mais por ser trabalho. A minha forma de trabalhar num lado e no outro é semelhante.

 

E tu, Maria?

Maria — Eu não! Eu só faço música (risos)

Júlia — E estás a tirar a carta! (risos)

 

Também tem que ver com a música: pode dar jeito para conduzir a carrinha da banda nas digressões. Recordo-me que o disco Alfarroba vinha com uma certa memória de infância: os períodos passados no Algarve em família. Casa de Cima refere-se a uma casa na Praia Grande, em Sintra. Que casa é essa? Também está relacionada com alguma memória familiar?

Maria — É uma família mais da amizade, porque a casa é de um recente amigo nosso. Mas foi uma ocasião feliz, em que não tínhamos espaço para ensaiar e ele disse que tinha a casa vazia, que podíamos ir para lá uns tempos. É uma casa incrível, com uma sala incrível… e Sintra é aquela coisa mágica.

 

“Quando falas de crescimento — e do que é que isso quer dizer — acho que também há que dizer que esse trabalho coletivo só evolui também por causa de um trabalho individual que também vem com esse crescimento” — Júlia Reis

 

Foi lá que este disco foi gravado, construído, desenhado?

Maria — Sim. Não totalmente, mas ensaiado e fizemos as demos lá, também. Compusemos algumas secções.

 

Quando partiram para o estúdio, tinham ideia do tipo que som que queriam ter? Que som era esse?

Maria — Queríamos que as vozes estivessem mais perceptíveis do que nos outros discos, pelo menos mais limpas…

 

Já que havia palavras mais bonitas para dizer…

Júlia — É isso! E mesmo uma exploração de harmonias mais trabalhada. Com este disco o que fazia sentido era dar ênfase às vozes sem perder a definição e a força.

 

E isso passava por tirar alguma da distorção?

Maria — Claro, quando queres ter as vozes mais limpas, tem que ser tudo claro desde o início. Bateria e guitarra também tem que estar limpas para as vozes poderem ter força e a bateria e a guitarra também. Para poder estar tudo claro na audição.

 

Ainda assim, há momentos no disco — em canções mais longas — em que gostam de voltar a meter alguma “sujidade”.

Maria — Claro. Porque não tem que ver com sujidade ou limpeza… não é uma cena higiénica.

Júlia — É a parte das dinâmicas, poderes ir e voltar, isso ser um movimento fluído, poderes não só dar ênfase às vozes, mas depois dar ênfase à parte instrumental, ir mais “a abrir” ou ir mais calminho. Explorar a densidade do som de várias maneiras.

 

E a forma como as vossas vozes se juntam está cada vez mais bonita. Eu sei que estamos a ouvir rock, mas há alturas em que parece que estamos a ouvir cantadeiras tradicionais… aquelas que cantam que têm “um amor em Viana e outro em Ponte de Lima”. Só falta ouvir um ó-i-ó-ai. É uma marca da chamada “portugalidade” nas Pega Monstro?

Maria — Sim… mas acho que “portugalidade” é uma palavra que soa um bocadinho nazi (risos), mas para nós foi uma espécie de redescoberta daquilo que, para nós, em criança, sempre ouvimos: o Zeca, por exemplo, que também fazia esse trabalho de recolha, mas a dar-lhe depois o seu input àquilo que é o seu legado. Nós reconhecemos ali uma coisa que também é nossa enquanto portugueses.

 

Há uns tempos falava com o Éme — e tu, Júlia, tocaste com ele no disco Domingo à Tarde. Ele dizia que não conhecia, até há pouco tempo, esse universo do cancioneiro português. Convosco não foi assim…

Júlia — Não, porque os nossos pais ouviam muito.

Maria — Foi o clichê de ouvir em criança, depois querer afastar daquilo, de só querer rock ‘n’ roll a abrir, as coisas que os pais não gostam. E finalmente voltas a esse ponto, em que tudo volta a fazer sentido.

 

E parece que encontramos nessas referências algumas das marcas de rock. Não literalmente, ou na sonoridade…

Maria — Sim, mas na cena punk de cantar…

Júlia — Cantar a liberdade, ou algo do género.

 

“O que distingue mais dos outros dois discos foi ter dedicado tempo para que cada verso desse prazer em cantar. E acho que isso é importante para se tocar ao vivo e gostar-se sempre daquilo que se está a dizer” — Maria Reis

 

Quais são os planos das Pega Monstro para os próximos tempos?

Júlia — Em outubro vamos ao Reino Unido fazer algumas datas…

Maria — Agora em setembro temos uma residência em Chelas [festival Zona Não Vigiada] e umas datas em Espanha. Vai ser devagarinho.

 

Que residência em Chelas é essa?

Júlia — Ainda estamos mais ou menos à procura, mas convidaram-nos para trabalhar com miúdos dos nove aos 16 anos. Ainda estamos à espera de saber pormenores e poder estruturar melhor, mas acho que o principal é trabalhar com eles e ver no que é que dá. O que queremos é ver o que é que lhes apetece fazer.

Maria — No fundo vamos estar lá a dar apoio. Acho que vai ser uma experiência engraçada ver de que forma é que podemos, numa vertente mais pedagógica, ensinar o que tens para dizer, mas ao mesmo tempo sabes que o principal é querer dizer qualquer coisa. E isso parte deles.

 

É uma estreia das Pega Monstro enquanto professoras.

Maria — Tu deste explicações, Júlia!

Júlia — Às vezes dou aulas de coisas… (risos) Mas transferência de conhecimento sempre foi uma coisa que eu gostei.

 

Qual é a primeira dica que vão dar a esses miúdos? O lado mais técnico, dos acordes na guitarra e da forma de tocar bateria?

Maria — Não haver regras…

Júlia — Não haver regras, mas explicar isso! Ao mesmo tempo há que se jogar com aquilo que gostas e isso tem que ver com o essencial: experimentar tocar. Descobrir o som que se curte!

 

Entrevista: Bruno Martins