Entrevistas

MANUEL GOTTSCHING

Manuel Gottsching, o alemão tranquilo

Esta sexta-feira, Manuel Gottsching apresenta E2-E4 ao vivo, em Coimbra. Este é um dos discos mais importantes da música eletrónica dos últimos 30 anos.

Há discos que se tornam clássicos de forma inesperada. E2-E4, de Manuel Gottsching, é um deles. Gravado em 1984, numa noite, E2-E4 é uma faixa única de 59’20 minutos que usa como título a mais famosa abertura de xadrez. Nasceu no contexto do rock progressivo, que o renegou, mas tornou-se mítico entre os adeptos da música de dança. Em 2006, James Murphy, usou-o como modelo em 45:33, uma encomenda da Nike que acabou por transpirar para partes de Sound of Silver, do LCD Soundsystem, mas o caminho de E2-E4 foi tortuoso até chegar aos melhores de sempre.

Manuel Gottsching, guitarrista fundador de Ash Ra Tempel, grupo de rock alemão da década de 70, era venerado pela comunidade progrock mas nem o facto de ser uma das cabeças mais respeitadas do género o salvou da incompreensão. E2-E4 era tão invulgar que precisaria da club culture para fazer sentido. Influenciado pelo minimalismo de Terry Riley e Steve Reich e construído em redor de dois acordes de guitarra com ajuda de sintetizadores e sequenciadores, E2-E4 surgiu como um “concerto a solo no estúdio” (é o próprio que o diz). Gottsching já tinha o título há algum tempo, era obcecado por xadrez, gostava do Star Wars e do R2D2. Só faltava a música.

Numa tarde de Dezembro, em 1981, recém-regressado de uma digressão com Klaus Schulze, e ainda em modo concerto, Manuel Gottsching alinhou algumas ideias, pegou na guitarra e carregou no botão de gravar (aparentemente porque precisa de música para ouvir no walkman e aquela talvez servisse). Depois ouviu o que fez repetidas vezes mas não ficou convencido com o resultado. E2-E4 esteve na gaveta até 1984, ano em que foi editado, e quase imediatamente esquecido, pelo menos no seu território supostamente natural.

Quando, na segunda metade dos anos 80, as festas de Ibiza começaram a chamar gente de todo o mundo para uma comunhão dançante com vista para o pôr-do-sol, E2-E4, uma longa faixa que se desenvolve numa progressão lenta e hipnótica, revelou-se com impacto inesperado. Em 1989, uns italianos desconhecidos resolveram aproveitar partes do disco de Gottsching e fizeram Sueño Latino, música que ficou como marca da época de ouro de Ibiza e se tornou numa espécie de clássico techno graças a remisturas de Derrick May e Carl Craig, entre outros. Larry Levan, lendário Dj do Paradise Garage, em Nova Iorque, tocava o disco na integra quando chegava a manhã (ver entrevista abaixo).

A nova, ou verdadeira, vida de E2-E4, fez-se pela via da música de dança e a sua influência sente-se no trabalho de Djs e produtores como o alemão Ricardo Villalobos, ligado ao techno minimal, ou o norueguês Lindstrom, herói do Disco cósmico. De certa maneira, a música de dança também acabou por devolver E2-E4 ao krautrock, porque lhe permitiu manter visibilidade e criar descendência numa geração que se interessa pelos pioneiros de Detroit como Juan Atkins ou Jeff Mills da mesma maneira que investiga a herança do rock cósmico, deixada por Can, Faust, Yes ou Ash Ra Tempel. Mas o principal argumento desta música, o que de facto torna o disco de Gottsching especial, é deixar que nos percamos nele, em viagem mental, com ou sem mexer os pés.

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A conversa telefónica, que Isilda Sanches teve com ele, conta mais pormenores sobre a história deste disco notável.
A lenda diz que E2-E4 foi gravado num take apenas, é verdade?

É verdade. Foi gravado numa hora. Não há overdubs nem regravei nada, não foi gravado em multipistas. É como uma atuação ao vivo no estúdio

Quando lançou E2-E4, podemos dizer que era um herói do rock progressivo, acha que esse público percebeu o que estava a fazer?

O processo foi longo. Comecei a tocar guitarra clássica em criança, depois formei uma banda com um amigo de escola, tocávamos canções pop, dos Beatles e Rolling Stones, só por piada. Mas, como gostávamos de tocar, acabámos por criar a nossa própria música, influenciados pelos blues. Os blues são muito fáceis de tocar mas também podemos expandi-los e improvisar sobre eles. Tínhamos um estúdio lindo, em Berlim, com Thomas Kessler, compositor avantgarde suíço, e acabámos por formar uma banda, Ash Ra Tempel. Fizemos uns discos e, sim tivemos algum sucesso, não foi um sucesso comercial, mas foi um sucesso underground em todo o mundo (risos), por isso continuámos. Mais tarde eu comecei a fazer musica a solo. Quanto ao E2-E4, interessei-me pela musica eletrónica e… é uma história longa (risos)

Mas, porque acha que o disco não foi bem percebido por algum do seu público? Por outro lado, porque terá feito tanto eco na música de dança?

Para mim foi uma consequência lógica. Claro que o que fazíamos com Ash Ra Tempel era ouvido pelo público do rock, nós usávamos instrumentos tradicionais, guitarra, baixo, bateria e fazíamos muita improvisação, experimentávamos muito e embora tivesse elementos de rock, não era rock convencional. Na verdade era uma espécie de destruição do rock (risos). Mais tarde, no início dos anos 70, comecei a ser influenciado por compositores minimais como Steve Reich, Terry Reily e Philip Glass e comecei a tentar fazer composições minimais, primeiro para guitarra, depois comecei a tocar orgão, a usar sintetizadores e sequenciadores… se ouvirem os meus discos vão perceber, o primeiro álbum Inventions for Electric Guitar (1975) reflecte as experiências com guitarra, New Age of Earth (1976), o seguinte, já é completamente eletrónico, quase sem guitarras…as coisas foram acontecendo e na verdade E2-E4 não é assim tão diferente mas acabou por ser ter sucesso maior junto das pessoas mais novas que não conheciam nada do que eu tinha feito antes, com Ash Ra Tempel ou a solo.

Quando percebeu que o disco era um hit na cena de dança? Ouviu Sueño Latino quando saiu, em 1989?

Claro! Tiveram que me pedir autorização para usar o sample (risos). Mas também isso foi lento, foi acontecendo ao longo dos anos 80. As primeiras reações na Alemanha foram engraçadas, havia pessoas que diziam que era uma porcaria, musica nada interessante, mas depois, quando começaram a chegar os ecos da América, os jornais que disseram mal acabaram por se desculpar. Começaram a tocá-lo em Detroit, depois chegou a Nova Iorque, onde havia um clube muito famoso, o Paradise Garage, onde o lendário DJ Larry Levan tinha por hábito tocar o disco todo ao fim da noite. Aliás Larry Levan pediu para que E2-E4 fosse tocado no seu funeral e todos os anos continua a celebrar-se o seu dia e a tocar-se o disco na integra. Mas eu só soube de tudo isto anos depois. Depois de Nova Iorque o disco começou a ser tocado em Inglaterra, Itália, e depois saiu Sueño Latino que foi um sucesso. Nos anos 90 continuou, com remisturas e re-samples, versões que tive que parar de contar (risos)… não conheço tudo.

E como se sente quando tanto produtores de música de dança o citam como influencia? O que achou por exemplo do que fez James Murphy em 45:33, que de algum modo reproduz o conceito de E2-E4?

A história do James Murphy tem piada porque, no início, ele até copiou a capa de E2-E4 com um tabuleiro de xadrez. Encontrámos a imagem na internet e contactámo-lo por causa disso mas ele negou que o disco dele, ou a capa, tivessem alguma coisa a ver com o meu…por isso não sei muito bem o que pensar dele enquanto pessoa (risos). Mas a verdade é que acabei por ouvir 45:33 mais tarde e não encontrei assim tantas semelhanças. De qualquer forma, penso que a grande influência de E2-E4 é o som. É intemporal. Estive em Amesterdão o ano passado, no Amsterdam Dance Event, e fui convidado para um painel chamado Meet The Godfathers (conhecça os padrinhos) e estava lá um tipo que eu não conhecia, Kenny Dope Gonzalez… talvez tenha ouvido falar dele?

Sim é um dos nomes míticos na cena house…

(risos) Eu não o conhecia, mas ele dizia que E2-E4 continua muito fresco e perguntou-me como é que tinha feito o disco porque soava incrível (risos). Não sei, é um tipo de som que agrada a muita gente. Talvez por causa da estrutura minimalista atrai a atenção das pessoas para samplar, tocar em cima dele e fazer versões. Mas o Jeff Mills, por exemplo, dizia que era tão perfeito que não podia ser melhorado por isso não valia a pena fazer nada com ele (risos). O que é interessante é que não atrai apenas pessoas da música de dança. Há uma orquestra de 10 elementos aqui em Berlim, a Zeitkratzer, com músicos da clássica que tocam Xenakis, John Cage, artistas de noise japoneses, até tocaram o Metal Machine Music do Lou Reed com violinos, violoncelos, piano, trompete, mas também fizeram uma versão de 20 minutos de E2-E4. Em 2005 fiz um concerto com eles que gravamos e editámos em cd. Actualmente  estou a preparar uma composição para uma orquestra de jazz de jovens a partir de E2-E4. É interessante ver como as pessoas mais novas estão a pegar nesta musica e tocá-la como se fosse jazz. Estamos a fazer umas adaptações para que resulte (risos).

E como é tocar E2-E4 agora? É possível recriar o ambiente original que parece ter sido tão espontâneo?

E foi, tudo aconteceu de forma natural. Quando toco esta musica ao vivo é uma composição com uma estrutura. Não é bem a mesma coisa, mas está muito perto, uso sons originais e sons novos e faço várias combinações, mas está muito perto do original.

E há algum cenário ideal para ouvir esta música?

Durante muito tempo não o toquei e quando o gravei pensei que nunca iria tocá-lo ao vivo, era impossível levar todo aquele equipamento para um palco, eram sequenciadores e sintetizadores analógicos, gravadores… era suposto essas coisas ficarem no estúdio, não sair dele. Só comecei a tocá-lo depois de 2000, quando descobri que os computadores são bastante estáveis para tocar ao vivo. O primeiro espetáculo que fiz foi em 2006, no Japão num festival chamado Metamorphose, também gravámos e editámos em Cd e Dvd. Também toquei num clube muito famoso de Berlim, o Berghain, que na altura, 2006, quase não tinha concertos. Mas achei que era o sitio certo para tocar E2-E4 aqui em Berlim. Já toquei em Pequim, só para publico chinês com a policia a controlar tudo (risos). O concerto de Coimbra será o décimo ou décimo primeiro, porque não faço isto muitas vezes. Mas, todas as vezes é diferente, e procuro sempre que seja em locais especiais. Sempre quis ir a Portugal, mas nunca tinha acontecido… acho que tocar em Coimbra vai ser bom.