Entrevistas

John Robb

John Robb é jornalista e músico. Começou com o punk em 1977, a tocar nos Membranes e a escrever sobre música em fanzines fotocopiadas. Os Membranes tornaram-se banda de culto, terminaram em 1990, mas voltaram em 2010 para o festival All Tomorrow Parties, a convite dos My Bloody Valentine, e ficaram. A banda lançou três álbuns nos últimos anos, todos com alusões do domínio da ciência e interrogações sobre o universo e a natureza. São estas algumas das questões que interessam a John Robb, um jornalista acutilante e prolífico escritor de livros sobre música, orador eloquente e cheio de histórias. Tem 10 obras publicadas sobre o punk, a cena de Manchester ou os anos 90, mas veio ao Porto Pop falar do livro que sairá em 2022 — The Art of Darkness: A complete history of goth music and culture.

Depois da apresentação, a Isilda Sanches falou com ele sobre o movimento gótico (ou goth, como dizem os ingleses e costuma ser internacionalmente designado), a britpop e até a colaboração que manteve com um jornal português no final dos anos 80.

 

O que é que o fez querer escrever sobre música? Já tinha uma banda quando começou?

Comecei a escrever sobre música mais ou menos ao mesmo tempo que comecei a tocar, porque havia aquela ideia punk de que toda a gente podia fazer qualquer coisa. Acho que interpretámos mal, na verdade; pensámos que a ideia do punk era que toda a gente podia fazer parte. (risos) Mas eu não sou de Londres. Sou de Blackpool. Nem sequer sou de Manchester; estava na margem das margens… Nós pensávamos que o punk era do-it-yourself, ou melhor, do-it-together. Éramos miúdos de 15, 16 anos com oportunidade para fazer coisas criativas. Claro que, com o passar dos anos, percebi que o punk era só um negócio gerido por pessoas em Londres. (risos) Eu não sabia que os Clash tinham pessoas nas digressões que lhes faziam a roupa. Pensávamos que eles compravam a roupa em segunda mão, como nós fazíamos. (risos) Erámos tão inocentes, que não percebíamos que era uma máquina, que havia agentes para tudo, imprensa, espetáculos… Achávamos que era só fazer uma banda e tocar. Portanto, fazer uma banda foi uma coisa; comprar guitarras e começar a tocar… Outra coisa foi escrever. Alguém levou a fanzine Sniffin Glue para a escola, e achámos que tinha ar de ter sido feita em casa e pensámos “olha, também podemos fazer isto”. Arranjámos uma máquina de escrever e perguntámos na escola se o pai de alguém trabalhava numa tipografia, e uma pessoa disse-nos que podíamos fazer fotocópias. Nós nem sabíamos o que eram fotocópias! O homem fez-nos 50 fotocópias da fanzine. E foi assim que comecei a escrever. Depois, fizemos outra fanzine. Fizemos umas 30. Depois, comecei a escrever para a ZigZag, depois o Sounds

 

E agora está em todo o lado e com livros sobre assuntos muito variados…

Pois. Nunca fui para a universidade. Nunca fiz parte do círculo de Londres, onde toda a gente tem uma oportunidade porque conhece toda a gente. Nós estávamos fora disso. Fizemos tudo sozinhos, a escrever e a tocar. (risos)

 

É verdade que inventou a palavra Britpop?

Sim, e posso prová-lo! Tem havido alguma discussão em relação a isso, e eu nem sequer acho que seja uma expressão assim tão boa! Era só uma piada. Em 1987, eu escrevia para o Sounds e estava a escrever um artigo sobre a cena punk britânica mais underground, o britcore, e como piada usei a palavra “britpop”. Fui fazer a cobertura de um concerto dos La’s e escrevi que eles podiam ser a maior banda britpop e que bandas como os Stone Roses deviam prestar atenção. Na altura, parecia que os La’s iam ser a primeira banda daquele universo a ficar grande; os Stones Roses já existiam há uns dois anos e não pareciam ir a lado nenhum. Claro que a história foi diferente. Mas recentemente estava a compilar um livro com os meus artigos, que vai sair para o ano, e encontrei esse artigo. Há outros jornalistas que dizem ter inventado o termo, mas eu continuo a encontrar artigos meus dos anos 80 em que usava a palavra. Acho que há pessoas que inventaram a palavra em 1994, mas eu já a usava em 1987. Ainda que, de certo modo, a britpop de 1994 seja uma continuação do que faziam essas bandas de que eu falava. Os Blur, quando começaram, queriam ser os Stone Roses.

 

É mais Oasis ou mais Blur?

Gosto de ambos de maneira diferente. Os Blur são mais inventivos, mas os Oasis são mais do coração. Mas é brilhante, não é? Todo o conceito de ter as bandas como rivais? Foi uma peça fantástica de teatro pop, orquestrada pelo manager dos Blur, Andy Ross, que escrevia para o Sounds e não queria falar sobre os Stone Roses, porque eram horríveis, mas um ano depois metia a sua banda, que soava como os Stone Roses, no jornal. (risos)

 

Os jornalistas de música podem ser culpados de muita coisa…

Na altura, sim, tinham poder. Na altura, podia fazer-se ou destruir-se uma banda, enquanto agora somos parte da narrativa, mas somos apenas parte. Na altura, só havia 30 jornalistas e 30 bandas…

 

Na apresentação do livro The Art of Darkness, falava de como o pós-punk e o gótico na verdade nunca existiram, foram construções a posteriori, e de como as bandas que rotulamos dessa maneira achavam na verdade que eram punk…

Sim, mas, se vais contextualizar as coisas, tens de as agrupar de alguma forma. O goth, por exemplo, foi um termo retrospetivo para uma cena que já existia há uns dois ou três anos. Mas havia uma cena, por muito que as bandas digam que não. Se entrevistares o Nick Cave hoje, ele vai-se embora se disseres que ele era goth, mas… ele não parece importar-se que 90% do seu público sejam pessoas que já foram goths. (risos) O mesmo com a Siouxsie! Não vejo ninguém banir goths dos seus concertos ou de comprarem os discos. É uma faca de dois gumes, não é? Acho que nenhum músico quer fazer parte de uma cena, porque as pessoas começam a fazer perguntas como “se és goth, porque é que fazes isso?”. Mas ao mesmo tempo não te importas de ser percebido como goth porque, quando chegas ao Chile, ou outro país qualquer, e há 20 mil pessoas interessadas nessa cultura, percebes que há público. Mas eles estavam a lidar com temáticas góticas. Quando entrevistei o Steve Severin [Siouxsie and the Banshees, The Glove], ele disse que odiavam a palavra goth mas não se importavam com a palavra gótico, porque lembrava quadros e catedrais. Ele viu a perspetiva global, as centenas de anos de história, percebeu o conceito que eu queria desenvolver no livro. Mas, na verdade, a palavra goth é tão maligna… Há a piada de dizer que é goff, g-o-f-f, ou seja, é tão básica que ninguém quer ter nada a ver com ela. Mas gótico é grandioso e escuro… e até bastante engraçado. Mas os jornalistas não têm opção. Se vais descrever coisas, tens de usar nomes, pronomes e adjetivos, e talvez não seja culpa tua que o público se junte à volta disso. Porque é a natureza humana. Somos tão tribais, criamos tribos à volta do mais pequeno fluxo de informação. Na época do punk, comecei a ir a esses eventos e concertos de goth, e ninguém falava em gótico; eram só punks que gostavam do lado mais extravagante do punk. Sabes aquelas pessoas que entram numa cena aos 15, 16 anos e, aos 20, já estão fartas e começam a vestir-se de maneira normal? Há outras pessoas que não estão interessadas nisso. Só querem continuar a vestir-se para sair e divertir-se. O goth era um pouco isso, uma mistura de glam e darkness. É muito atraente, essa darkness.

 

Está a preparar mais algum livro?

Quatro! (risos) Um é com os meus textos antigos, que sai para o ano. Outro não foi escrito por mim, mas é sobre mim, com fotografias. Também estou a ajudar o Alan McGee a escrever um livro e estou a preparar a minha autobiografia.

 

Como tem tempo para tudo?

Não bebo. Isso ajuda. Costumo beber chá, mas aqui estou a beber café porque o chá é terrível.

 

Os ingleses levam o chá muito a sério. Foram os portugueses que levaram o chá para Inglaterra…

Eu sei, eu sei. Tudo o que reclamamos para nós foi feito por outros. Somos como os romanos: eles não inventaram nada; só pegaram nas ideias dos outros e tornaram-nas melhores. (risos)

 

Tenho de perguntar pelo Brexit. Qual é a sua opinião?

Bem, eu vivo em Manchester. Nós não saímos da União Europeia. Não tenho nada a ver com isso. (risos) Em Manchester, tivemos 63% de votos pró-Europa. Continuamos muito europeus. Manchester é uma cidade progressista, onde toda a gente é bem-vinda. Tony Wilson costumava dizer que Manchester era a cidade dos imigrantes. Tudo o que de bom aconteceu em Manchester foi feito por pessoas que vieram de fora. A música foi impulsionada pelos irlandeses e pelas pessoas das Índias Ocidentais. O algodão foi levado pelos huguenotes quando foram expulsos de França e recebidos em Manchester, o que acabou por dar origem à Revolução Industrial. E Manchester foi uma das principais cidades europeias da Revolução Industrial. Na altura, era uma cidade modelo. Mas o Brexit… O estranho é que o Império Britânico é um império cultural, área com a qual o governo nunca se preocupa. Por exemplo, ninguém se lembrou de discutir a questão dos vistos dos músicos e artistas para atuarem na Europa, e agora ninguém sabe de facto o que fazer. O país é governado por crianças; o Boris Jonhson nem consegue pentear o cabelo como deve ser. Não tem piada, mas faz de conta que tem piada. É um miúdo mimado. Mas o problema é que é assim um pouco por todo o lado: crianças ditam os destinos do mundo.

 

Porque acha que acontece?

As pessoas crescidas e inteligentes não querem meter-se na política. Conheço pessoas do mundo da política, e é perigoso. Tivemos dois deputados mortos por lunáticos num ano. As pessoas pensam sempre que os políticos são corruptos, mas há de facto pessoas que estão na política a tentar fazer a coisa certa. Mas… Acho que é fora da política que estão a acontecer coisas importantes, que podem de facto fazer diferença. No último ano, trabalhei com um tipo chamado Dale Vince, e ele é brilhante, é especialista em energia verde, é a pessoa com mais turbinas eólicas no Reino Unido. Os Massive Attack queriam fazer a digressão carbono zero e pediram à Universidade de Manchester para ajudar, porque é a principal autoridade no assunto no Reino Unido, mas também envolveram o Dave Vince para ajudar as salas ter energia verde durante os concertos. Ele também lhes disse para se tornarem vegan porque gerava menos emissões de carbono: se alimentamos as vacas com 20 ou 30 vezes aquilo que conseguimos comer, mais vale comer as plantas que damos às vacas, não é? Tudo coisas muito importantes, mas que na verdade já nos preocupavam na era do punk. Escrevíamos sobre isso nas fanzines. Na altura, era cultura alternativa; agora, é dominante. E o Dale é parte do processo. Ele já está no mainstream. E o interessante sobre ele é que foi um viajante. Durante 15 anos, viveu num autocarro, o que era uma cena grande nos anos 80 — muita gente comprou autocarros e começou a andar por aí. Ele não tinha dinheiro. Contou-me que uma noite tinha 15 cêntimos no bolso e deitou-os fora para ver se conseguia viver sem dinheiro; e recentemente disse-me que às vezes se tente tentado a fazer isso outra vez, vender a empresa e voltar à estrada. Portanto, isso pode acontecer a qualquer altura, mas é assim que ele gere os negócios e a vida. Não quer saber do dinheiro. Vê o seu negócio como uma forma de provocar mudança. Nós estudámos na mesma escola, mas nunca nos cruzámos. Mas lembro-me de uma vez o ter encontrado em Glastonbury. Tinha construído uma minieólica para carregar telemóveis, isto quando havia ainda poucos telemóveis. Só recentemente percebi que era ele.

 

Porque se interessa tanto por ciência? Os Membranes até fizeram um espectáculo, The Universe Explained, com cientistas a explicar o bosão de Higgs…

Gostas de explicar as coisas, não é? De saber como as coisas funcionam. Eu estou interessado em tudo. Não é só ciência, nem só música; tudo é fascinante. Até este hotel é interessante, e perguntamo-nos “porque é assim?”. Tudo é fascinante: a natureza, a ciência, o universo e tudo o que está para além. Não queres ficar preso no teu mundo claustrofóbico, a preocupar-te com as tuas coisas.

 

A maior parte das pessoas talvez queira isso mesmo.

Eu sei, mas eu tenho sorte. Posso passar o dia inteiro a pensar no universo. (risos) Porque não tenho um emprego a sério. Há anos que penso sobre o universo e coisas assim. Tive a sorte de fazer algumas TEDx Talks e conhecer alguns cientistas e tornei-me amigo de muitos deles. Os cientistas são incríveis. São um pouco como os músicos. Se perguntares a um músico alguma coisa sobre a sua música, podem ficar o dia inteiro a falar disso. Os cientistas, também. É o mesmo tipo de entusiasmo e o mesmo tipo de conversa, mas sobre coisas um pouco mais importantes. (risos) Falamos sobre neutrinos, o bosão de Higgs, se o universo tem princípio ou fim. E lembro-me de que, quando fizemos o Dark Matter/Dark Energy, era um disco sobre a morte, e eu estava fascinado pelo assunto e o que acontece a seguir. E claro que nada acontece, ninguém vai para o céu, lamento informar, mas conheci Joseph Incandela, que dirigia o CERN na altura, e tivemos uma excelente conversa sobre o universo, que algumas pessoas não aguentaram, mas eu acho que… é um pouco como ir a um concerto dos Swans: há pessoas que desmaiam porque lutam contra o som, mas, se ficares quieto e levantares os braços, o drone é relaxante. Dark Matter/Dark Energy tem algumas letras sobre o universo, mas a ideia era transmitir aquilo que tinha acontecido nessa conversa.

 

Escreveu para um jornal português, o LP.

Sim. Sempre que venho cá, alguém fala disso, e eu já me tinha esquecido, mas, no outro dia, quando andava à procura de coisas para a minha coletânea de textos, encontrei uma caixa que tinha esses textos portugueses. Mandava por fax, e eles traduziam para português. Não faço ideia de se o que saiu no jornal foi o que eu escrevi; podem ter escrito outra coisa qualquer. (risos) Tinha estado em Portugal um pouco antes, acho que em 1987. Tocámos em Lisboa com o João Peste. Foi assim que conheci as pessoas. Na altura, era curioso chegar cá e descobrir que havia uma cena musical, uma vez que a música alternativa era uma cultura muito alocêntrica. Claro que também havia música alemã, holandesa, etc., mas quando chegava às margens da Europa havia sempre cenas que me surpreendiam.

 

Ainda há música que o surpreenda?

Claro que sim. Isso não desaparece. Claro que é mais intenso quando se tem 16 ou 17 anos; é quando a música te muda mais. Seria estranho que a música mudasse a tua vida aos 60, mas há tanta música boa por aí. Gosto muito da cena black metal norueguesa, em que as bandas já não fazem black metal. Há uma banda chamada Ulver, que começou por fazer black metal, depois começou a fazer crooning em cima das guitarras, já gravou com a orquestra nacional da Noruega, fez um disco de folk norueguês e agora faz uma espécie de tecnopop tipo Frankie Goes to Hollywood, mas mantém sempre o mesmo tipo de ambiente black metal. Também há muita coisa boa a sair no Reino Unido — obviamente, os Fontaines. Ia lançar o primeiro single deles. Costumava ir a Dublin fazer palestras sobre música e lembro-me de que o vocalista marcou quatro reuniões comigo. Aparecia de meia em meia hora. Encontrei há dias os emails e ainda tenho as demos originais. Não tinha dinheiro para os editar. De certo modo, ainda bem que não lancei o disco, porque, dois anos depois, quando finalmente saiu, esse era o momento certo. Antes disso não teria sido a melhor altura.

 

Como vê todas estas bandas, como os Fontaines DC ou os Idles, que se inspiram claramente no pós-punk?

São ótimas! Mas para eles é tudo novo, não é? E não estão a fazer bem a mesma coisa; estão a decompor um pouco, a colocar os elementos noutra ordem.