
“Na terceira classe eu já escrevia composições bué de grandes que a minha professora ficava estúpida a olhar… coitada…”
Chegou com estrondo, nos últimos dias do ano passado. Muitos a fazerem ainda contas aos melhores discos do ano e Conan Osiris a aterrar de surpresa, quase do nada, com um disco chamado Adoro Bolos com o selo da AVNL Records. Espreitámos-lhe uma entrevista no site Rimas e Batidas e poucos dias depois, já entrados no ano que corre, tínhamos colegas e amigos a perguntar se já teríamos ouvido este ovni com nome de Rapaz do Futuro e de deus egípcio associado à vegetação e a vida no Além.
É impossível ficar indiferente a Conan Osiris – Tiago Miranda é o seu nome de baptismo, mas prefere que o tratemos por “Cou-nan” (à americana) ou “Có-nã” (à Ena Pá 2000), como der mais jeito à pronúncia. Gostar ou não do seu disco é uma outra história: indiferença é que não.
Dar play no primeiro tema de Adoro Bolos é arrancar para a escuta de um baixo distorcido, ululante, a pedir um sedutor agitar de anca à moda arabesca de dança do ventre. “Borrego” faz-nos franzir a testa ao ouvir a voz que podia ser prima em primeiro grau de Frei Hermano da Câmara, António Variações e Ciganos D’Ouro. E a partir daqui já não conseguimos desligar.
“Na minha cabeça sempre esteve a ideia de chorar e dançar ao mesmo tempo”, diz-nos hoje Conan Osiris, quatro meses e meio depois de ter o seu Adoro Bolos cá fora, para ser digerido à descrição. Conversamos sobre alguns dos temas deste disco e sobre a seriedade que existe ou não à volta das suas letras e da forma como consegue criar um corpo unido com uma amálgama estilística que vai de bollywood ao tarraxo; da canção cigana à kizomba; do fado à eletrónica-carrinhos-de-choque… “Há pouca música de que eu não goste – é mais fácil dizer assim”, assume Conan Osiris.
Nesta conversa não lhe pedimos nenhum name dropping – isso já Conan fez noutras conversas. Quisemos apenas percebê-lo melhor, entrar nos seus processos de criação, compreender as origens da sua voz e deste universo muito próprio e único que ora nos faz rir, ora nos faz chorar.
A música de Conan Osiris diz muita coisa, é assumidamente biográfica, mas não nos diz tudo. Por isso, mais vale dançá-lo e curti-lo; rir e chorar com ele – porque Adoro Bolos dá para tudo isso. Ele diz que as suas canções são uma espécie de espelho daquilo que cada um de nós tem dentro de si: “É literalmente uma mina onde tu vais escavar… se encontras lixo é porque há algum lixo em ti para resolver; se encontras piada é porque também te identificas de alguma forma; se encontras paixão e ardor é porque também estás à procura disso.” Mais vale parar de procurar justificações. É o que Conan faz: “Nem tenho que procurar muito fazer sentido, porque para mim tudo isto já faz sentido na minha cabeça.”
Apesar de Adoro Bolos ser o teu terceiro disco, para muita gente esta é a primeira vez que ouvem falar de ti. E com muita surpresa.
Sim, este é o terceiro trabalho. Já tinha uma mixtape e o disco anterior.
A mixtape chamada Silk e depois o álbum Música Normal. O que é que aconteceu para neste Adoro Bolos conseguires chegar a mais gente?
Não sei… não sei se foi por ser em português; se foi da entrevista do Rui Miguel Abreu no Rimas e Batidas. Acho que foi uma mistura de tudo.
E escreveres em português?
Eu já tinha algumas cenas em português no Música Normal… mas é da onda, acho eu. Foi a partir da visibilidade que ganhei com esse disco. O Mike El Nite também já tinha eleito o Música Normal numa lista do Rimas e Batidas. E foi por aí.
Como é que se dá essa passagem para a escrita em português? Era algo que tinhas mais dificuldade? Há muitos artistas que têm esse bloqueio na passagem para a escrita na língua materna… dizem que não lhes faz tanto sentido.
Ya… mais antigamente até tinha, mas a partir do momento em que escrevi a “Amália” pensei: “Tá-se bem escrever em português”. O resto foi mais um aspeto da própria aprendizagem e aperfeiçoamento das letras e tudo mais.
Esse aperfeiçoamento, como dizes, implicou dares muito mais de ti nas letras?
Talvez há dois anos eu não tivesse maturidade para dizer o que digo agora. Tem mais a ver com maturidade do que com outra coisa qualquer; de agora conseguir chegar-me à frente com aquele tipo de palavra.
E o que escreves e cantas é uma mistura entre um vocabulário poético muito descritivo e apaixonado com expressões corriqueiras e quotidianas. De onde vem tudo isto?
Lá está: vem tudo de mim porque é mesmo isso. Eu tanto posso ser a coisa mais corriqueira de sempre como, se estiver com a minha mente focada, consigo elaborar as palavras e uma eloquência exaltada… mas se é para ser chinelo, é chinelo, ’tás a ver? (risos) Mas a análise individual, aquilo que cada um pensa de mim, é algo que tem que ser bué respeitado. As pessoas podem gostar de mim, simplesmente, pelas batidas! Ou às vezes nem curtem nada das batidas e é só mesmo as melodias. Há várias dimensões pelas quais as pessoas se podem interessar, mas o porquê desse interesse vem mesmo delas.
Quais são as origens do teu mundo artístico? Como é que nasce a tua ligação à música cantada e produzida?
O começo foi quase uma tradição oral, de escola. Pequenas coisas, musiquinhas que fazia dos ficheiros de áudio do MSN que guardava, ou mandava, e ficava colado com os meus amigos da escola… Quando tive, mais tarde, o meu PC é que fui explorando a parte dos softwares, a composição… até aí não havia batidas nem nada. Eram coisas que eu escrevia na parte de trás do meu caderno!
Quando é que começaram a aparecer os primeiros escritos do Conan Osiris?
Eu sempre escrevi! Na terceira classe eu já escrevia composições buéda grandes que a minha professora ficava estúpida a olhar… coitada… a mulher tinha que aturar com cada cena… era composições com extraterrestres… só mesmo ir vendo o meu caderno na terceira classe. Depois, a partir daí, escrever tornou-se uma cena normal. Como se estar aqui a falar contigo.
“O que sentires pelas minhas músicas é aquilo que está também em ti. É literalmente uma mina onde tu vais escavar… se encontras lixo é porque há algum lixo em ti para resolver; se encontras piada é porque também te identificas de alguma forma; se encontras paixão e ardor é porque também estás à procura disso”
Nunca aprendeste nenhum instrumento, pois não? Começaste a aprender a fazer música no computador.
Ya, eu não toco nada. Nem sequer sei ler uma… como é que se chama… Pauta? É uma cena que fui aprendendo visualmente a construir. Os baixos, os médios, os altos – só a olhar para o PC. Agora se me dás uma guitarra para a mão, estou ali a dedilhar um bocadinho, mas esquece. Cantar e tocar ao mesmo tempo é algo que não consigo. É tudo muito visual no PC – com a construção das músicas nota a nota, até ficar um padrão. Instrumentos orgânicos? Só a flauta de bisel no quinto e sexto ano, mas eu odiava as aulas de Música! Eu ia sempre para a rua, porque a professora pedia-me para tocar o “Titanic” [“My Heart Will Go On”, de Celine Dion] e eu não me apetecia – e nem sabia (risos).
Então é natural que esse tema volte a aparecer nas tuas canções – falo, claro, da canção “Titanique”.
É muito natural, claro! Acho que tudo o que está colocado no início da vida volta a aparecer um bocadinho mais tarde. E se não englobarmos na nossa existência, acaba por nos vir a assombrar. Então o “Titanique” é para abraçar!
Costumas ir remexer nos cadernos da escola?
Ya, ya. Totalmente! Não é saudosismo, mas é mesmo uma questão de auto-análise e entender que já havia cenas que, quando eu era puto, fazem super sentido agora, ’tás a ver? Eu tenho uma teoria: quando és puto é quando é o teu verdadeiro “eu”. Depois passas a parte da adolescência em que estás com medos ou então tentas ser alguma coisa… mas depois chegas a um certo ponto em que voltas ao início!
Tens quantos anos?
Tenho 29.
Já estás na tal fase em que regressaste ao teu início?
Ya. Há já algum tempo. Talvez na boa desde os meus 22 anos em que me apercebi que “eu sou mesmo eu” – e não outra pessoa qualquer (risos).
“Tirares-me uma foto ou eu fazer uma música que sai de mim, basicamente é a mesma cena. Talvez a música seja uma fotografia um bocadinho mais interior”
Mas não foi quando começaste a editar discos, pois não? Foi mais para a frente. A mixtape Silk é de 2014, acho eu.
Sim, mas eu já tinha um projeto que era Powny Lamb, mais música eletrónica feito com uma amiga minha, a Sereia – que produzi o disco. Nós editámos dois discos, com a maioria das cenas instrumentais. Mas depois abortei dois discos, porque não tinha a maturidade de ver onde estavam os erros e lidar mal com a falta de capacidade de performance… e depois fiquei bué frustrado. Mas, sim, nessa altura já fazia muita produção.
A música e a escrita têm tido um papel importante nessa auto-descoberta? Aquilo que escreves é sobre ti?
É muito autobiográfica, de certa forma. Acho que não é bem ajudar-me, mas complementa-me bué. Como se fosse uma fotografia: tu tirares-me uma foto ou eu fazer uma música que sai de mim, basicamente é a mesma cena. Talvez a música seja uma fotografia um bocadinho mais interior.
Mesmo escrevendo de uma forma apaixonada, achas que existe um lado de comédia naquilo que escreves? Também te ris com aquilo que escreves?
Oh, claro! É isso! Se eu não me rir com o que escrevo, porque é que estou a escrever? Não é que seja uma coisa masturbatória, mas tenho que me pôr à frente de mim próprio para ir contra mim, para depois rir-me ou chorar… basicamente é algo para ser auto-provocação… do género: “Deixa-me lá sentir alguma cena…”. Estamos sempre tanto filtrados no nosso dia a dia que nem temos sentimentos. A minha vida é rir e chorar… e comer. Daí a pastelaria! Eu adoro mesmo bolos! Porque é que não hei-de escrever sobre isso?
É bom não nos levarmos só muito a sério, não?
Ya, se te levares muito a sério acabas bué frustrado. É óbvio que tens de trabalhar bué e construíres-te bué. Mas quando passa essa parte também tens de te divertir, porque senão o que é que estás aqui a fazer? És uma máquina, apenas?
“Se eu não me rir com o que escrevo, porque é que estou a escrever? Não é que seja uma coisa masturbatória, mas tenho que me pôr à frente de mim próprio para ir contra mim, para depois rir-me ou chorar… basicamente é algo para ser auto-provocação… do género: ‘Deixa-me lá sentir alguma cena…”
É isso que faz com que haja dúvidas se aquilo que tu fazes é para ser levado a sério ou é uma coisa para brincar. Se há seriedade ou se é só ironia à volta. Alguém comenta isso contigo?
As pessoas nunca me confrontam com a parte jocosa. Acho que isso já vai partir um bocadinho de cada um. Vai ser o próprio espelho da pessoa: o que ela encontrar nas minhas cenas é o que ela sente. Fica ao critério e valores de cada um. O que tu sentires pelas minhas músicas é aquilo que está também em ti. É literalmente uma mina onde tu vais escavar… se encontras lixo é porque há algum lixo em ti para resolver; se encontras piada é porque também te identificas de alguma forma; se encontras paixão e ardor é porque também estás à procura disso.
Foi uma surpresa para ti a reação das pessoas ao Adoro Bolos? Sentiste em alguma altura que este disco ia bater mais do que os outros?
Sabes a regra do “as above so below”? Há uma micro-escala – que sou eu; depois outra que sou eu e o meu pessoal mais próximo de mim; e a esfera vai-se alargando. Só que o micro-cosmos é sempre o primeiro factor a dizer se vai bater ou não. Primeiro tem que bater a mim…
E no teu microcosmos sentiste que ia bater de uma forma diferente?
Não diferente, mas melhor. Mais construído, melhor acabado… mas se uma pessoa não tiver evolução técnica… Quer dizer, eu não tive aulas de nada, nem de instrumentos nem de canto, mas sempre tentei aperfeiçoar a minha técnica vocal. Achar a minha voz, por assim dizer. No fim, no meu microcosmos, senti: “Agora pode bater-me mais. E está a bater mais…”
E quando passaste para o segundo patamar dessas escalas?
Era o pessoal, o meu pessoal mais próximo, a dizer: “Pronto, ya! Foda-se, tá-se! É isto!” E depois é uma gota que cai e vai gerando uma onda.
“[Ao vivo] acontece-me aquele fenómeno de conseguir ver todas as pessoas como uma. Quase que se transforma numa espécie de espelho… há uma relação quase íntima, como se eles fossem eu, mesmo que estejam lá montes de pessoas!”
Uma onda que também se vai espalhando ao vivo. Tens alguns concertos marcados para breve – e ligados ao universo dos festivais de cinema. Como é que é o Conan Osiris ao vivo?
É uma cena que eu tenho tentado trabalhar muito. Porque gosto de meter coisinhas novas em cada show, dar algumas prendinhas. Às vezes tenho uma tendência que é uma faca de dois gumes: como me farto das coisas, acabo por ter de encontrar coisas novas para marcar a diferença, mesmo que até agora só tenha dado uns três concertos (risos). Mas tento dar essas prendinhas.
E sentes-te à vontade em frente do público?
Sinto. De certa forma acontece-me aquele fenómeno de conseguir ver todas as pessoas como uma. Quase que se transforma numa espécie de espelho… há uma relação quase íntima, como se eles fossem eu, mesmo que estejam lá montes de pessoas! Naquele momento há uma conexão cerebral, ou energética, que acaba por fazer com que eu ache que estou a falar comigo, ou, pelo menos com a parte de mim que possa estar nessas pessoas, percebes?
Tudo isto por causa da identificação que tu imaginas que aquelas pessoas sentem com a tua música. É isso?
Exato. Basicamente é uma parte de imaginação e outra que é, de alguma forma real. Nem que seja pela parte humana – de seres vivos que na minha cabeça se transformam em mim. É como se fossem minha família, então é na boa.
A ajudar a todo este reconhecimento, há um lado muito rítmico na tua música. Até pelas tuas ligações à eletrónica, como nos contaste.
A parte rítmica é muito importante. E o tempo também: é o que ajuda a fazer escalar o lado da emoção, a balançar o masculino e o feminino dentro das composições. Mesmo quando ainda não tinha encontrado uma voz para falar, ou uma letra para explicar o que estava a pensar, na minha cabeça sempre esteve a ideia de chorar e dançar ao mesmo tempo. É algo omnipresente… É um género de exaltação que não sei bem explicar. Mesmo que seja a música mais triste, de fazer chorar as pedrinhas da calçada, tem que estar lá o calceteiro a bater as pedras ao mesmo tempo…
“O ritmo é muito importante e o tempo também: é o que ajuda a fazer escalar o lado da emoção, a balançar o masculino e o feminino dentro das composições. Mesmo que seja a música mais triste, de fazer chorar as pedrinhas da calçada, tem que estar lá o calceteiro a bater as pedras ao mesmo tempo”
Como é que consegues fazer com que todos estes ritmos que aparecem na tua cabeça façam sentido? Da eletrónica ao fado; da canção cigana ao kizomba; do hip hop à dança árabe…
A cena é que não tenho que conseguir muito, porque basicamente eu sou só um output. Isso já está tudo dentro de mim e eu só organizo. Então eu nem tenho que procurar muito fazer sentido, porque para mim já faz sentido na minha cabeça. É uma questão de exteriorizar uma coisa que já está misturada dentro de mim.
E são todas estas referências – a kizomba, a eletrónica, o hip hop, a canção cigana, o tarraxo… – que fazem parte do teu catálogo de influências?
Todas. Há pouca música de que eu não goste – é mais fácil falar assim.
Do que é que não gostas?
Não te saberia dizer… é mais uma questão de cor, tonalidade de escalas e andamentos que não gosto do que de tudo o resto.
Não distingues por géneros musicais, portanto. Agora que tens uma atenção que se calhar não tinhas tido até agora, de começares a tocar ao vivo, estás com mais vontade de começar já a criar música nova?
Epá, eu até tenho de me prender para não estar a gastar tanto tempo a compor, porque sou um bocado compulsivo com essas porcarias. Eu estou no banho e já fiz uma música nova que tenho logo de ir gravar, porque se não aquilo vai desaparecer num espaço de dez segundos. Até tenho que me acalmar para não estar sempre a fazer coisas, senão isto é uma diarreia compositiva que… esquece! (risos)
Há discos ou EPs previstos para os próximos tempos?
Oh senhor! Isto de previsões… nunca se sabe! Quando eu quiser é mandar cá para fora uma coisinha nova e ninguém sabe! (risos)
Entrevista: Bruno Martins | Fotografia: Mafalda Pombo Lopes