(Quar)antena 3

A operação da Bold merece todo o hype!

Trata-se de um pacote de filmes com o selo, a grife, da Cinema Bold, distribuidora de filmes independentes mas provocadores. São seis, e chama-se Bold X6 — Ainda Não Viste Tudo: seis filmes que, face à pandemia, se estreiam primeiro no mercado do home cinema (podem ser alugados nos clubes de vídeo das operadoras e na Filmin Portugal), podendo mais tarde ser vistos ainda no grande ecrã.

Numa altura em que não será tão cedo que os cinemas terão luz verde para abrir, esta iniciativa de colocar cinema novinho em folha nas nossas casas é pioneira e vale por ser uma série de propostas absolutamente vital. São filmes que fizeram o melhor dos circuitos dos festivais internacionais e que representam uma assinalável variedade, conta-nos o Rui Pedro Tendinha.

 

O melhor dos seis filmes é precisamente o primeiro, já na próxima semana (23 de abril): Monos, de Alejandro Landes, uma história de sequestro algures nas montanhas remotas da Colômbia. Um grupo de guerrilheiros adolescentes tem em sua posse uma cidadã americana. Pressente-se que são controlados por forças rebeldes, mas em certa altura parecem abandonados…

Sob o som da música minimal de Mica Levi, Landes guia-nos perante uma vertigem sensorial que recorre ao imaginário de William Golding (O Senhor das Moscas) e de Joseph Conrad (Coração das Trevas). Pelo meio, há a presença da atriz americana Julianne Nicholson, sempre preciosa, e a presença sensual do nevoeiro, da bruma da selva e de uma humidade que se cola aos nossos olhos.

Presente no Festival Sundance, chegou a ser o pré-candidato da Colômbia nos Óscares. Monos é a possibilidade de um poema que reflete sobre o absurdo da guerra. Mas aqui a poesia é visceral, coisa do lado físico e sempre brotada de uma violência que tem também uma sexualidade diabólica.

 

Salve Santanás?, documentário de Penny Lane, será lançado na semana logo a seguir, a 30 de abril. Um olhar curioso e importante sobre o estado da liberdade religiosa nos EUA a partir da investigação sobre um grupo de simpatizantes do demónio chamado The Satanic Temple. Quando se pensava que isto era mais um gozo a excentricidades azeiteiras da América profunda da família de Tiger King, eis que a cineasta propõe um pensamento sobre a liberdade de expressão. Mais importante, ficamos a perceber que este grupo de ativistas são sobretudo provocadores bem intencionados e inteligentes que lutam contra uma América com ditadura do Cristianismo.

Hail Satan? descodifica também o fascínio da iconografia de Satanás nas artes e num imaginário coletivo. Tão divertido como pedagógico, é cinema documental com ponto de vista. Porque em dias de flagelo da administração Trump, a religião é cada vez mais um ato político…

 

Outra das jóias da coroa deste pack (7 de maio) vem dos países nórdicos, mais concretamente da Dinamarca. Chama-se Rainha de Copas e foi um dos filmes presentes nos Óscares europeus, os EFA, em dezembro passado. Um conto de pedofilia sobre uma mulher de cinquenta anos que se envolve sexualmente com o enteado menor.

Rainha de Copas é um filme-choque de May el-Toukhy alicerçado numa interpretação espantosa de Trine Dyrholm, a mesma que deslumbrou como Nico em Nico, 1988. Exemplo de um cinema europeu que acredita em emoções fortes e capaz de nos afrontar com temas tabus. As cenas de sexo explícitas inquietam como devem inquietar, e o ensaio sobre a perda dos limites da sexualidade é particularmente tocante. Se o cinema ainda causasse discussões, este filme era um ai-jesus para debates polémicos…

 

Em meados de maio (dia 14), será a vez da iconografia única de Quentin Dupieux com 100% Camurça, candidato ao filme mais tresloucado de 2020: um homem de meia-idade apaixona-se por um casaco de camurça ao mesmo tempo que decide assassinar todas as pessoas que usam blusões.

Descoberto na Quinzena dos Realizadores de 2019, Le Daim reúne Adéle Haenel e Jean Dujardin num western gore tão tolo como hilariante. Tal como em Rubber — Pneu, as marcas do nonsense são estruturadas como uma provocação performática. Obviamente, é apenas para estômagos menos sensíveis, capazes de aguentar crânios desfigurados, litros de sangue e um absurdo elevado aos limites. É bem capaz de ser o melhor filme deste cineasta à parte do cinema francês.

 

A bitola de qualidade mantém-se a 21 de maio, data do lançamento de Liberdade, de Kirill Mikhanovsky, um cineasta americano de origens russas. É a primeira vez que uma obra sua chega a Portugal depois de esta comédia dramática ter tido uma receção entusiasmante em Cannes 2019.

Baseado na própria juventude do cineasta, a ação acompanha as peripécias de um motorista de pessoas com deficiências físicas que decide dar uma boleia a emigrantes russos do Wisconsin para o funeral de uma tia.

Mikhanovsky filma tudo com uma liberdade formal que faz com que do preto-e-branco se passe para cores desbotadas e em seguida para 16 mm numa estética de docudrama da pesada. Mas o que é mais significativo deste olhar por uma comunidade russa nos EUA são os pequenos achados e os mil e um choques culturais com uma América de pobreza extrema. Give Me Liberty é um belo recital de personagens reais numa tapeçaria de “true stories” que soam a lições de vida para uma geração que tem de abrandar. Vai fazer muito sentido nestes tempos de quarentena…

 

Por fim (28 de maio), o catálogo tem também Ema, de Pablo Larraín, à partida o filme mais sonante destes seis, mas que é em bom rigor a maior desilusão. Um Larraín (o chileno que nos deu Não e Jackie) a filmar uma história de uma identificação feminina em modo de simbolismo constante. A Ema do título é uma bailarina de dança moderna que após a separação do filho adotivo entra numa reinvenção interior que a torna ninfomaníaca. Uma mulher em trip sexual que renega a dança moderna pelos prazeres sensuais do reggaeton.

Conto sobre a urgência de ficarmos livres perante o nosso corpo, Ema tem meia dúzia de planos poderosos, mas o seu excesso de estilização e um argumento que tem fios demasiado soltos tornam-no num espalhafatoso falhanço artístico. Ainda assim, não vai mal ao mundo por aderir com um pé atrás, quanto mais não seja porque Gael García Bernal e a protagonista Mariana di Girolamo são “de puta madre”!