Numa homenagem a Márcia Breia, no “Agora, Memórias de Serenella Andrade”, o encenador Luís Miguel Cintra entregou-nos uma carta que emocionou a atriz.
“Querida Márcia,
Assim, por escrito, ainda se ouve mais o que digo, ou melhor o que te quero dizer, quando te prestam homenagem. Por nada deste mundo podia deixar de me juntar aos que finalmente tiveram a boa ideia. E agradeço a quem teve a iniciativa de me convidar a dar-te um abraço, por mais virtual e virtuoso que seja.
Mana, senhora dommana, raínha, santa e pecadora, por mais que mudes de personagem, sempre antes de tudo serás uma mulher de carne e osso, valente, divertida nos bons momentos, grave nos momentos difíceis, capaz de te excederes com generosidade, e sobretudo incapaz de desprezares aquilo que a vida te deu a viver.
Deves ter sido de todos nós, e desculpa se continuo e com orgulho continuarei para sempre a incluir-te nesta palavra nós que ainda uso quando me quero referir a um grupo de pessoas, o teatro da cornucópia, que durante anos e anos viveram em conjunto a ilusão de, através do teatro, contribuírem para a alegria, a inteligência, o sentido crítico, a consciência política, nossos e dos outros.
Deves aliás ter sido de todos nós a que menos deixou que o profissionalismo e a competência que evidentemente tivemos, deixasse abafar a vitalidade, a cumplicidade, a amizade pelos outros, a humanidade que é a nossa verdade e o material para o trabalho artístico. E por isso mesmo foste, és tão boa actriz. Tive prazer verdadeiro de tantas vezes ter sido no palco teu par: na Lady Ann do Ricardo III, e na Beatrice do Muito Barulho por Nada, na Simpatia do De Filippo, na Macha das 3 Irmãs e nos homens, das Latas de Conserva do Bond,etc. Estou de facto reconhecido ao Orlando Costa que te nos apresentou.
Deves ter sido de entre todas as actrizes portuguesas a que mais papéis interpretou, espectáculos com textos de todas as épocas tantas vezes dificílimos de interpretar. Obrigado, Márcia. Podia fazer uma lista quase infindável de tão interessantes interpretações. Mas prefiro lembrar dois episódios que nunca esquecerei. Quando, pouco tempo depois do 25 de Abril em 75 estreámos o primeiro espectáculo na sala da rua Tenente Raul Cascais, que viria a ser durante 40 e tal anos sede da Cornucópia, a Verónica, a tua filha mais velha, então bébé, a nossa querida Verónica vinha contigo para o teatro (a quem a havias de deixar?) e dormia na carpintaria em cima de duas cadeiras durante Os Pequenos Burgueses de Gorki. (Todos achámos que tinha de ser assim. ) Só que a meio do espectáculo a pequenita que já sabia o que era um palco, acordou e passou muito devagarinho, encostada á parede e sempre a olhar para o chão para que ninguem a visse. Isto a propósito de nascer. E a propósito de morrer, só quem também lá estava de lágrimas a correr pela cara abaixo, pode saber o que foi a coragem da Márcia quando se ofereceu para de um dia para o outro, vestir o fato da Alda Rodrigues que tinha morrido de repente vítima de aneurisma, e sabendo o papel de cór, também a chorar, substituíu a Alda, para que o espectáculo não parasse.
Querida Márcia, é por estas e por muitas muitas outras, que te digo, obrigado , Márcia, do fundo do coração e até sempre, mesmo quando já ninguém se lembrar.
O teu Luís Miguel. “