Imagine acordar um dia e não se lembrar de parte da sua vida. Foi o que aconteceu com Alessandra Maiani, que depois de um acidente, perdeu 20 anos de memórias.
Alessandra é brasileira, natural do Rio de Janeiro, vive em Portugal desde 2018 e é Engenheira Eletrotécnica. Tem uma vida marcada por muitos desafios. É a mais velha de 3 irmãs e foi criada com elas pelo pai a partir dos 6 anos, depois do divórcio dos pais. Casou e engravidou aos 16 anos e seguiu os estudos na área da contabilidade. Antes dos 20 anos, já trabalhava e cuidava da sua filha Ana Caroline. Voltou a engravidar e, nessa altura, o seu primeiro casamento terminou. Alessandra foi viver com os filhos para junto das duas irmãs, Amanda e Aline. Voltou a casar e viveu com o segundo marido durante 14 anos. Quando se voltou a separar, Alessandra, com dois filhos praticamente criados – a filha já na faculdade e o filho no ensino técnico – decidiu voltar a estudar e matriculou-se na Faculdade de Engenharia onde se formou em Engenharia Eletrotécnica. (No Brasil é Engenharia Elétrica) Foi nesta altura, em 2014, que conheceu Carlos, que é o seu atual marido.
Em 2018, Carlos teve uma proposta de trabalho em Portugal e Alessandra e o filho vieram com ele. Enquanto esperava pelos documentos de residência e pelas equivalências da sua Universidade de Engenharia, Alessandra trabalhou num café como empregada de mesa e como Uber. Assim que o seu diploma da Ordem dos Engenheiros foi validado, arranjou emprego como Diretora de Obra/Responsável Técnica, numa empresa de construção civil portuguesa.
Tudo corria bem até que, a 13 de julho de 2022, o impensável aconteceu. Alessandra foi entregar uma obra a um cliente junto com a sua equipa e a meio de uma reunião, pediu licença para sair para ir fazer/atender um telefonema. A equipa estranhou que estivesse a demorar tanto tempo e foi procurá-la. Encontraram-na desmaiada numa sala.
Teve algumas convulsões e quando, finalmente, a conseguiram reanimar, Alessandra estava muito muito confusa e assustada. Não se lembrava de nada. Achava que tinha sido raptada. Estes relatos foram dados pelos colegas.
Tentaram que ela desbloqueasse o telemóvel, mas ela não reconhecia o objeto. Usaram o dedo dela para o desbloquear e perguntaram-lhe o nome do marido para lhe ligarem, mas ela só se lembrava do primeiro marido, o pai dos filhos. Sem sucesso, os colegas ligaram para o seu chefe que contactou Carlos.
Na ambulância, os técnicos perceberam que Alessandra estava com falhas de memória e avisaram Carlos que ela poderia não se lembrar dele.
Quando Carlos chegou, apresentou-se como seu marido muito calmamente e mostrou-lhe as fotografias dos filhos, a seu pedido. Não os reconheceu! Lembrava-se deles pequeninos e já eram adultos! Conta-me que chorou desalmadamente e não percebia o que lhe estava a acontecer.
Foi levada para o Hospital de São José e na triagem, com a médica neurologista, perceberam que tinha um atraso de memória de cerca de 20 anos. Ficou internada no Hospital dos Capuchos durante 17 dias e fizeram-lhe muitos exames. Nunca perceberam ao certo o que causou esta amnésia, mas suspeitam que tenha sido uma artéria que tenha ficado momentaneamente sem oxigenação.
No dia seguinte, Sérgio Júnior foi visitar a mãe e ela, quando viu o filho de barba, ficou muito nervosa e começou a chorar.
“Como é que era possível não me lembrar dele?”.
Carlos, a pedido dos médicos, não deixou o seu telefone pessoal com ela para não lhe causar mais ansiedade, nem ser contactada por pessoas que quisessem perceber o que lhe estava a acontecer. Ficou apenas com o telefone profissional onde não tinha muitos contatos pessoais. Alessandra recorda estes 17 dias no Hospital como um período de muita ansiedade. Conta-me que a colega de quarto a ensinou a mexer no telefone, navegar na internet e a usar as redes sociais – Ela não conhecia o Facebook, só se lembrava de usar o Orkut.
Carlos tinha-lhe oferecido um caderno para ela ir apontando tudo o que sentia e algumas memórias que iam surgindo, sobretudo em sonhos.
“Lembrava-me de muita coisa em sonhos, mas não eram bem memórias reais… tinha sempre de confirmar com o Carlos ou com a minha irmã o que era real”.
A memória da morte do pai veio-lhe enquanto passeava pelos corredores do Hospital.
“Lembrava-me que o tinha acompanhado muito em Hospitais quando ele teve cancro. Foi muito duro, foi como que sentir essa dor pela primeira vez, a dor da perda do meu pai”.
Quando finalmente teve alta, Carlos foi buscá-la ao Hospital e Alessandra ficou chocada com a tecnologia do carro. Passearam um pouco pela cidade de Lisboa, devagarinho, e Alessandra ficou encantada com a cidade. “Já tinha observado um pouco pela janela do quarto do Hospital, que tem vista para o rio”. Quando chegou a casa foi muito estranho porque não se recordava de ali viver, das suas roupas… A filha Ana Caroline ficou com ela uns dias para apoiar na sua adaptação. Começou a fazer várias terapias e fazia exames todas as semanas. Ficou de baixa na empresa onde trabalhava durante vários meses.
Carlos tentou ativar o seguro de acidentes de trabalho, mas não conseguiram provar porque ninguém sabia ao certo a causa do desmaio/acidente. A empresa foi muito compreensiva e deu-lhe muito apoio nesta fase. Em março de 2023, a frustração tomou conta dela e falou com a empresa e com a sua psicóloga porque queria voltar ao trabalho. Já estava a começar a sentir-se muito deprimida e queria retomar a sua vida. A empresa que, entretanto, já tinha contratado alguém para a substituir, acedeu ao pedido e Alessandra voltou.
No primeiro mês, visitou muitas obras na companhia do atual Chefe de obra e, apesar daquele trabalho lhe ser familiar, as memórias teimavam em não voltar. Percebia como as coisas funcionavam, mas não tinha confiança que o soubesse fazer sozinha. Não sabia como o tinha aprendido. Acabou por ficar dois meses no escritório, sem visitar obras, mas não tinha nada para fazer porque na filial de Lisboa não tinham esse tipo de funções. Começou a sentir-se muito inútil e falou com o Carlos porque estava a pensar despedir-se. Carlos deu-lhe o seu apoio total e assim foi Alessandra começou a fazer formações na sua área de Engenharia e começou a dedicar-se mais a sério a um hobby que tinha – a costura criativa.
Abriu um negócio nas redes sociais – o Ale Atelier – onde vende várias bolsas personalizadas.
Hoje ainda não percebeu o que quer mesmo fazer – se quer dedicar-se a tempo inteiro à costura criativa ou ser engenheira – mas gosta muito das duas coisas e por enquanto está feliz a costurar e a fazer as formações em Engenharia. Conta-me que Carlos foi o seu pilar nestes dois anos. Elogia muito a sua paciência, gentileza e cuidado. Voltou a apaixonar-se por ele e hoje é muito feliz ao seu lado, como sente que sempre foi.
Recorda outro momento muito difícil nesta jornada: quando lhe contaram do falecimento da sua irmã Aline que tinha duas filhas das quais não se recordava. “Eu queria muito voltar ao Brasil, mas o que me deixou mais triste foi perceber que muitas pessoas que amava muito já não estavam presentes”. Também lhe custa muito a sensação de ter perdido a infância e juventude dos filhos. Com a terapia, tem aprendido a viver com essas perdas e está a aprender a viver o hoje, o agora. O filho Sérgio Júnior vive com ela e foi muito difícil no início adaptar-se à sua independência.
“Continuava a tratá-lo como se ele tivesse 7 anos e isso causou muito desconforto nele”.
Hoje em dia, os filhos brincam, dizendo que ela está uma mãe muito diferente, mais jovem, mais animada e moderna. Continua a recuperar algumas memórias, mas ainda não sabe datá-las. Todos os dias de manhã faz exercícios para ativar e acelerar a sua memória. Só mais recentemente é que começou a sair de casa sozinha porque tinha medo de se esquecer de coisas e não conseguir voltar para casa. Sabe que é um processo longo, mas está com esperanças de um dia conseguir recuperar todos os pedaços do seu passado.