Duas irmãs portuguesas que frequentavam um colégio interno em Beirute fugiram para ver os Beatles. Os pais descobriram, tiraram-¬nas da escola e elas separaram-¬se das melhores amigas, duas americanas do Texas.
Cinquenta anos depois, as quatro reencontraram- ¬se no Facebook.
Era 7 de junho de 1965, uma segunda-feira.
Os Beatles tinham embarcado às 7 da manhã em Amsterdão, rumo a Hong Kong, mas o avião haveria de parar em Beirute para reabastecer combustível. Na véspera, a rádio tinha anunciado que os Fab Four iam fazer uma aterragem no Líbano.
Maria João e Maria Luísa Tito de Morais estavam no quarto com as melhores amigas, Cindy e Jana Pellusch, duas texanas que estudavam no mesmo internato. Ao ouvirem a notícia quase nem precisaram de combinar nada. “Na manhã seguinte dissemos que precisávamos de ir ao dentista e apanhámos um táxi para o aeroporto”, conta agora Maria João, 67 anos. Estavam absolutamente apaixonadas pelos rapazes de Liverpool. Quando chegaram puseram¬-se numa grande varanda virada para a pista, à espera. “O avião ainda não tinha pisado o chão e vimos gente a correr de todo o lado, aquilo era a loucura. Então saltámos pela varanda, um piso inteiro sem nos magoarmos. E lá conseguimos chegar perto do aparelho.” A polícia bem tentava dispersar a multidão, mas as raparigas arranjaram maneira de furar o cerco. Jana e Maria Luísa tentaram subir a escada da frente, Cindy e Maria João foram pelas traseiras, a zona técnica onde entram as bagagens. “Não conseguimos vê-los, infelizmente”, conta Maria Luísa, 65. “Mas no dia seguinte aparecemos nas capas dos jornais e das revistas, com os seguranças a tentarem proteger os músicos e nós a tentarmos furar o cerco.” Uns amigos do pai acabariam por levar-lhe uma dessas publicações. “Não sofremos consequências diretas, mas no fim desse ano saímos da escola em Beirute e passámos a estar sob o olho da família. O nosso pai achou que tínhamos liberdade a mais”, diz Maria João. “Mas nunca nos esqueceremos daquele ano no Líbano. E daquele dia em que fomos atrás dos Beatles.”
Há um par de meses, a saga das irmãs Tito de Morais concorreu ao Facebook Stories, uma aplicação que conta histórias de boas coisas que aconteceram por causa daquela rede social.
Os representantes de Mark Zuckerberg em Portugal dizem que o reencontro das quatro amigas por computador é a primeira narrativa com sotaque português. É que as irmãs Pellusch continuaram a estudar em Beirute, mas o pai das manas Tito de Morais tirou-as umas semanas depois do colégio e levou-as para Bagdade, onde tra-balhava como médico ao serviço da Organização Mundial de Saúde. “Ele percebeu a liberdade com que vivíamos no Líbano. Nós fazíamos o que nos dava na real gana”, conta Maria João. “Então decidiu que era melhor ficarmos sob supervisão familiar.” Tinham chegado a Beirute em 1964, Maria João com 16, Maria Luísa com 14. A cidade ainda não tinha perdido o título de Paris do Médio Oriente, era cosmopolita e arejada, muito mais arejada de ideias do que Lourenço Marques, atual Maputo, em Moçambique, onde tinham nascido e crescido. “O nosso pai teve vários problemas com a ditadura, pelo que tivemos de fugir do país.” Estados Unidos primeiro, Iraque depois. Podiam ter ficado aí, mas os pais decidiram matriculá¬las num colégio interno, a Alhiah Girls School – estabelecimento de ideias avançadas e liberais para meninas, em Beirute. “Quando chegámos éramos as únicas alunas de pele branca. Podíamos sair quando quiséssemos e nós saíamos inevitavelmente para o Hotel Phoenicia, que tinha as melhores festas da cidade.” A meio desse ano chegaram Cindy, de 12 anos, e Jana, de 14.
O quarto das irmãs portuguesas era o centro de operações para tudo o que as raparigas faziam. “Estudávamos muito pouco, mas passávamos os dias a sonhar com os Beatles”, diz Cindy. A determinada altura decidiram começar a tratar¬-se pelo nome do rapaz com quem queriam namorar. Ronnie era Paul McCartney, Jana era John Lennon, Tony era Ringo Star e Cindy era George Harrison. “Depois, uma noite, ouvimos o Hard Day’s Night na rádio e a seguir anunciaram que eles vinham a Beirute. Meu Deus, ficámos completamente histéricas. Éramos todos os estereótipos da Beatlemania.”
Depois da separação foram trocando postais, algumas cartas. As americanas haveriam de voltar ao Texas, mas Maria Luísa casar¬ia com um inglês e mudar¬ia para Londres, enquanto Maria João rumava ao Porto, onde nunca tinha estado. Os anos foram passando, o contacto foi-se perdendo. Até que, há um par de anos, Jana Pelleusch decidiu procurar o nome Tito de Morais no Facebook. Encontrou um nome, enviou-¬lhe uma mensagem, era o irmão mais novo de Ronnie e Tony. “Isto é maravilhoso”, diz cada uma à vez. Então as quatro inscreveram-¬se na rede social, retomaram o tempo perdido num instantinho. Trocas de fotografias, as histórias de vida atualizadas, um passado todo feito de gargalhadas. “Parecia que estávamos de volta àquele dia em que fugimos para ver os Beatles”, diz Maria Luísa. “E a toda essa felicidade.” Depois de quase cinco décadas sem saberem do paradeiro umas das outras, as quatro amigas de Beirute começaram a falar todos os dias. E já estão a planear uma reunião. Pode ser nos Estados Unidos, pode ser em Portugal, mas aquilo que todas querem é voltar a Beirute.