A Revolução e a Cultura Popular


A seguir ao 25 de Abril, Portugal conheceu um contexto prolífero ao nível de expressões culturais. Além das manifestações culturais tradicionais, como, por exemplo, romarias, feiras, entre outras, também se “respirou” formas de expressões culturais que não haviam sido permitidas pelo Estado Novo ou que não haviam tido adesão manifestamente considerável, como o pichamento de superfícies planas.


CULTURA POPULAR – A ALMA DE UM POVO

Mesmo no período mais intenso da luta política e social da revolução que se seguiu ao 25 de abril, os portugueses mantiveram no essencial as suas práticas culturais e de relacionamento com os poderes que ao longo da sua história se foram circunstancialmente sucedendo. Depois do 25 de Abril, em especial no Portugal rural, no interior, as manifestações de cultura popular não sofreram alterações significativas com o processo revolucionário. No verão de 1975, realizaram-se, como se nada tivesse ocorrido, as grandes feiras e romarias que eram tradicionais, algumas com origens antiquíssimas, organizadas por confrarias religiosas, comissões fabriqueiras, com procissões, arraiais, missas solenes, bênçãos. Foi assim com as festas e romarias da Senhora da Agonia de Viana do Castelo, com as do Bom Jesus de Braga, do Senhor dos Remédios de Lamego, da senhora da Nazaré, entre tantas outras, misturando, como há séculos, o sagrado católico e o profano das antigas culturas pagãs. Foram lançados foguetes e tocadas músicas tradicionais com bombos e gaitas de foles. As populações rurais celebraram as colheitas, as vindimas, fizeram as matanças do porco. No verão foram festejados os Santos Populares. No Porto, o São João reuniu nesse ano os seus fiéis na rotunda da Boavista. A XII Feira do Ribatejo foi inaugurada em junho, no local de sempre, em Santarém. A festa associada à cultura do vinho e do cavalo, a Feira de São Martinho na Golegã, teve lugar em novembro, no tradicional São Martinho.

As habituais cerimónias da peregrinação a Fátima de maio de 1975, que são grandes manifestações de cultura popular, foram presididas pelo bispo de Viena, embora a Rádio Renascença, ocupada pelos trabalhadores, não tivesse sido autorizada a transmiti-las.

A temporada tauromática, outra das tradicionais manifestações da cultura ibérica, decorreu com normalidade. A 11 de maio de 1975, o cavaleiro Manuel Conde deu alternativa na Praça do Campo Pequeno, a Emídio Pinto, filho de uma das glórias do hóquei em patins.

As competições desportivas fizeram desde sempre parte da cultura dos povos. Um dos desportos mais populares era o ciclismo. No verão de 1975 a volta a Portugal foi substituída pelo Grande Prémio Clock, uma nova marca de cerveja, com prólogo e 10 etapas. Venceu Joaquim Agostinho. Realizou-se a tradicional corrida Porto-Lisboa. O campeonato nacional de estrada teve Marco Chagas como vencedor.

 No outro dos desportos de maior popularidade, o campeonato nacional de futebol da época 74-75, decorreu normalmente. O Benfica foi campeão nacional. A selecção nacional de futebol participou no Campeonato da Europa. A 12 de novembro de 1975, jogou no Porto, com a Checoslováquia. Empatou 1-1.

 Mas o impacto da revolução irá fazer-se sentir com intensidade noutros campos da cultura, provocando alterações significativas na forma como algumas artes se relacionavam com a sociedade. No caso da música designada por ligeira, consolidou-se o movimento que ficou conhecido por nova música popular portuguesa, afastando dos palcos as manifestações mais identificadas com política cultural do Estado Novo, o folclore musical, que contrapusera o mundo rural às derivas ideológicas operárias e urbanas, o chamado nacional-cançonetismo e o fado. Que passaram por uma época de apagamento.

Sinal dos tempos, até o Festival da Canção organizado pela RTP para competir na Eurovisão foi ganho em 1975 por um capitão que participara no 25 de abril. Duarte Mendes venceu com a canção Madrugada, uma competição onde participaram autores e cantores habitualmente ausentes destes programas, como Jorge Palma, ou José Mário Branco.

O fim da censura e o sentido do dever de participação no processo político fizeram surgir novos músicos, novos cantores, uns vindos da semiclandestinidade a que o regime os sujeitava, outros vindos do exílio no estrangeiro. A José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Fausto, Fanhais, Carlos Alberto Moniz, José Jorge Letria, Samuel juntam-se Sérgio Godinho, José Mário Branco, Tino Flores, Luís Cília, vindos do exílio, entre outros nomes fundamentais da música portuguesa nos últimos quarenta anos. São criados colectivos de artistas de intervenção, a Brigada Vítor Jara e o Grupo de Ação Cultural, o GAC.

Em 1975 Vitorino estreou-se com o seu primeiro disco assinado com nome próprio: “Semear salsa ao reguinho”, um ponto de referência na redefinição de padrões estéticos e caminhos que a música popular viria a trilhar a partir do meio da década de 70. Nesse primeiro disco estava incluída a canção que se tornaria no seu maior êxito: “Menina Estás à Janela”. Fausto publicou o seu segundo álbum: “Beco sem saída” e fez os arranjos musicais de José Afonso, em “Que Nunca Mais”. Todos eles serão companheiros de palco e percorreram o país em concertos populares de intervenção política.

Além da música o processo revolucionário foi apropriado por duas outras formas artísticas típicas da cultura popular urbana, nos cartoons e nos graffitis. À reserva e desconfiança do mundo rural, a cultura das cidades e dos seus bairros periféricos desafia e questiona o poder com atrevimento e sarcasmo, por vezes muito ácido. Questionar as contradições da realidade é o principal objectivo do cartoon, o termo que substituiu o de caricatura, trazendo a lume questões sérias a sorrir.

Os cartoons do período revolucionário são herdeiros de uma tradição que vem do final de século XIX, na passagem para o século XX, com autores como Rafael Bordalo e, mais tarde, Emmérico Nunes, ou Stuart Carvalhais. Com a censura imposta pelo Estado Novo, o cartoon quase deixou de existir para ressurgir após o 25 de Abril com uma nova geração onde se destacaram nomes como o de João Abel Manta, Cid, António, Vasco, Siné, Tom, Vilhena, entre outros que continuam a fazer crítica política e social até à actualidade.

Uma das formas mais originais e visíveis de extravasação da liberdade, residiu nas paredes do país, através dos graffitis. Tudo foi escrito e pintado nas paredes após o 25 de Abril. Foi aí que as pessoas expressaram o seu entusiasmo, ou a sua raiva, os desejos, as reclamações, os desabafos, a ironia, as palavras de ordem. As inscrições e figurações nos muros, quer fossem apenas reflexos partidários, quer contassem histórias individuais, colaboraram para o belo e impetuoso momento de liberdade que Abril proporcionou e de que ainda hoje permanecem alguns exemplos. Os graffitis foram porventura a mais genuína e democrática forma de expressão popular.

Fonte: Aniceto Afonso, Carlos Matos Gomes e Maria Inácia Rezola.

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