As Forças Armadas e a Revolução. Que lugar para o MFA ?


A ação do MFA foi fulcral para as profundas mudanças que Portugal viveu entre 1974 e 1975. Desde a preparação do golpe de Estado e a sua execução a 25 de abril de 1974, passando pela aplicação do Programa do Movimento das Forças Armadas e pela actuação de vários de elementos do MFA em organismos militares e políticos. O MFA foi um dos atores sociais mais determinante no Portugal pós-ditadura.


O MFA E A REVOLUÇÃO (I) – Que lugar para o MFA?

O 25 de Abril foi levado a cabo por um movimento estritamente militar, sem a interferência de partidos ou organizações políticas. No entanto, a necessidade de clarificar o sentido político e os objectivos do Movimento conduziram à preparação de um documento-programa que seria revelado ao país na madrugada de 26 e que acabará por se transformar no texto fundador da nova ordem saída do 25 de Abril de 1974.

O Programa do MFA esclarece que o objectivo prioritário do Movimento é a «instauração, a curto prazo, duma Democracia Política». Estabelece também quais as coordenadas do processo de transformação a levar a cabo: desmantelamento imediato dos organismos e instituições do regime deposto; amnistia imediata de todos os presos políticos «salvo os culpados de delitos comuns»; convocação, «no prazo de doze meses, de uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita por sufrágio universal, direto e secreto»; restabelecimento das liberdades fundamentais; lançamento dos «fundamentos duma nova política económica, posta ao serviço do Povo português» e de uma «nova política social que, em todos os domínio, terá essencialmente como objetivos a defesa dos interesses da classe trabalhadora e o aumento, progressivo, mas acelerado, da qualidade de vida dos Portugueses» e, finalmente, o «lançamento de uma política ultramarina que conduza à paz».

O Programa do MFA determina ainda quais os órgãos de soberania a instituir de maneira a garantir a transição. No novo esquema constitucional provisório avançado pelo Programa, não está previsto qualquer lugar para o MFA. Isto porque a sua ideia era a de, realizado o golpe de estado, delegar o poder que conquistara pela força das armas. No organigrama proposto, as responsabilidades eram repartidas por um órgão militar designado pelo MFA (JSN) e um órgão civil (Governo provisório). Ao primeiro caberia, essencialmente, gerir a situação até à constituição do governo provisório e fiscalizar toda a evolução do processo até à plena instauração de um regime democrático. Ao segundo são atribuídas funções de ‘gestão corrente’ até à realização de eleições legislativas e consequente formação do governo por elas legitimado.

A definição dessa tutela militar levou os Capitães a previamente determinar quem ocuparia dois dos lugares centrais da ‘nova ordem’: Costa Gomes (Presidente da República) e António de Spínola (na qualidade de Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas). No entanto, a mudança de regime envolveu necessariamente riscos para os seus promotores. Apesar de todas as providências tomadas, rapidamente se tornou evidente ser difícil criar as condições para garantir uma transição sem sobressaltos. A situação agravou-se com o surgimento de um conjunto de factores imprevistos, que alteraram radicalmente o projecto inicial do Capitães de Abril: a explosão da agitação social, a quebra da cadeia tradicional de comando das Forças Armadas e, sobretudo, a posição assumida por António de Spínola.

Os primeiros confrontos com António de Spínola levaram a que, a breve trecho, a ideia inicial dos Capitães de, uma vez derrubada a Ditadura entregar o poder, fosse definitivamente abandonada, criando o terreno propício para que o MFA se transforme num agente político da nova ordem, assumindo-se como organismo de vigilância e de controlo do cumprimento do Programa do MFA e, ainda, como um centro de poder revolucionário.

Ainda que o essencial da disputa entre António de Spínola e a Coordenadora do MFA se trave em torno da questão colonial, em causa estava também um projecto político mais amplo e a forma como se deveria processar a transição. As suas diferentes perspectivas quanto à essência e ritmos da transição está patente no episódio que ficou conhecido como “Golpe Palma Carlos”, uma tentativa de golpe palaciano que, a ter sido bem-sucedido, teria permitido um considerável reforço dos poderes do primeiro-ministro e do Presidente da República, assim como uma profunda alteração ao calendário eleitoral previsto pelo Programa. De facto, enquanto de acordo com o Programa, primeiro se deviam realizar eleições para a Assembleia Constituinte, depois a nova Constituição e só depois se elegeria o Presidente da República, de acordo com o projecto «Palma Carlos», primeiro deveriam realizar-se eleições presidenciais (Outubro) aprovando-se em simultâneo uma Constituição provisória. A proposta foi rejeitada e Palma Carlos demitiu-se.

Apesar da importante alteração na correlação de forças, em favor do MFA, que a constituição do II Governo Provisório representou, temos de esperar pelo afastamento de António de Spínola da Presidência da República para que a ideia de um regresso à “pureza inicial” do Programa do MFA se consolide. Nesta nova etapa do processo revolucionário, a institucionalização do MFA entra na ordem do dia – ultrapassada a questão da descolonização, tornava-se urgente clarificar as efectivas atribuições dos centros de poder e, sobretudo, definir o alcance do poder militar. Um primeiro passo nesse sentido será a constituição, no imediato pós 28 de Setembro, do Conselho dos Vinte, embrião do futuro Conselho da Revolução. Personificando uma tendência evolutiva do MFA tendo em vista a sua maior intervenção nas decisões políticas, o Conselho dos Vinte vai estar no centro de algumas das decisões mais importantes desta etapa do processo Revolucionário.

A criação da Assembleia de Delegados do MFA (AMFA) ou Assembleia dos Duzentos representou mais um sinal da crescente assunção do poder político-militar pelo MFA. Integrando representantes dos três ramos das Forças Armadas, este organismo foi a resposta directa à necessidade de assegurar a predominância do Movimento em relação às Forças Armadas. A sua primeira reunião, que assumiu a aparência de um congresso nacional do MFA, realizou-se a 6 de Dezembro, no IAEDN, em Lisboa, com a presença do Presidente da República e de toda a elite militar.

Enquanto força central do xadrez político nacional, a acção do MFA direcciona-se em três sentidos: antes de mais, na clarificação das atribuições dos centros de poder; depois, na definição de um programa económico e social; e, finalmente, na definição das etapas necessárias para a conclusão da transição.

O programa do MFA falava vagamente na instauração de uma democracia. Mas que tipo de democracia? As possibilidades quanto ao caminho a seguir eram muitas, num momento em que a sociedade portuguesa se encontra em efervescência, fazendo pleno uso das liberdades conquistadas. O MFA vai querer assumir a escolha de um caminho, mas constatará que também para si, os caminhos são diversos.

Fonte: Aniceto Afonso, Carlos Matos Gomes e Maria Inácia Rezola.


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