Oub'lá

Vera Marmelo

“Hoje fotografo de uma forma muito mais livre e despreocupada”

 

Foi há dez anos que Vera Marmelo fez nascer o blogue v-miopia. Esta tem sido a casa do seu hobbie profissional: a fotografia. Vera, que hoje celebra o seu 32.º aniversário – parabéns, Vera! – começou a fotografar quando tinha pouco mais de 20 anos porque queria ficar próxima dos amigos que faziam parte do movimento cultural do Barreiro. Eles faziam música, ao passo que ela não sabia tocar nenhum instrumento. Mas tinha uma máquina fotográfica lá em casa e, veio a descobrir nos últimos dez anos, um olhar e uma linguagem estética muito próprios.

Em dez anos, Vera Marmelo registou o crescimento de uma geração de artistas em Portugal. Muito desse trabalho foi feito em pro-bono, por amor à causa, mas também por uma grande ligação pessoal com os artistas, uns que já eram amigos, outros que, entretanto, se tornaram. No dia em que telefonámos a Vera – um feriado, às 10h – tinha-se deitado às 4h, porque tinha estado a fotografar no Barreiros Rocks, evento ao qual tem uma eterna dedicação. E, claro, havia fotografias para editar e partilhar. Foi assim que Vera nos habituou. “É um misto de dedicação com sair com os amigos à noite”, ri-se. “Mas sai-me do pelo – durmo muito pouco”, confessa. A juntar à festa na terra onde cresceu, na mesma semana teve em Lisboa a amiga Julianna Barwick. “Ela é muito minha amiga e do Sérgio [Hydalgo, da ZDB], por isso é óbvio que quando ela cá está – de dois em dois anos, ou algo do género –fazemos um esforço para estar com ela. Mas misturado com a vida… é o que temos.”

Na celebração do décimo aniversário de fotografias, Vera Marmelo encontra uma casa nova onde resume o trabalho que tem feito desde 2006: www.veramarmelo.pt. Uma espécie de sítio que faz a revisão da matéria dada, onde arruma as suas memórias ao mesmo tempo que traça uma linha cronológica muito livre de muito daquilo que se passou em termos musicais em Portugal. Do pianista Tiago Sousa, passando pela Flor Caveira, B Fachada, Linda Martini até aos Orelha Negra. Um ecletismo capturado por um olhar muito especial.

A festa de lançamento do novo site, e de um poster comemorativo, acontece hoje no número 3A da Rua António Ferreira, em Lisboa.

 

Tens uma vida profissional das 9h às 17h e, por outro lado, tens a fotografia, que é uma espécie de hobbie profissional. É por criares laços de amizade com os artistas que fotografas que concilias os dois mundos?

Na verdade, a amizade que tenho com as pessoas é a única razão pela qual tenho aguentado tantos anos a fazer isto de ânimo leve. As duas coisas acabam por se misturar: consigo encaixar um caráter muito social nesta brincadeira das fotografias. Mas sou a pior companhia de sempre para me levares para concertos: nunca vou estar muito tempo ao pé de ti a vê-los e também porque conheço tanta gente, e são sempre relações de momentos, fico sempre a falar com cada pessoa uns 30 segundos. A única maneira de conseguir estar tão atenta ou entusiasmada é o facto de serem pessoas que me são próximas. Ou há um misto de orgulho de fazer parte de alguma coisa, de querer contribuir, e o entusiasmo pela música.

 

“Já me disseram, pessoas que estão a fazer cursos de fotografia, que já há professores que falam do meu trabalho nas aulas. E fico sempre meio incrédula: eu nem estudei e haver um professor que me está a usar como exemplo é algo muito fora”

 

Acabaste de lançar um site teu mais “institucional”: www.veramarmelo.pt. Foi uma forma de organizar as memórias de dez anos a fotografar ou quiseste mesmo chegar a alguma espécie de conclusão sobre este teu trabalho?

Tenho tido a sorte de ter tido, nos últimos tempos, muita gente a conversar comigo. E isso faz com que tenha de meter sempre as ideias em ordem: tenho-me dedicado de uma forma muito intensa a um grupo muito grande de pessoas, mas esse grupo é muito diferente e foi mudando – isso é algo com que aprendi a lidar: as relações pessoais não são eternas e há muitas pessoas que fotografava no início e que agora já não faço e dantes, quando as coisas terminavam, ficava um bocadinho transtornada. A criação do site foi uma necessidade prática, porque continuo a produzir de tal forma que o blogue continua a estar cheio de fotografias – publico dez ou 15 imagens de cada concerto. Quem não vai ao blogue com uma cadência regular, acaba por se perder e não ter noção das coisas todas que acompanho e faço. Então senti a necessidade prática de organizar num sítio qualquer, de fazer um pequeno resumo daquilo que têm sido os últimos anos e também destacar aquelas pessoas que acho que explicam o que tem sido o passado, a forma como se interligam e como é que agora se estão a juntar à frente. Tive a ideia de ter separadores no blogue com intervalos de tempo: não é para mostrar fotos incríveis, mas antes para fazer o resumo das pessoas com quem eu me fui ligando, como é que as outras foram aparecendo, como é que há outras que desaparecem e como é que acabam por ser nomes – hoje em dia – muito grandes e as pessoas nem percebem de onde vêm.

Queres dar exemplos?

Sim, o caso do [B] Fachada, que aparece nestes meus primeiros separadores, de 2006 a 2009, mas que vai deixar de aparecer nos anos que vêm –  2010-2013, em março, e 2014-2016, em junho – simplesmente porque deixei de estar tanto tempo com ele e deixei de o fotografar. A maior parte das pessoas, se calhar, não sabe que ele começa na [editora] Merzbau, salta para a FlorCaveira por uma questão de identidade – por sentir que aquelas pessoas estavam a fazer o mesmo que ele – e hoje em dia destaca-se destes grupos de pessoas e segue o seu caminho sozinho. A ideia de organizar o arquivo e ser uma coisa mais pontuada por nomes é mostrar as pessoas que já passaram por mim, que estiveram unidas em alguns momentos e que também já saíram daqui. Estas coisas até são meio esquizofrénicas e muito ecléticas: são pessoas muito diferentes com quem me vou juntando, mas que também se tocam.

 

 

“Sou a pior companhia de sempre para me levares para concertos: nunca vou estar muito tempo ao pé de ti a vê-los e também porque conheço tanta gente, e são sempre relações de momentos, fico sempre a falar com cada pessoa uns 30 segundos”

 

E porquê esses períodos?

Essa é mais uma ideia do pessoal com quem estou a fazer isto, a malta da Desisto!. No início não queria transformar isto numa ideia de arquivo cronológico. Mas é a melhor forma que há para contar o que aconteceu durante este tempo. Decidi trabalhar com estas pessoas – a Margarida [Borges], o José [Mendes] e o Ricardo Martins – por serem profissionais do design, mas que também estão minimamente alerta para aquilo que eu faço. Foi uma coisa muito prática: quando eles me apresentaram isto, eu até disse que não queria fazer um flashback histórico, porque dez anos não é assim tanto tempo na história da música de Lisboa e também não me sinto no papel de curadora. Os Buraka [Som Sistema] também fizeram dez anos agora, e com uma importância enorme na música que é feita em Portugal, e nunca os fotografei. Este trabalho não tem a intenção de dizer: “Foi isto o que se passou de importante nestes dez anos”.

Pode não ser um resumo, mas também estiveste a fazer este trabalho por vontade própria. E os diagramas que desenhaste são representativos de muita coisa. Tanto fotografaste o Tiago Sousa como os Orelha Negra.

Sim, por força das circunstâncias, por força da minha personalidade curiosa, e pelo caminho que a coisa foi tomando. Como é que eu chego aos Orelha Negra? E essa é que é a parte gira de conversar: as primeiras fotografias que fiz dos Linda Martini foram nos estúdios Namouche, numa das primeiras edições da Optimus Discos. Foi um convite do Henrique Amaro que me convidou a ir fotografar a sessão de gravação para depois fazer o artwork, mas em que me avisou que não tinha orçamento para esse trabalho. Eu fui, obviamente, porque era e sou super-fã dos Linda Martini, mas a primeira coisa que o Henrique me disse foi: “Quando surgir uma oportunidade de te poder compensar, tu voltas.” E isso aconteceu quando os Dias de Raiva estavam a gravar com o Fred [Ferreira] e o Carlão. Conheci o Fred aí, na altura que os Orelha Negra estavam a começar, em meados de 2010. Foi em agosto desse ano que comecei a fotografar os Orelha Negra. A minha relação com os Orelha Negra surge quase de um acaso! A maneira como vou saltando nasce de acasos e que transformam isto tudo em algo ainda mais bonito.


Vídeo dos Orelha Negra realizado por Vera Marmelo e Ben Monteiro

Olhando para estas pastas organizadas, para fotografias de 2006 e 2007 e depois para as de 2015 e 2016, quais são as diferenças que encontras?

É um exercício demorado! Este ano tirei férias para fazer essa viagem. Eu tenho tudo superorganizado, mas chegar àqueles diagramas todos resumidos significou muitas horas de scroll down nos vários projetos que andei a fazer, a vasculhar no arquivo. A sensação que tenho é a de que hoje fotografo de uma forma completamente diferente, se calhar muito mais livre e despreocupada. E também me interessam coisas diferentes: dantes estava muito focada no palco – agora já viro a coisa mais para trás. Também sinto que, como as minhas relações com os músicos foram mudando, hoje fotografo-os muito mais como pessoas do que como músicos. E isso acaba por contaminar todos os outros: posso estar na ZDB a fotografar uma banda superconhecida, mas estou-me pouco lixando para a ideia de que tenho de conseguir aquela fotografia em que se perceba aquilo que ele está a fazer. Estou a afunilar cada vez mais a minha visão, com as coisas mais apertadas e menos preocupadas em ser uma coisa de fotojornalista. Acho que há pessoas que fazem isso muito melhor do que eu e não é o que me interessa. Hoje estou cada vez menos preocupada com aquilo que as pessoas podem gostar de ver e mais preocupada em fotografar à minha maneira. É um lado muito mais íntimo.

 

“A ideia de organizar o arquivo e ser uma coisa mais pontuada por nomes é mostrar as pessoas que já passaram por mim, que estiveram unidas em alguns momentos e que também já saíram daqui. São pessoas muito diferentes com quem me vou juntando, mas que também se tocam”

 

Mas vão repetindo-se alguns nomes.

Ainda no outro dia encontrei uma foto de 2009 onde estavam Samuel Úria, B Fachada, Tiago Sousa e Eduardo Vinhas, do Golden Pony. Estavam os quatro encostados a uma parede do estúdio. Mandei-a a todos e o Samuel respondeu: “Sete anos? Bolas!”; o Tiago também disse algo como “Isto já foi há tanto tempo!”. E o Fachada diz: “Estamos muito mais bonitos agora!” Vê-se tempo a passar pelas caras e pelas salas. E os meus olhos adaptaram-se ao que eu gosto mais hoje em dia.

No meio disto tudo tens a tal vida profissional: és engenheira. É importante ter a noção de que, por um lado, tens uma vida profissional muito definida e por outro um hobbie a que dedicas tanto tempo?

Tive essa conversa com um amigo, às 3h30 da manhã, no meio do Barreiro Rocks. Eu, no meu dia, tenho perfeita noção de que este trabalho com os músicos é uma coisa perfeitamente egoísta, muito para nós. Estou a alimentar a sede de um público de ver pessoas nas quais se calhar gostariam de se transformar porque fazem uma coisa que os emociona e entusiasma – mas esta já uma necessidade muito do topo da pirâmide. O meu outro trabalho é uma coisa mais terra-a-terra, a garantir que as pessoas estão em casa e têm um bom serviço de água e consigam fazer uma coisa tão simples como, num dia gélido, abrir a torneira e a água sair com pressão suficiente para ser aquecida pelo esquentador. Há esta necessidade, da minha parte, de sentir que faço um trabalho útil e palpável e não ser uma coisa mais fora como um músico que passou a ser conhecido por um grupo de miúdos porque viu uma fotografia que eu tirei. Depois gosto muito da ideia da rotina, de ter obrigações: isso faz com que me organize muito melhor. E quanto mais coisas fazes, por muito estranho que te pareça, mais consegues fazer. As duas coisas são muito válidas. As pessoas com que eu lido no meu dia a dia na engenharia são totalmente diferentes das que estão no outro lado, mas quer umas quer outras ensinaram-me a ser muito mais ágil socialmente, a ter uma personalidade muito mais moldável. Depois, os meus colegas tiram tardes para ir com os bebés ao médico, enquanto eu tiro tarde para ir mais cedo para um festival!

 

“Os Buraka [Som Sistema] também fizeram dez anos agora, e com uma importância enorme na música que é feita em Portugal, e nunca os fotografei. Este trabalho não tem a intenção de dizer: ‘Foi isto o que se passou de importante nestes dez anos’”

 

Dez anos a fazer fotografia e a publicá-las online. Sentes que já és uma inspiração para jovens fotógrafos?

Já me vão dizendo algumas vezes – e é estranho. Já me disseram, pessoas que estão a fazer cursos de fotografia, que já há professores que falam do meu trabalho nas aulas. E fico sempre meio incrédula: eu nem estudei e haver um professor que me está a usar como exemplo é algo muito fora! Acredito que haja muita gente a começar a fotografar música – e quando comecei ninguém o fazia, porque também não era algo tão democrático. As minhas intenções talvez fossem diferentes das de quem começa agora. Mas também devem pensar que, como eu consegui estar no meio desta gente toda, é algo possível. Há um caminho.

Entrevista: Bruno Martins