Oub'lá

The Gift

 

Altar é um disco dos The Gift, com boas canções, produzido pelo Brian Eno, mas de hoje para amanhã não vamos ser os U2!”

 

A fé move montanhas e os The Gift parecem não conhecer a palavra impossível. Altar é o novo disco da banda de Alcobaça, formada por Sónia Tavares, Nuno Gonçalves, John Gonçalves e Miguel Ribeiro, edita hoje o novo disco. Altar é o sucessor de Primavera, de 2011, que vem com um parceiro muito especial: o produtor britânico Brian Eno.

A vocalista Sónia Tavares e o compositor Nuno Gonçalves mostram o natural entusiasmo ao recordar a aventura dos últimos quatro anos dos The Gift. Entre digressões, concertos e edições comemorativas de 20 anos, a banda foi compondo este que afirmam ser, “o melhor disco” que o grupo já fez.

Não se trata de uma mudança radical ou de uma reinvenção da sonoridade pop orquestral do grupo — às vezes festiva, outras íntima e delicada —, mas antes de um trabalho de filigrana que resulta da união de uma banda madura, com duas décadas de carreira, a um dos mestres da história da música popular contemporânea, responsável pela produção de álbuns icónicos — de John Cale a Talking Heads; de U2 a David Bowie; de Coldplay a James Blake.

Nuno Gonçalves e Sónia Tavares contam-nos agora a história por detrás deste novíssimo Altar: as primeiras canções; o encontro com Brian Eno e a “inconveniência” de Sónia Tavares que perguntou ao britânico se ele gostaria de produzir o álbum; as famosas cartas desbloqueadoras de problemas criadas por Eno em 1975 ou um encontro com St Vincent no grupo de gospel que Brian Eno reúne às terças-feiras… São as histórias de Altar, o disco mais apurado da carreira dos The Gift.

 

Foram quase quatro anos a trabalhar neste Altar. Pode dizer-se que é um disco que teve uma devoção especial da vossa parte?

Nuno Gonçalves [N.G.] — Sim, e por uma data de condições inerentes ao disco: o facto de ser o primeiro disco de toda a euforia dos 20 anos; pelo facto de termos o Brian Eno como produtor; pelo facto de, pela primeira vez, existirem co-autorias nas canções — há todo um lado quase infantil de fazer as coisas pela primeira vez e isso, sem dúvida nenhuma, que se pode aplicar a um lado de devoção e de quase cerimónia à volta deste disco, que nos motivou muito, que nos deu uma inspiração única e que acho que fez com que este disco seja único na carreira dos The Gift.

Sónia Tavares [S.T.] — Foi tudo trabalhoso até por causa das agendas. Tanto do Brian como das nossas — porque nunca deixámos de andar em tournée, e os compromissos que tínhamos obrigavam-nos a encontrar em pequenas sessões — nunca mais de 12 dias seguidos: Imagina: 12 dias em março, mais 12 dias em maio… e aí foram passando três anos. Cada vez que voltávamos às canções, achávamos que elas precisavam ou de mais ou de menos e dávamos sempre um arranjo até chegarmos ao produto final. Se tivesse demorado dez… com todo o gosto! Estar com o Brian Eno foi uma experiência do outro mundo. Se me perguntares se é o melhor disco dos Gift, com certeza que será! Até porque cada vez que achamos um disco achamos que é o melhor. Mas sobretudo acho que é um trabalho muito bonito e apaixonado.

 

Em que sentido?

S.T. — Ele é uma pessoa interessantíssima, muito culta. Aprendemos imenso sobre tudo: desde ouvirmos música que não fazia sentido nas nossas cabeças, mas que tivesse a ver com os The Gift, mas que de repente passava a fazer sentido. Daí termos uma música chamada “Malifest”, isto porque o Brian tinha vindo do Mali e com as suas experiências de lá também pôde experimentar dentro dos The Gift. Eu estou sempre a dizer-lhe: “Claro que acredito em ti, Brian: és o único amigo que tenho que já meteu coisas na lua” (risos).

 

“O Nuno conheceu o Brian e nenhum deles pensava em trabalhar juntos, até porque o Nuno nunca quis ser inconveniente. Mas eu quis! (risos) Ele viu um concerto nosso em Espanha, e no final perguntei-lhe, sem vergonha nenhuma na cara: ‘Queres trabalhar connosco?’ ele responde: ‘I think we’ll have a lot of fun’”

 

O disco anterior dos The Gift, Primavera, foi lançado no final de 2011. Nessa altura já havia a ideia de convidar o Brian Eno para gravar um disco convosco? É daquelas coisas difíceis de planear, não? É complicado para uma banda pensar algo do género: “No nosso próximo disco vamos convidar o Brian Eno para a produção!”

N.G. — Sim e não! (risos) Eu conheci-o na última semana de gravação do Explode, em 2010. Quando lançámos o Primavera, o Brian já era nosso amigo, já falávamos com ele. Sobretudo eu, que tinha uma relação mais fora do profissional. Aliás, nem tive coragem de lhe perguntar se ele queria fazer connosco este disco…

S.T. — Foi uma feliz coincidência, na verdade: o Nuno conheceu o Brian e nenhum deles pensava em trabalhar juntos, até porque o Nuno nunca quis ser inconveniente. Mas eu quis! (risos) Ele viu um concerto nosso em Vigo, Espanha, e no final percebemos que tinha gostado imenso do espetáculo, da banda, de mim… e quando lhe pergunto, sem vergonha nenhuma na cara — porque o não estava sempre garantido — “queres trabalhar connosco?” ele responde: “I think we’ll have a lot of fun” e foi o que bastou para perceber que ia ser uma grande jornada.

 

Foste a inconveniente de serviço, que acabou por ser de grande conveniência. Nuno, como é que recordas o primeiro encontro com o Brian? Li que tinha sido numa galeria de arte em São Paulo…

N.G. — Já há várias teorias! Na verdade, o encontro com o Brian foi numa favela no Rio de Janeiro e depois voámos juntos para São Paulo e acabámos por visitar o Museu de Arte Moderna em São Paulo. O primeiro encontro foi na favela de Vigário Geral, onde estava a fazer uma pesquisa sobre a nova cultura que sai do Rio de Janeiro. Estávamos a assistir a um showcase de uma banda chamada Afro Lata. Acabámos por nos conhecer, ficar a falar muito de música, de uma série de histórias da música — as dele e as nossas, que também temos muitas para troca. Três semanas depois estava a misturar o Explode em Londres e foi aí que ele me convidou para ir ao estúdio dele, quando estava ele a trabalhar com os Coldplay. Nunca pensei que fosse possível ele produzir-nos o disco: pensei numa remistura, numa participação até vocal… mas um compromisso como este nunca pensei.

 

“Nunca pensei que fosse possível o Brian Eno produzir-nos o disco: pensei numa remistura, numa participação até vocal… mas um compromisso como este nunca pensei”

 

Na altura em que o Brian respondeu à Sónia “I think we’ll have a lot of fun” já tinham uma ideia ou estrutura para este disco?

N.G. — Eu tinha algumas maquetes gravadas com banda e algumas linhas de voz. E foi essa a raiz de tudo isto. Chegávamos ao estúdio às 9h, começávamos a tocar e a mexer nos temas. Curiosamente, da primeira sessão de todas, só dois temas é que aparecem no disco. A partir da segunda sessão eu trouxe mais canções novas e depois de percebermos o método e fomos afinando. Depois foi o Brian a fazer himself a mexer com as coisas: ele tem um lado muito experimental de fazer as coisas, porque não sabe ao certo como é que há-de explicar para onde deve levar o som da banda, então vai pela intuição até conseguir resolver o problema. No meio disto ficam experiências incríveis, que era ele perguntar: “qual é a pessoa que toca pior teclados aqui?” A Sónia levanta o braço e ele diz-lhe que, assim sendo, é ela que os vai tocar aquela canção. São os jogos que ele faz que tornam as gravações muito mais experimentais e divertidas, verdadeiros tiros no escuro.

 

Ainda assim: os The Gift são uma banda com duas décadas de carreira, com uma personalidade própria e forte à qual se juntou o Brian Eno. Como foi juntar estes dois universos?

S.T. — O Brian Eno, sendo a pessoa inteligente que é, em pouco tempo percebeu tudo aquilo que são os The Gift: como pessoas e como banda. Também percebeu que era impossível recomeçar uma banda de raiz e não era isso que ele queria. Nós tínhamos a mente aberta e estávamos recetivos a tudo o que ele pudesse trazer, mas tendo 20 anos de carreira, não somos nenhuns miúdos. As canções já vinham escritas de raiz pelo Nuno e por mim. O Brian percebeu, sobretudo, a nossa essência e quem éramos: limou as arestas que não importavam e trouxe ao de cima aquilo que de melhor têm os The Gift, que são as boas canções, o peso da voz, os teclados… ele também se sentiu em casa porque era esse o universo dele!

N.G. — Quando falamos do Brian Eno não falamos de um produtor de heavy metal, mas de alguém que produz bandas que se aproximam da estética que ouvimos durante anos e anos da nossa vida. Não é algo completamente fora de estilo. Acho que há aqui um apuramento de ideias. Houve uma coisa interessante: o Brian não ouviu a discografia antiga dos The Gift, então quis começar quase do zero.

 

Querem dar-nos exemplos de coisas em que tenham crescido ou aprendido com o trabalho de criação deste disco?

S.T. — Obviamente que aprendemos imenso. Eu não sou uma pessoa que goste de escrever — faço-o porque tenho de o fazer. Não me considero letrista nem acho que tenha um jeito especial. Mas consegui encontrar em mim — ou reinventar-me — e arranjar um método muito mais engraçado de fazer uma letra que não tem necessariamente que ser uma história verdadeira, pode ser uma grande ficção, uma grande aventura ou odisseia. Tínhamos um quadro imenso, em branco, onde o Brian também desenhava muito — até porque ele é um excelente ilustrador. A partir daí íamos percorrendo uma imaginação sem limites, porque aquela cabeça não pára… e quando tínhamos algum problema tirávamos a famosa carta…

 

Qual carta?

S.T. — O Brian inventou, há uns anos, umas cartas [Estratégias Oblíquas] para quando não sabes qual é a solução ou qual o caminho a seguir. Seja no que for: retiras uma carta e tens que fazer exatamente aquilo que a carta te mandar (risos). E foi exatamente isso que fizemos em algumas canções.

 

“Todas as noites, depois de jantar, o Brian pegava na guitarra acústica e cantava canções gospel. Inclusivamente ele tem um grupo de gospel. Todas as terças-feiras ele reúne com uma série de gente amiga para descomprimir o stress da semana. Eu e a Sónia participámos em duas ou três sessões, inclusivamente numa delas estava lá a St. Vincent”

 

Mais uma dose de destino neste disco, não é?

S.T. — Exatamente. Havia uma carta que tirámos e dizia: “Vão para um quarto escuro, fechem as janelas, nem um raio de luz e tentem refazer tudo a partir daí.” E fizemos isso, tudo à letra. E saiu muito bem, que é uma das canções que tem este disco que se chama “Vitral”.

 

E tu Nuno? O que sentiste que mudou em ti enquanto produtor para este Altar?

N.G. — Enquanto compositor eu só tenho que agradecer: uma coisa que sempre fiz foi que as ideias que dou são sempre em prol da banda. O que houve aqui foi um refinar de ideias, o chegar a um lugar comum que é este disco. Os egos ficaram à porta: os dele, quer os nossos. Quando se trabalha num disco destes temos um objetivo comum: chegar ao final com o melhor disco possível, e não vamos estar aqui a pensar em acordes que são tirados ou acrescentados… é uma joint venture criativa e artística de confiança, respeito e credibilidade.

 

“Não é, propriamente, um disco sombrio, mas também não é muito alegre. É um meio termo que me parece interessante”

 

O que é que significa para ti, Sónia, este disco enquanto cantora e intérprete?

S.T. — Não sei se é um ponto de lançamento, mas talvez de relançamento. A minha maneira de ver a música e a escrita mudaram. É um ponto de partida para que as coisas comecem agora a fluir de outra maneira para os anos e discos que aí virão. Mas acaba por ser um disco como outro qualquer! É um disco dos The Gift, com boas canções, que esperamos mostrar na Europa, na América, mas é mais um disco — produzido pelo Brian Eno, mas de hoje para amanhã não vamos ser os U2! (risos)

 

Sem boas canções é difícil as coisas funcionarem bem. E acho que este Altar vem, de facto, com algumas das vossas melhores canções. Uma canção como “Big Fish” até parece ser algo meio inédito na vossa discografia: um tema com tantas vozes em conjunto, meio funky. 

S.T. — Deste género, de facto, nunca tínhamos feito. Mas por que não, não é? Porque não aproveitar toda a experiência de alguém como o Brian e de repente virar isto tudo e fazer uma canção um pouco funk e disco?

N.G. — Sim, é uma experiência com uma série de frases e ritmos com voz. Foi uma canção que demorou muito a fazer, sobretudo pelo lado rítmico. Demorámos muito a perceber o tempo, a batida certa e chegámos a este compromisso que é uma das melhores canções do disco, na minha opinião. Realmente é um lado novo dos The Gift, mas que sempre esteve presente na nossa vida: quando dançamos Talking Heads, por exemplo, ou outras bandas inspiradas nessa vaga anos 1970-1980 de Nova Iorque, acabamos por nos deixar influenciar por esse estilo.

 

“Não gravámos com um vidro entre a mesa de controlo e o estúdio — estávamos todos na mesma sala. E é isso que resulta do disco: o lado festivo, participativo… o Brian com o teclado dele, nós com os nossos, com as nossas guitarras, baixos e baterias…”

 

Querem explicar-nos o título do disco?

N.G. — Foi o nome dado na reta da meta. Tínhamos as canções todas alinhadas, com títulos, faltava um nome que unificasse todo este projeto e achámos que este disco foi um disco de celebração e muitas das vezes os altares estão ligados a coisas mais de culto e esquece-se mais o lado de cerimónia e celebração. “Altar” era uma palavra que unificava o disco, que dava-lhe o tom de fé e celebração e era isso que queríamos ter.

 

No disco até se escutam algumas canções em tons gospel…

N.G. — Isso tem que ver com influência direta do Brian: todas as noites depois de jantar ele pegava na guitarra acústica e cantava canções gospel. Inclusivamente ele tem um grupo de gospel que se reúne às terças feiras para descomprimir o stress da semana e cantam todos juntos. Eu e a Sónia participámos em duas ou três sessões, inclusivamente numa delas estava lá a St. Vincent — foi assim uma cena muito engraçada. Começámos a perceber que as pessoas através do canto podem descomprimir: é quase como uma ida ao ginásio, mas com um lado cultural mais assente — e com melhor música! Tem então esse lado do gospel presente sobretudo no tema “Malifest”, e também no “Vitral”, em que temos um coro de vozes negras a acompanhar. Sim, existe um apelo à voz cantada em grupo e isso é, obviamente, conectado com alguma cerimónia religiosa.

 

“O que houve aqui foi um refinar de ideias, o chegar a um lugar comum que é este disco. Os egos ficaram à porta: os dele, quer os nossos. Quando se trabalha num disco destes temos um objetivo comum: chegar ao final com o melhor disco possível”

 

Se tivessem de tirar uma fotografia panorâmica a este disco, como seria essa foto?

N.G. — Nós, em círculo a gravar o disco. Não gravámos com um vidro entre a mesa de controlo e o estúdio — estávamos todos na mesma sala. E é isso que resulta do disco: o lado festivo, participativo… o Brian com o teclado dele, nós com os nossos, com as nossas guitarras, baixos e baterias… todos a tocar as canções, sendo que lá fora podia estar a chover, a fazer frio, sol. Estávamos na Galiza, e a Galiza consegue ter as quatro estações num dia! Isso também se reflete no disco: não é, propriamente, um disco sombrio, mas também não é muito alegre. É um meio termo que me parece interessante.

 

O Brian participa vocalmente num dos temas do disco. Está previsto participar em alguns momentos ao vivo dos The Gift?

N.G. — Gostávamos, mas não vamos fazer disso o nosso cavalo de batalha. A banda sobrevive bem sem o Brian — essa parte de “Love Without Violins” é cantada pela Sónia, por mim e pelo Paulo Praça. O Brian também nos deu autorização para usarmos a voz dele ao vivo, enquanto sampler. Mas claro: se tocássemos em Londres e ele se pudesse juntar, ou fizéssemos um programa de televisão juntos… seria a cereja no topo do bolo. Preferia que ele me confirmasse a produção do próximo disco do que propriamente confirmasse a participação num espetáculo ao vivo.

 

Entrevista: Bruno Martins