Oub'lá

Señoritas

“Quando começas a entrar nos ‘quarentas’ começas a ser muito mais seletivo porque não tens tempo a perder”

 

Sandra Batista e Mitó Mendes trabalham juntas há muitos anos. Percorreram o país juntas em A Naifa e criaram uma amizade que não terminou, nem sequer esfriou, com a paragem do grupo que em meados da década de 2000 fez uma incrível fusão poética do fado com desenhos mais eletrónicos (ou algo deste género).

Nenhuma das duas esperava, dois anos depois do fim da banda, que estivessem já a cantar novas canções. Ainda mais estas canções: textos que estavam nas gavetas fechadas de Sandra Batista – “que nunca a ouvi cantar os parabéns a ninguém”, diz Mitó – e que, em almoços com a amiga Maria Antónia começaram a ser destrancadas e abertas. Os poemas de Sandra foram saindo e a pena a soltar-se. Voltou também a soltar-se a voz de Mitó, que encontrou neste universo lírico tão íntimo, tão frontal, carnal e honesto, os espaços necessários para entrar e interpretar, à moda da atriz que diz ser, as canções das Señoritas. Desapareceu A Naifa, ficou apenas – e só – a memória do título de uma canção de 2006. Eis Sandra e Mitó, as Señoritas, que editaram o primeiro disco Acho Que É Meu Dever Não Gostar e que agora estão a mostrá-lo ao vivo. Hoje à noite atuam no Teatro Helena Sá e Costa, no Porto, e amanhã no Espaço Miguel Torga, em Vila Real.

Como é que os poemas da Sandra começam a ganhar vida na voz da Mitó?

Sandra – O princípio de tudo é a nossa amizade! Com a paragem de A Naifa fomos mantendo os nossos encontros. Numa primeira fase andávamos, simplesmente, a experimentar coisas.

Mitó – Vamos ser honesta: tínhamos decidido não fazer mais nada e isto era só mesmo para nos divertirmos.

Sandra – Só que começámos a fazer experiências que nunca tínhamos tido até então. A partir do momento em que apresento as letras escritas à Mitó, ela começa a dar-lhes uma vida e uma alma que não tinham até então e as coisas começaram a tornar-se viciantes.

Mitó – Nós já andávamos a brincar com os instrumentos. Houve um dia em que, depois de um almoço, a Sandra mostrou-me a letra do “Solta-me” e eu olhei para aquilo e nem arrumámos os pratos. Subimos ao estúdio dela e a música saiu-nos de rajada, em cinco ou dez minutos. Aconteceu isso com a “Solta-me”, mas também depois com muitas outras: se uma diz mata, a outra diz esfola, entusiasmamo-nos muito uma com a outra.

Quando perceberam que as coisas estavam mais ou menos montadas, ficaram logo com a ideia de que o projeto iria funcionar nesta lógica minimal?

Sandra – No final de 2015, quando decidimos avançar e dar um passo à frente, que era partilhar isto com o público, tomámos a primeira decisão de manter esta realidade e esta brutalidade, esta energia. Isto acontece com qualquer relacionamento: a energia inicial não está gasta, dá-nos gozo e foi isso que quisemos manter até agora. A ideia era manter a canção o mais primária possível para conseguir ter esse nervo. E conseguimos isso. O CD está minimal e cru, mas com esse propósito.

Mitó – Podíamos perfeitamente ter convidado outros músicos, mas decidimos que éramos só nós as duas. Por isso sim: foi uma escolha consciente, queríamos que soasse assim.

Sandra – É uma linguagem muito específica. Há aqui uma intuição fortíssima: às vezes nem há palavras. Basta a guitarra, o baixo ou uma letra à frente e a canção ganha vida. Só assim é que nos faz sentido. Se tivéssemos um terceiro ou um quarto elemento as coisas não funcionavam assim e neste momento, para dizer a verdade, não nos apetece.

Mitó – Ai, eu nunca mais quero outra coisa. Trabalhar só com uma pessoa é incrível: atalhas uma data de coisas. É muito mais simples.

 

“Quando perdi a vergonha e mostrei à Mitó a ‘Solta-me’, ela deu-me uma força que eu não sabia que tinha” – Sandra Batista

 

Sandra, estas letras aparecem agora porque ainda não tinha havido oportunidade de as tirar da gaveta ou agora é que te sentiste à vontade para as partilhar, em primeiro lugar, com a amiga Mitó?

Sandra – Nunca se proporcionou antes. Em todos os projetos músicas em que eu estive inserida – Sitiados, Megafone e A Naifa – os projetos já existiam. Já havia uma base de trabalho e eu, simplesmente, criava as minhas linhas de acordeão ou de guitarra-baixo. Nunca me passou pela cabeça as letras, mesmo tendo acumulado escritas sem saírem da gaveta. Quando perdi a vergonha e mostrei à Mitó a “Solta-me”, ela deu-me uma força que eu não sabia que tinha. Aí comecei a escrever canções e a ir buscar mais coisas em mim com este propósito, também para a “personagem” Mitó e para esta personagem “Señorita” – que tenha a ver comigo, que tenha a ver connosco, com as nossas vidas. Nós somos filtros de tudo o que nos rodeia e isto são filtragens da minha maneira de ser, da forma de estar e de sentir. No fundo estamos a falar de emoções. Em A Naifa tinhas poemas…

Mitó – Ela acha que isto não são poemas.

Mitó, esclarece-nos: tudo aquilo que cantaste em 11 anos de A Naifa, aqueles poemas cortantes, carnais, de pele rasgada, também encontraste nestas letras da Sandra?

Mitó – Mais! Além de ter cantado muita poesia, sou uma leitora assídua de poesia. Não percebo porque é que ela diz que isto não é poesia… mas é como todo o tipo de arte: não vamos estar aqui a discutir se a Amália é melhor do que Hermínia Silva. Uma tocou mais umas pessoas e outra tocou outras! A arte não é matemática e nem a matemática é uma ciência exata! Para mim, e para a minha medida, a Sandra é poeta e faz poesia muito boa.

Sandra – (ri-se) Não te estiques, Maria Antónia!

Mitó – Isto é para mim! Até hoje ainda ninguém me veio dizer que não é poesia. Só tu! E hoje em dia, para uma coisa me desinquietar, é preciso ter muita força. Estou a ficar muito exigente. Eu nem estava a contar fazer alguma coisa com música neste momento. As letras da Sandra foram ao encontro do que eu gosto na poesia e do que eu gosto que a minha voz cante.

 

“Hoje em dia, para uma coisa me desinquietar, é preciso ter muita força. Estou a ficar muito exigente. Eu nem estava a contar fazer alguma coisa com música neste momento. As letras da Sandra foram ao encontro do que eu gosto na poesia e do que eu gosto que a minha voz cante” – Mitó Mendes

 

Também sentiste neste projeto que estavas a ser atriz?

Mitó – Neste e em todos. A minha formação é de teatro, nem é de música. Considero-me muito mais atriz do que cantora – e sempre considerei. É uma das coisas que gosto que continue a ter nos projetos musicais e não sei se algum dia me vai apetecer ser a Mitó “verdadeira”, sem personagem ou sem filtros.

Querem falar-nos desta ideia que vem com o título, o Acho que é meu dever não gostar?

Mitó – Já tínhamos uma música feita com esse nome e gira muito em torno do universo que existe para homens e para mulheres, mas que para algumas mulheres é mais marcado: o “termos que”; ter a obrigação, o dever de não gostar de umas coisas e gostar muito de outras. É um tema que gira muito em torno do preconceito e de cultura na sociedade. Andámos à volta de tantos nomes e alguém sugeriu pôr uma o título de uma canção.

Sandra – Acho que é meu dever não gostar põe-te logo à vontade. Aquela malta que olha para nós de lado nós dizemos que “é dever não gostar”. Quando começas a entrar nos “quarentas” começas a ser muito mais seletivo porque não tens tempo a perder. A partir do momento em que começas a fazer o teu caminho e ele começa a fazer todo o sentido para ti, é isso que te interessa. E “o dever de não gostar” é de tudo aquilo que a sociedade te impõe: tens que ser jovem, a mulher tem que ser fantástica até aos 35 ou 40 e depois vai para o lixo. É quebrar com isso, ver as coisas pelo lado interior e na essência das pessoas em vez da parte só física.

 

 “Só embarcámos nesta aventura quando percebemos a química das duas: fazer uma coisa assumidamente de duas quarentonas que vão fazer isto sozinhas!” – Mitó Mendes

 

Também cresceram com esse tipo de imposições?

Mitó – Claro! Uma pessoa da nossa idade cresce com mensagens de “é meu dever não gostar de dinheiro”, “é meu dever não gostar de sexo”. Cresci com muitas mensagens subliminares. Nada contra o catolicismo, mas cresci numa família católica e pensava-se sempre muito naquilo que os outros poderiam vir a dizer. Viver com a opinião dos outros. Os portugueses vivem muito com essa cultura, sendo ou não católicos.

A música ajudou-vos a sair desse universo de preconceitos?

Sandra – A mim imenso. Desde 1990 que estou na música e mesmo antes, em comparação com pessoas amigas, sempre notei que era um bocadinho à parte. Independentemente de ser masculino ou feminino, eu era integrada como um elemento da banda. No início de Sitiados chateava-me bastante ser a única mulher porque eu curtia ir às compras ou ir ver a cidade e ninguém ia. Mas lá me fui habituando, a explorar mais o meu lado masculino do que feminino, mas também é natural porque estava inserida num mundo de homens. mas nunca senti sexismos no grupo de amigos que tenho à minha volta.

Mitó – A arte, e a música que foi a que dediquei mais anos na minha vida, serve vários propósitos. Para mim é uma catarse absoluta e muitas vezes até terapia. Fez-me crescer em muitos aspetos: dar voz a estas letras mexe muitos cordelinhos em mim.

 

“Gosto de tocar ao vivo, mas o palco amplia o que tens de bom e o que tens de mau. Há-de ser sempre assim: amplia a timidez e a coragem. Como estou numa fase muito real da minha vida, que não sei representar, tenho a sensação de que o palco me amplia a minha realidade toda!” – Sandra Batista

 

E o palco também ajuda nessa catarse?

Mitó – Eu gosto muito da parte do palco – a Sandra já vai responder por ela! Algumas letras nossas são um bocado terapêuticas e acredito que podem levar as pessoas a meditar no estilo de vida que levam, nas hipocrisias em que vivem. Ao vivo tenho a oportunidade de fazer isso com as pessoas, dizer-lhes diretamente.

Sandra – Eu sou ao contrário. Estou no processo inverso, de estar na parte da criação, de encontrarmo-nos, de ir ensaiar, de eu ficar a pensar na quantidade de coisas que podemos experimentar. Gosto de tocar ao vivo, sim, mas o palco amplia o que tens de bom e o que tens de mau. Há-de ser sempre assim: amplia a timidez e a coragem. Como estou numa fase muito real da minha vida, que não sei representar, a sensação é que tenho é que o palco me amplia a minha realidade toda! Prefiro não pensar muito nesse processo e interpretar as músicas como elas são, mas sem qualquer outra intenção. Imagino-me mais a ter as pessoas na sala de ensaios com as pessoas a assistirem.

Mitó, não sabia que tocavas guitarra.

Mitó – E eu também não! (risos) Estou a brincar: em tempos idos tocava guitarra acústica. Cheguei a tocar relativamente bem, mas deixei de tocar. Nos anos que durou A Naifa não toquei de todo e perdi alguma sabedoria. Mas tocar em guitarra elétrica é completamente diferente. Mas este projeto é muito isso: estamos a desafiar-nos! Eu a pegar na guitarra elétrica pela primeira vez, gravar e tocar ao mesmo tempo; a Sandra está a cantar pela primeira vez na vida – eu nunca a ouvi cantar, sequer, os “Parabéns a Você” – está a escrever letras e voltou a pegar no acordeão, que também era um tema um bocado tabu na vida dela. Nós só embarcámos nesta aventura quando percebemos a química das duas: fazer uma coisa assumidamente de duas quarentonas que vão fazer isto sozinhas! Sem produtores, sem nada. O propósito do projeto é este: sermos nós a fazer tudo, a confrontarmo-nos, e a assumir as imperfeições. Até o último videoclipe fomos nós que fizemos.

Entrevista: Bruno Martins