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Se morreu, o punk morreu vitorioso

Foi um sobressalto explosivo que transformou a música e cujos estilhaços se fizeram sentir em toda a cultura popular. Há quatro décadas, o punk anunciou-se com estrondo como grito irado e provocador contra o conformismo conservador. “No future”? Pelo contrário. O futuro estava mesmo a começar.


“Alguma vez sentiram que foram burlados?”. Foi assim, como se denunciasse um embuste, como se se desmascarasse perante todos de forma descarada, provocadora, que Johnny Rotten proferiu as últimas palavras que ouvimos aos Sex Pistols na sua primeira vida.

Estavam longe de onde a sua história começara, em Londres. Estavam em São Francisco, na famosa sala Winterland, um dos centros da contracultura hippie nos anos 1960, no último concerto da sua desastrosa primeira (e última) digressão americana, destruída pela dissonância total entre a música e a atitude dos Pistols e a maioria do público americano que a via. Nos Estados Unidos, naqueles Estados Unidos de rednecks sulistas, naqueles Estados Unidos a que os ecos do punk não haviam chegado e onde fazia lei o velho “rawk” de solos estrepitosos, guitar-heroes e virtuosismo sem mácula, mas também sem rasgo e sem chama, os Sex Pistols estavam encurralados.

O niilismo destruidor, regenerador, que haviam instigado ao proclamar furiosamente Anarchy in the UK, pouco menos de um ano antes, e que pusera a Inglaterra em rebuliço, não tinha quem o compreendesse ou apoiasse naquela sala californiana onde actuavam em Janeiro de 1978. O asco que sentiam pelo conformismo e conservadorismo da sociedade britânica e suas instituições de poder, tinha a mesma dimensão que o asco que lhes oferecia o público americano que os brindava com apupos e com bombardeamentos de garrafas de cerveja. Mas, quando Johnny Rotten profere aquela frase para a história – “alguma vez sentiram que foram burlados?” -, está tanto a despejar uma golfada de bílis e sátira sobre os espectadores que tinha perante si, quanto a falar de si próprio e da sua banda.

Anos mais tarde confessaria, olhando em retrospectiva o seu percurso, que poucos meses depois de Nevermind The Bollocks, o único álbum dos Sex Pistols, editado em Outubro de 1977, sentira que o punk falhara em todos os seus objectivos. Percebeu-o, explicou, quando começou a ver perante si, concerto após concerto, clones da sua própria banda, dos casacos coçados, alfinetes de ama e t-shirts rasgadas, ao cabelo pintado e espetado, passando pelas cuspidelas de “devoção” lançadas na direcção dos músicos. O punk nascera para que todos afirmassem a sua diferença e individualidade, fora um grito de revolta contra a uniformização do pensamento, da música, da moda, das vivências do quotidiano. Ver essa rebeldia tornar-se pensamento único e estética indiferenciada, dizia, era o trágico testemunhar de uma derrota. Johnny Rotten estava tão certo quanto tremendamente errado.

O punk, como qualquer outro fenómeno musical, gerou fenómenos de mimetização, tornou-se moda, acabou absorvido pelo mainstream. O punk, ao contrário da maioria dos fenómenos musicais, teve um impacto profundo, multiplicador e duradouro em tudo o que tocou, no seu tempo e para além dele.

 

Algumas bandas punks assaltaram os topes das tabelas de vendas, mas eram nomes dispersos entre os fenómenos de vendas do prog, como os Yes, ou as bandas directa ou indirectamente ligadas ao disco-sound, como os Bee Gees. Quando os Sex Pistols actuaram pela primeira vez em Manchester, em Julho de 1976, no Manchester Free Trade Hall onde, dez anos antes, uma multidão recebera Bob Dylan para lhe gritar “Judas!” pela traidora conversão à electricidade rock’n’roll, tinham apenas 40 almas na plateia para os ouvir.

Brian Eno disse certa vez que quase ninguém comprou os discos dos Velvet Underground quando da sua edição original, mas que todos os que os compraram formaram bandas. Pois bem, entre os que assistiram ao concerto dos Sex Pistols em Manchester estavam dois futuros Buzzcocks, Pete Shelley e Howard Devoto, responsáveis pela organização daquele momento histórico, estavam os futuros Joy Division, estava Morrissey, depois vocalista dos Smiths, Mark E. Smith, o mentor dos inigualáveis The Fall, Martin Hannett, produtor histórico da Factory Records, ou Tony Wilson, o fundador da mítica editora que teve no catálogo os autores de Unknown Pleasures, os Happy Mondays, A Certain Ratio ou Durutti Column – estava lá também, curiosamente, Mick Hucknall, o senhor dos caracóis ruivos dos Simply Red. O pequeno concerto no Manchester Free Trade Hall é sintomático. O punk inspirou realmente uma transformação do cenário musical e foi inspirador como poucos outros movimentos na história da música popular urbana.

Num contexto de crise social e económica profunda em Inglaterra, numa altura em que o cenário rock parecia desligado da vida ela mesma, com os músicos surgindo como entidades insuportavelmente distantes da plateia, o punk ofereceu a possibilidade de todos e qualquer um se poderem expressar, desde que tivessem imaginação, criatividade e vontade – o saber técnico era secundário. Os ecos ouvidos desde Nova Iorque, os do rock’n’roll regressado à sua essência mais crua, corporizado pelos Ramones, foi um primeiro impulso. Determinante, depois, foi a criação de uma comunidade, ou pequenas bolsas comunitárias, independentes do circuito dominante, que tanto se formaram em lojas de roupa com propostas arrojadas, onde se elevava a manifesto artístico a decadência urbana e uma sexualidade “kinky”, alheia a tabus – falamos da SEX de Vivianne Westwood e de Malcolm McLaren, futuro manager dos Pistols , em Kings Road, Londres -, como nos clubes que acolheram e onde fermentou a nova contracultura – pensamos no 100 Club, em Oxford Street, onde teve lugar em Setembro de 1976 aquele que é considerado o primeiro festival punk, protagonizado por Sex Pistols, Clash, Siouxsie and the Banshees, The Jam, The Damned ou Stranglers.

O efeito foi imediato no Reino Unido. O som ruidoso e os ritmos rápidos, simples na execução e perfeitamente sintonizados com a raiva e a angústia de quem gritava “no future” como ameaça à modorra do conformismo, tornaram-se a língua franca de uma geração. E os britânicos, obviamente, não estavam isolados nesses sentimentos. Os estilhaços da explosão não tardaram a saltar fronteiras, voando sobre o Canal da Mancha e espalhando-se pela Europa Continental – e eis Portugal, por exemplo, a assistir ao nascimento dos Faíscas, dos Aqui D’El Rock ou dos Xutos & Pontapés, enquanto António Sérgio, sempre atento, divulgava os novos sons no éter. Eis o punk a regressar aos Estados Unidos onde fora baptizado para provocar novas transformações : o hardcore a anunciar-se, pouco tempo depois, na Costa Oeste, uns Black Flag ou uns Dead Kennedys a politizarem o discurso, uma antiga banda reggae a reinventar-se enquanto força avassaladora (chamaram-se Bad Brains).

 

Johnny Rotten podia declarar o punk derrotado e absorvido pelo mainstream que combatera, mas, ao afirmá-lo, ignorava o cenário mais vasto. Ignorava a atitude do it yourself que levou tantos a deitar mãos à obra e a criar métodos alternativos de intervenção, quer através da criação de editoras independentes, quer através da publicação de fanzines. Não reparava na inspiração que a atitude insurrecta e reivindicativa de novas formas de agir, pensar e actuar exerceram para além da música, na literatura, no cinema, na pintura. Esquecia o escancarar das portas para renovados desejos criativos, sem fronteiras definidas: eis o multiforme pós-punk, “música feita por pessoas com a cabeça cheia de muito mais coisas que música”, como escreveu um dia o jornalista e escritor inglês Simon Reynolds, a preparar a entrada em cena.

O mundo da música sofreu um abalo que o transformou para sempre. A cultura, no seu sentido mais lato, transformou-se igualmente. Não, Johnny Rotten não tinha razão. Se morreu, o punk morreu vitorioso.

Mário Lopes