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Philip K. Dick: o homem que viu o futuro

Philip K. Dick é um dos escritores mais influentes do século XX. Aproximou a ficção científica da filosofia e antecipou algumas das grandes questões do mundo atual. A propósito da estreia de Blade Runner 2049, a Antena 3 lança a Operação Philip K. Dick. Este é o primeiro de três artigos que procuram traçar o perfil do autor e a forma como cinema e música aproveitam as suas ideias extraordinárias.

Em 1968, ano em que foi publicado Do Androids Dream of Electric Sheep, o livro que seria adaptado ao cinema como Blade Runner, Philip K. Dick descrevia-se, numa curta nota biográfica escrita na terceira pessoa, como tendo estudado na universidade da Califórnia, trabalhado numa loja de discos e em publicidade, feito um programa de rádio de música clássica e estar, naquele momento da sua vida, “interessado em alucinogénos e rapé (snuff)”. Nesta autobiografia (incluída na colectânea de textos The Shifting Realities of Philip K Dick: Selected Literary and Philosophical Writings, 1995), PKD não menciona as dezenas de novelas e contos escritos mas fala do livro mais reconhecido, The Man In The High Castle/O Homem Do Castelo Alto (Prémio Hugo em 1965) e avisa para os perigos de lhe emprestarem dinheiro e possibilidade de roubar os comprimidos de quem se aproximar. Escreve também que o seu melhor livro é o último, Do Androids Dream of Electric Sheep, porque “lida com o infortúnio dos animais e imagina uma sociedade em que o gato ou cão de alguém vale mais em termos de estatuto e custa mais do que a casa ou o carro”. Philip K. Dick adorava gatos, há muitas fotos que o provam, e, noutra biografia do mesmo ano, discorre sobre a influência de Willis, o seu gato, na construção da história. Anos depois, diria que este era o livro de que gostava menos. K. Dick mudava muito de opinião sobre o que escrevia, embora fosse sempre coerente na paranóia.

O autorretrato é curto, omisso e irónico, mas dá sinais importantes sobre o homem e a obra: a ligação à música, o respeito pelos animais, a insegurança, a necessidade de aprovação, o sentido de humor, a avidez por drogas (ainda que não alucinogénos que, aparentemente só tomou duas vezes mas que deve ter sentido necessidade de referir porque, em 1968, tomar LSD fazia parte das rotinas sociais das elites — Cary Grant por exemplo, era uma das celebridades convertidas às virtudes do ácido lisérgico e recomendava o seu uso a quem perguntasse). Ainda assim, nesse pequeno texto, Dick é bem explícito: Do Androids Dream of Electric Sheep é de facto um livro sobre a importância dos animais e os efeitos potencialmente fatais da poluição e, nesse sentido, é um livro sobre alterações climáticas, tópico aliás clássico no universo sci-fi. Em última análise é também um livro sobre uma luta ontológica entre o biológico e o tecnológico e entre o animal e o humano, colocando tudo num mesmo nível: robots, que não sabem que o são, angustiados com o prazo de validade atribuído pelo fabricante humano, da mesma maneira que humanos questionam Deus e a si mesmos perante a crueldade e finitude da existência; animais mecânicos que substituem animais verdadeiros numa sociedade com deficit de empatia e vida, onde estatuto e sentido da existência são medidos por uma impossibilidade (ter um verdadeiro animal). Está tudo no título original, (em português, Será que os Androides sonham com Carneiros Elétricos?) mas não é muito evidente no filme que, talvez por isso, tenha tido outro título.

 

Blade Runner é uma novela de Alan E Norse, publicada em 1974,  sobre transplante de orgãos e práticas médicas subversivas num futuro distópico, que inspirou William Burroughs a escrever Blade Runner: A Movie (1979), um guião proto-cyber-punk para uma hipotética versão cinematográfica que nunca avançou. Um dos argumentistas que trabalhava na adaptação de Dick teve acesso ao guião de Burroughs e achou que o título tinha potencial, Ridley Scott concordou. Hoje já ninguém pensa em Burroughs, ou Norse, quando se fala de Blade Runner. Rick Deckard/ Harrison Ford, o caçador de androides que no livro sonha ter um carneiro verdadeiro, incorporou tão perfeitamente uma ideia de blade runner, que já nem faz sentido pensar no significado original.

Mas, apesar de simbolizar o universo de Dick, Blade Runner é pouco fiel ao livro, valendo muito mais pelo lado icónico criado por Ridley Scott, do que por seguir a história original. Respeita a questão do humano e do andróide, explora-a brilhantemente, mas ignora alguns dos aspectos fundamentais: a questão dos animais mecânicos versus animais verdadeiros, desde logo, mas também o Mercerismo, a religião que os andróides percebem ser manipulatória mas à qual os humanos não resistem, fascinados pelo herói/mártir Wilbur Mercer, uma espécie de Sísifo que sobe a montanha mas que, em vez de carregar a pedra, é apedrejado, num exercício encenado de catarse colectiva. Por outro lado, não faltam pormenores emblemáticos no filme que não estão no livro: a palavra “replicante” nunca é usada por K. Dick, foi escolhida durante a produção por se temer que o público reagisse mal a “andróide”. Além disso, a cena mais icónica de Blade Runner, o monólogo final do replicante Roy Batty /Rutger Hauer, sobre as memórias que se esvaem “como lágrimas na chuva” (“like tears in the rain”), além de ter sido largamente improvisado por Hauer, não tem equivalente no livro.

 

Philip K. Dick morreu escassas semanas antes da estreia de Blade Runner, nunca terá chegado a ver o filme completo, muito menos sentiu o conforto financeiro que essa, e outras adaptações cinematográficas, permitiriam. Morreu pouco mais do que pobre, mais ou menos sozinho, inquieto e relativamente ignorado em Março de 1982, vítima de ataque cardíaco. Era um dos maiores escritores do séc XX, um dos grandes pensadores da condição humana, um visionário atormentado, hoje em dia colocado ao nível de Charles Dickens, Jorge Luis Borges ou Kafka, mas que, enquanto vivo, nunca conseguiu ser levado a sério fora do universo sci fi (excepto pelos franceses, que sempre viram algo mais nele e, durante muito tempo, foram garantia de sustento mínimo). A fama de PKD cresceu à medida que foi sendo descoberto por Hollywood e as suas histórias de angústia existencial foram turbinadas por truques tecnológicos e perseguições policiais estridentes. Mas há pouco disso nos livros de Dick. Sendo escritor de ficção científica, e tendo obrigação de fantasiar sobre avanços tecnológicos, a verdade é que Dick até é bastante rudimentar nos gadgets (botões e pouco mais, veículos de transporte voadores, um ou outro super-computador…) e normalmente atribui-lhes uma função prática com aura metafísica (o mood organ/orgão de emoções de Do Androids…, em que é possível escolher as emoções premindo teclas, ou a empathy box/ caixa de empatia, no mesmo livro, uma espécie de televisão que permite aos humanos sentir colectivamente o sofrimento de Wilbur Mercer). O fundamental das suas histórias é de natureza mais profunda. Dick interroga-se, e interroga-nos através dos seus personagens colocados à deriva, sobre o que é real e o que é humano. Sendo estas questões complicadas, compreende-se a necessidade de algum fogo de artifício nas adaptações cinematográficas.

 

Philip K. Dick nasceu em 1928, 16 de dezembro, gémeo de Jane, que morreu com poucas semanas de vida, alegadamente de subnutrição. A morte da irmã provocou-lhe um profundo sentimento de culpa, falha e dualidade que expressou em livros como A Scanner Darkly/O Homem Duplo, Flow My Tears The Policeman Said/ Vazio Infinito, Valis ou Divine Invasion/ Invasão Divina e até passou para a cultura pop — serve de inspiração à história de Mulder com a irmã nos Ficheiros Secretos (e a Sister, dos Sonic Youth!). A falta da irmã gémea determinaria todo o seu percurso e escrita, das mulheres por quem se apaixonou, aos livros que escreveu, todas as dúvidas que teve, e até a procura de Deus.

Pode parecer estranho para um autor com obra tão extensa e admirada, mas os livros de Dick, 44 novelas e 125 contos (contabilidade oficial), são quase sempre sobre a mesma coisa, quase sempre sobre ele e a sua desconfiança do real e das pessoas. A primeira história que vendeu, The Roog (1951), foi inspirada no cão que tinha na altura e ladrava aos homens do lixo; a vigilância a que os seus personagens costumam ser submetidos manifesta-se como sinal dos tempos (o Mccarthismo perseguiu de facto muita gente na década de 50, quando Dick começou a escrever, Nixon agiu em concordância nos anos 70) e é fruto da sua própria experiência (chegou a ser abordado pelo FBI para denunciar amigos comunistas); os videntes ou precogs, personagens com capacidades telepáticas recorrentes nas suas histórias, são um reflexo de si mesmo e de algumas “premonições” difíceis de explicar como a doença do filho (que diagnosticou por “inspiração” superior, o que acabou por salvar a vida da criança). Caso particularmente interessante, se podemos considerar interessante uma história com contornos de abuso emocional, é o de Anne R. Dick, viúva do editor de uma prestigiada revista literária, com quem casou no final dos anos 50 e com quem teve uma filha. Anne aparece em vários dos seus livros, nomeadamente em The Three Stigmata of Palmer Eldritch/Os 3 Estigmas de Palmer Eldritch, onde se chama Emily e cria miniaturas de cerâmica que são usadas nas colónias extraterrestres como adereços numa alucinação induzida por uma droga chamada Can D, em que os personagens principais são inspirados na Barbie oferecida no Natal às meninas da família. O casamento com Anne, habituada a um estilo de vida confortável e já com 2 filhas, exigiu de Dick um empenho extra. Escrevia freneticamente, noite fora, alimentado a anfetaminas, mas não conseguiu nem reconhecimento, nem dinheiro suficientes para sustentar a prole e, por isso, trabalhava com Anne durante o dia no seu negócio de joalharia. A situação seria favorável a todo o tipo de desatinos (há muitos pormenores no livro The Search for Philip K Dick, publicado por Anne em 2010), sobretudo tendo em conta a pressão para estar à altura das expectativas sociais e familiares, os químicos consumidos e a falta de resposta das editoras aos manuscritos. PKD convenceu-se que Anne queria matá-lo e conseguiu mesmo interná-la compulsivamente num hospital psiquiátrico, mas tudo acabou bem até se separarem, uns tempos depois. Retalhos da vida de ambos estão espalhados por vários livros, incluindo Do Androids Dream of Electric Sheep, uma vez que o casal tinha bastante devoção pelos seus carneiros de estimação.

A paranóia de Dick, até aqui mais ou menos subliminar, ou transferida para as suas histórias, começa a abrir caminho para a exploração filosófica que iria tomar conta da sua existência a partir de 1974 (o evento conhecido como 2-3-74, porque aconteceu em Fevereiro e Março de 1974, mas já lá vamos). Nesta fase, primeira metade dos anos 60, Dick começava a ser atormentado pela existência e poder do mal. É daí que vem Os 3 Estigmas…, um livro que considerava “lidar com o mal absoluto” e que acompanhou a sua conversão religiosa e consequente batismo. A opção não parece ter apaziguado os seus temores, mas conduziu-o a investigação teológico-filosófica que serviria de bússola a tudo o que fez a partir daí, incluindo conhecer James Pike, Bispo da igreja episcopal que chegou a ser capa da revista Time em 1966. Pike era um personagem controverso pelas suas convicções anti-guerra, foi expulso da igreja como herege por colocar em causa alguns dos princípios base do cristianismo e, após o suicídio do filho, na busca de uma explicação, entregou-se a práticas espiritualistas renegadas pela ortodoxia religiosa. Pike foi amigo próximo de Dick e uma grande influência na sua procura de conhecimento místico, serviu de inspiração ao último livro da trilogia Valis, A Transmigração de Timothy Archer, na verdade o último livro que Dick publicou em vida e um dos mais impenetráveis e biográficos. Há que dizer que toda a produção de Dick ao longo dos anos 70 tende a ser complexa e quase hermética, apesar de fascinante e mais de natureza filosófica do que sci-fi.

 

“Deus, ou é fraco, ou estúpido ou não quer saber. Ou as três coisas ao mesmo tempo. Mau, estúpido e fraco” — Philip K. Dick, Valis

 

Se quisermos colocar as coisas nestes termos, Deus começa a afectar Dick em meados da década de 60, mas o seu efeito irá agudizar-se uns 10 anos mais tarde, em 1974, quando a extracção de um dente do siso despoleta o que parece ser um estado alucinatório. Essa experiência, o tal 2-3-74, e tudo o que se lhe seguiu, está relatada na Exegesis, uma série de escritos automáticos que cruza gnosticismo e fenomenologia, cita Platão, Heidegger e Kant (entre outros), tudo cruzado com Budismo, teoria dos sistemas e rudimentos de neuro-ciência. Dick começou a escrever a Exegesis em 1974 e não parou até ao fim da vida, parte das quase 9000 páginas manuscritas que deixou foram recentemente reunidas num livro carinhosamente designado como “Biblia Dickiana” por Dickheads no mundo inteiro. Como bom paranóico, para Philip K. Dick tudo era significativo, até a rapariga que foi levar-lhe os medicamentos a casa usando um colar com um peixe,  símbolo dos primeiros cristãos. Segundo Dick, um raio de luz cor de rosa foi emitido pelo peixe, o que o fez entrar em contacto com o que chamaria anos depois “fragmentos de memória residual” que lhe permitiram perceber que vivemos numa realidade programada por computador. Ele afirmou isto mesmo numa conferência em Metz, França, em 1977, perante a estupefacção geral. A maior parte dos presentes deve ter achado que estava finalmente insano (provavelmente até estava, Dick teve vários psiquiatras ao longo da vida, foi diagnosticado bipolar, além disso tomava muitas anfetaminas, o que provoca danos neurológicos, tentou matar-se pelo menos uma vez e teve vários ataques cardíacos antes do fatal) mas quem duvida de universos paralelos hoje, com a fragmentação e multiplicação do Eu na vida online, em plena era da pós-verdade quando a realidade pode ser, e efectivamente é, manipulada pelos media, governos ou corporações? A questão é séria ao ponto de haver investigação cientifica sobre se o real é mesmo real ou se vivemos num universo holográfico e a existência do multiverso é suportada pela Fisica Quântica e Teoria da Cordas. Além disso, robots humanoides são já um negócio e o desenvolvimento da Inteligência Artificial tem mostrado que as máquinas podem aprender rapidamente a ser mais como as pessoas, o que torna muito próximo o universo de Blade Runner e muito enfáticas algumas das perguntas de Philip K. Dick sobre a natureza do humano.

 

Nesta conferência de 1977, Dick afirma ainda que duas das suas novelas, The Man in the High Castle/O Homem do Castelo Alto, que elabora uma realidade alternativa em que o Japão e a Alemanha ganharam a II Guerra Mundial (já adaptada a série de televisão), e Flow My Tears The Policeman Said/Vazio Infinito, sobre um homem famoso que perde a identidade e um policia que vive obcecado com a irmã morta, ambas sobre a América como estado policial, são fruto dessa memória residual de uma outra realidade. Dick estava convencido que era tudo, toda esta informação a que teve acesso, era obra do Império Romano, quiçá do KGB ou da CIA que provavelmente interferiam telepaticamente com ele, podia também ser a irmã morta a comunicar de outra dimensão… as tentativas de explicação serviram apenas para levantar suspeitas sobre a sua sanidade mental. O próprio Dick colocava a hipótese de estar louco mas foi provavelmente essa loucura que o fez antecipar questões como a perda de privacidade e o controle dos indivíduos permitido pela tecnologia. Em The Simulacra/O Tempo dos Simulacros (passado nos anos 90 do séc XX) a América está dividida entre uma massa anestesiada e uma elite manipuladora, o Presidente é um andróide e os media controlam a percepção da realidade. Em A Scanner Darkly/O Homem Duplo, uma história de toxicodependentes escrita depois de sair de uma clínica de reabilitação, a vigilância tecnológica é opressiva, permanente e auto infligida.

Não é difícil perceber por que razão Dick foi tão pouco valorizado e compreendido em vida. De algum modo, ele estava de facto à frente do seu tempo, não só numa consciência de estranheza do ser humano perante o real e perante si mesmo, mas também na antecipação do futuro. Em 2017, muitas das suas projecções podem parecer-nos até ingénuas mas tocam em questões cada vez mais fundamentais, por isso mesmo a sua obra revela-se cada vez mais pertinente e actual. É fascinante como um escritor que questiona tanto a realidade se transformou num arquétipo tão forte da ideia de futuro (ou de presente).

 

Texto: Isilda Sanches