Oub'lá

Luís Severo

“Combati o peso do segundo disco pedindo o mínimo de opiniões e confiando em mim o máximo possível”

 

Luís Severo abre-nos a porta do estúdio que é a casa das suas últimas canções. Sorri, bem disposto e convida-nos a subir para fugirmos ao frio do fim de tarde dos últimos dias de Inverno. Passeia-nos, simpaticamente, pelo estúdio de Alvalade que hoje partilha com os Capitão Fausto e com as demais bandas da editora Cuca Monga. “No fundo, nesta casa, estou eu, o Diogo [Rodrigues] e os [Capitão] Fausto. Somos sete. É uma casa pequena”, conta Severo enquanto nos apresenta o amplo espaço com um piano lá ao canto – o mesmo onde se iria sentar, mais tarde, e simpaticamente para tocar um pouco para a Antena 3 um par de canções do seu novo disco, homónimo.

O músico anda à volta da escrita de canções desde 2009 – altura em que se refugiou no nome de O Cão da Morte numa página de MySpace. A maturidade trouxe-lhe mais confiança, a assunção do nome Luís Severo, a arte e o engenho para se tornar num brilhante artesão de canções, como se confirmou em Cara D’Anjo, de 2015. A cantora e fadista Cristina Branco apercebeu-se do talento e convidou-o para escrever o tema “Alvorada” no seu disco Menina (vencedor do troféu Melhor Álbum nos prémios Autores 2017 da SPA).

O regresso de Severo acontece agora com o disco homónimo, oito canções que nasceram ao piano e que se tornaram em algo maior e completo: um auto-descobrimento de Luís Severo, o poeta que já sabe ser compositor.

Hoje e amanhã, 29 e 30 de março, pode ser visto e ouvido no Teatro Ibérico, em Lisboa, tal como aparece neste vídeo: ao piano, só ele e as suas palavras.

 

De onde vem o teu apelo por estas novas canções?

Queria ter novas canções para tocar ao vivo. Em 2016 consegui ter algum tempo… o outro disco [Cara D’Anjo] correu minimamente bem e permitiu-me estar a tocá-lo bastante tempo. Durante imenso tempo a minha vida foi à quinta, sexta e sábado ir tocar ao vivo, e os restantes dias da semana livres. Então aproveitava esses dias para tentar compor. Decidi aproveitar o facto de o outro disco estar a correr bem e “agarrar” esta oportunidade de poder fazer música a tempo inteiro. Tive essa sorte. Foi nessa altura que comecei a ter algum ímpeto para criar algumas novas canções. Pelo meio disso aparece este sítio onde estamos hoje: Alvalade.

E este estúdio onde estamos, que partilhas com os Capitão Fausto e com a turma da Cuca Monga, acaba por ter um papel importante na criação deste disco.

Eu estava nos estúdios da Interpress, no Bairro Alto. Era um estúdio central, onde tinha uma sala, e onde muitos amigos meus tinham também salas – a Cafetra, os Capitães da Areia, a malta do jazz, como o Ferrandini… Era um edifício onde se juntava muita gente e onde eu, inevitavelmente estava sempre a trocar muitas impressões com quem lá estava…

 

“Decidi aproveitar o facto de o outro disco estar a correr bem e “agarrar” esta oportunidade de poder fazer música a tempo inteiro. Tive essa sorte. Foi nessa altura que comecei a ter algum ímpeto para criar algumas novas canções. Pelo meio disso aparece este sítio onde estamos hoje: Alvalade”

 

Então foi como diz a canção dos Capitão Fausto: Alvalade chamou por ti.

De certa forma… apesar de tudo, a sala onde eu estava não tinha estas condições: era pequena, numa cave, não podia apanhar sol – que é algo que estimo muito (pelo menos ter uma janela para ver a rua) – e era uma sala usada mais para ensaios do que para estúdio. Eu sou mais gajo de ir para a sala gravar do que propriamente ir beber umas jolas e ensaiar… Eu tinha o Diogo [Rodrigues] – que toca ao vivo comigo desde 2015 – e sabia que ele tinha este espaço. Decidi então ter “a lata” para perguntar se podia vir para aqui: perguntei se podia trazer o meu equipamento de estúdio, que era algo que esta casa não tinha assim tanto, e pô-lo à disposição de todos desta rica família que é Alvalade. Neste caso não foi tanto Alvalade a chamar por mim, mas fui eu a chamar por Alvalade (sorri).

Em que é que este estúdio te ajudou na construção deste álbum?

Bem, trouxe-me dois lados igualmente importantes: por um lado tive mais alguma solidão e afastamento, porque pude vir para aqui muitas noites compor ao piano – sem interferências. No outro estúdio no Bairro Alto estava constantemente a confrontar-me com opiniões e aqui, apesar de tudo, apesar de haver malta, era muito menos gente. Tive acesso a essa solidão, mas, ao mesmo tempo, a um convívio com pessoas que já conhecia, mas com quem nunca tinha estado a trabalhar.

Porque é que essa solidão era importante para trabalhares as novas canções?

Há aquela questão do segundo disco. É sempre um peso, sobretudo quando o primeiro corre bem: há mais expectativa de que pode ser ou a confirmação ou então a “desconfirmação” – “olha, o gajo enganou-se naquele”; “este é mau, mas afinal é isto o que ele é”. O segundo disco pode ter esse peso. Falei com algumas pessoas sobre isso: o Éme, por exemplo, que teve um disco que correu muito bem, com imenso impacto, mas também ficou com esse peso. Decidi combater o peso do segundo disco pedindo o mínimo de opiniões possível e confiando em mim o máximo possível, mas ao mesmo tempo compensando a autoconfiança com um empenho máximo. E vou ser-te sincero: em 2016 eu praticamente não saí à noite. Mudei completamente os meus hábitos para ficar a compor.

 

“Eu sabia que o Diogo [Rodrigues] tinha este espaço. Decidi então ter ‘a lata’ para perguntar se podia vir para aqui: perguntei se podia trazer o meu equipamento de estúdio, que era algo que esta casa não tinha assim tanto, e pô-lo à disposição de todos desta rica família que é Alvalade. Neste caso não foi tanto Alvalade a chamar por mim, mas fui eu a chamar por Alvalade”

 

As canções deste disco nascem então desse teu encontro contigo próprio, da tua auto-análise e reflexão ou são histórias imaginadas?

É de alguma reflexão, sim. Não sendo um disco minimamente político ou ativista, é um disco onde já começo a pensar alguns assuntos que já não são só de alguma natureza apaixonada – algo exclusivo do outro disco. Começo a pensar os assuntos que até podem estar mais associados à ordem da política, mas que tentei sempre pensá-los de uma forma mais pessoal e mais íntima. Apesar de ser um disco muito sozinho, de composição solitária, não é um disco que fala sobre passividade: fala da cidade, da forma com vejo as pessoas. Não tenho a mínima preocupação de estar a dizer coisas certas ou erradas: digo apenas o que sinto e a forma como vejo as coisas.

Parece-me ainda que é um disco de muito apercebimento da tua parte. Em algumas canções, fiquei com a sensação que estavas a descobrir muita coisa relativamente à tua identidade e enquanto escritor de canções.

Acho que enquanto escritor de canções isso é claro – não só no que eu digo, mas em toda a construção das canções. Acho que, mesmo a nível estritamente musical, fala mais uma linguagem minha. Acho que encontrei mais um espaço que possa ser meu. Quanto às letras: não sei se é um disco de me aperceber de muitas coisas e que essas coisas não se alterem daqui a um ano – é possível. Mas acima de tudo é um disco em que estive a refletir e acho que nesse sentido é natural que me tenha apercebido de muitas coisas.

No texto de apresentação do disco contas que mudaste a forma de te atirares às canções, de dedicares-te primeiro à música e depois à palavras. Isso significa que neste disco sentiste-te mais um compositor e não um poeta?

Havia muito esse lado associado a mim, que a letra era o ponto forte e muitas vezes eu sentia que a música acontecia como um enfeite à letra. Além de que estar a fazer uma letra, em folha – apontadas – já me provocava limitações: fazia uma quadra, ou outro estilo qualquer – e já se sabe como é que aquilo vai acabar em música e acho que, no meu caso, estava a tornar-se óbvio. Ainda tentei continuar fazer como sempre fiz, mas não estava a ficar satisfeito. Depois ainda me agarrei ao piano, que também já não agarrava há imenso tempo, e comecei mais a fazer linhas e músicas e até a construir as letras de uma forma falada: muito poucas vezes as apontei. Só há pouco tempo, quando me pediram as letras para pôr na Internet, fui ao sítio onde as tinha apontadas e estavam quase todas diferentes – fui sempre alterando a cada vez que ia cantando.

Tens metas a atingir enquanto compositor ou preferes aproveitar a viagem?

Acho que há uma meta, mas para cada canção. Mas quando é que se sabe que uma música está mesmo acabada? Eu sempre fiz os meus álbuns em estúdios onde não tinha o tempo contado, onde podia ficar mais uma semana ou duas. Quando não se tem o tempo contado, como é que se sabe que a música já está feita? Que não se pode fazer outro take ou fazer outra equalização? De facto, a verdade, é que quando sonho com uma canção, na prática posso acabá-la, mas nos meus sonhos estava ainda melhor. E eu sonho muito: quando idealizo canções é quase sempre de uma forma utópica em que imagino coisas que nem sei bem o que são. Mas há uma meta: há um dia em que tem de se decidir que está feito, que acabou. E esse dia é complicado: fico quase sempre indisposto… Deve ser aquela sensação que um pai tem quando um filho sai de casa: “é bom que ele vá, mas eu não quero”. Claro que tive muita experimentação ao longo dos meus discos, mas quero é que com o tempo as coisas soem menos a experimentação e mais a conclusão.

 

“Não sendo um disco minimamente político ou ativista, é um disco onde já começo a pensar alguns assuntos que já não são só de alguma natureza apaixonada. Apesar de ser um disco muito sozinho, de composição solitária, não é um disco que fala sobre passividade: fala da cidade, da forma com vejo as pessoas”

 

E o piano, como é que entra nesta nova fase de escrever canções? Porquê este apelo do piano?

Essa é de fácil resposta. Tenho estado a falar imenso (risos) e agora vou ter uma coisa curta para dizer: porque nunca tinha estado numa sala onde, de facto, existisse um piano. Nunca tinha tido um piano à minha disposição. Acho que se já tivesse tido antes, já tinha acontecido fazer um disco de certeza.

Está também ligado com a vontade que tens de fazer concertos só ao piano?

Sim, está. A banda vai ser ensaiada e vai aprender este disco, mas sendo este um disco mais “estranho” senti que era muito cedo estar já a pôr a banda a tocar ao vivo. Para este concerto eu tinha mais um conhecimento da causa a solo. Depois decidi agarrar-me ao piano, aproximando mais o público até da forma como eu compus isto tudo, mas não vou simplesmente tocar as canções de uma forma simplista: tenho estado a fazer arranjos, dentro das minhas competências e limitações.

Estou curioso para perceber como é que este disco vai soar ao vivo: pode pensar-se que este trabalho homónimo é um disco onde o piano está em primeiro lugar, mas não. É um disco que nasce do piano, mas que cresce para outras coisas.

Exato. A coisa boa ao piano é que tens duas mãos e podes tê-las a fazer coisas diferentes! Vou ter uma mãos a fazer acordes e a outra a fazer as linhas que se ouvem no disco: violino, teclados, guitarras… a mão em que tenha folga vou aproveitar para adaptar os arranjos do disco para o piano. Nesse sentido, é um espetáculo mais ambicioso porque nunca na vida fui para um palco tocar uma coisa tecnicamente tão exigente. Mas senti que era uma boa altura para que esse passo acontecesse.

Entrevista: Bruno Martins