Oub'lá

Capicua

“Este tem sido um processo de quase psicanálise musical”

 

Ana Matos tinha, há muito tempo, o sonho de tocar as suas músicas com uma banda. Na verdade, essa é uma vontade comum nos rappers, que vivem sempre com esse desejo, mas sempre sem querer desvirtuar a raiz do seu hip hop. Depois de já ter feito alguns concertos com outros formatos especiais – a escolha de um repertório mais intimista ou um espetáculo com dança – Capicua cumpre agora o seu sonho de acrescentar um lado mais orgânico à sua discografia.

O concerto de sexta-feira, no Centro Cultural de Belém, vai contar com os companheiros de palco de sempre, M7 e o DJ-One, com Virtus – que se juntou há um par de anos a este elenco – e agora o baterista Ricardo Coelho, o teclista Sérgio Alves e o baixista Luís Montenegro. Na preparação do espetáculo, Capicua levou a sua discografia ao divã: primeiro uma desconstrução para depois ganharem uma nova vida, uma reconstrução – mesmo aquelas que já tinham ficado lá mais para trás.

Agora que já sabe como é, Capicua está a ganhar-lhe o bichinho. Fica no ar a hipótese de este projeto seguir até outros palcos, mas a certeza de que a essência do rap – da construção de faixas sempre com origem nos beats – nunca vai mudar.

Os teus últimos meses têm sido de muito trabalho, a fazer várias coisas ao mesmo tempo. Com o aproximar da data do concerto do Centro Cultural de Belém (CCB), o tempo está ainda mais apertado?

São muitas coisas ao mesmo tempo: primeiro foi com o lançamento do [disco] Mão Verde, em setembro, que fiz a meias com o Pedro Geraldes. Assim que acabei a promoção desse trabalho comecei logo a trabalhar na promoção e ensaios do concerto do Centro Cultural de Belém. Além disso, estou ainda com o projeto OUPA, que já tinha acontecido no ano passado no Bairro do Cerco e agora está nos bairros da freguesia de Ramalde, e estamos a preparar o espetáculo final no dia 18 de dezembro. Mas, basicamente, é estar durante as tardes no OUPA e à noite nos ensaios!

Conta-nos têm sido esses ensaios para o CCB.

É toda uma nova formação, com mais músicos e elementos. Até hoje fiz sempre questão de tocar no formato de hip hop mais habitual, até por uma questão de statement. Como tenho um público mais diverso, que abarca pessoas mais velhas, crianças ou pessoas de outras tribos urbanas, gosto de levar o formato clássico quase como se estivesse a dar a conhecer – e eventualmente destruir um certo preconceito que haja. Claro que há experiências pelo meio, como as experiências acústicas ou participações com outros artistas. Mas eu própria a organizar um conjunto de músicos com um conjunto de instrumentos mais “normais” para tocar o meu repertório ainda não tinha acontecido.

 

“Andava a adiar esta coisa da banda e há tantos anos que tenho essa ideia, que quase todos os rappers têm, de um dia tocar com uma banda cheia de instrumentos. Então por que não é agora?”

 

Então porquê agora? Foi uma proposta tua?

O CCB convidou-me para fazer o encerramento do ciclo CC Beat, que começou em janeiro com os Orelha Negra. Como era um concerto no Grande Auditório e era a minha estreia, ficou implícito que seria algo especial. Durante muito tempo fiquei a pensar no que poderia fazer de diferente. Andava a adiar esta coisa da banda e há tantos anos que tenho essa ideia, que quase todos os rappers têm, de um dia tocar com uma banda cheia de instrumentos. Então por que não é agora?

O primeiro desafio foi encontrar as pessoas certas para te acompanharem?

Sim. Mais do que encontrar um grupo de virtuosos ou lendas vivas, quis encontrar pessoas que gostassem de tocar hip hop, sobretudo. Parece fácil encontrar gente assim, mas não é. Até porque queria jovens músicos do Porto: é a minha cidade e também para alimentar esse espírito no contexto do Porto.

E então, fizeste um casting?

Não, pensei nas pessoas com quem já tinha colaborado ao longo dos anos. Foi muito fácil encontrá-los: com o Ricardo Coelho , que é o baterista, e com o Sérgio Alves, o teclista – que até toca com a Marta Ren – eu já tinha colaborado há uns anos num projeto muito engraçado: um grupo de músicos do Porto que se juntou para tocar beats clássicos e convidou uns MCs para tocar duas músicas e fui eu, o Berna, o Maze… foi um concerto no Armazém do Chá, para poucas pessoas, mas foi mesmo engraçado. Na altura gostei muito do trabalho do Sérgio e do Ricardo – lembro-me que nunca vi alguém ninguém tão feliz a tocar hip hop. Depois, o baixista, que também toca guitarra e sintetizadores, é o Luís Montenegro, dos Salto, que já tinha colaborado comigo no Medusa, fazendo uma das remisturas. Juntaram-se todos ao D-One e ao Virtus, que se mantém nos pratos e nos samples. Essa dimensão é intacta.

 

“Tinha saudades de duas ou três músicas do primeiro disco, que já não tocava há mesmo muito tempo. Lembro-me de me fartar delas, no percurso, e agora fui ouvi-las e perceber que tinha saudades. Com este arranjo novo foi mesmo como se tivessem ganho uma nova vida”

 

Queres explicar-nos o trabalho que estão a fazer na preparação dos temas?

Foi uma espécie de desconstrução dos instrumentais. Fomos perceber o que tinha de se manter para não desvirtuar o beat e o que é que se ia acrescentar. Primeiro uma desconstrução e depois uma reconstrução com outros instrumentos. Está a ser um processo muito interessante.

Já divulgaste uma das canções que vais tocar, a “Lingerie”, que tem um sample icónico de piano. É giro que ficámos sem saber se é uma gravação disparada pelo Virtus, pelo D-One ou se é um sample orgânico tocado pelo teclista!

É o teclista, sim. Há os samples de voz, disparados pelo Virtus, algumas frases que estão a ser disparadas pelo scratch, e o sample que está a ser tocado. Mas isso depende de cada beat. Há instrumentais que precisam de uma base eletróncia: não se toca baixo e em vez disso tocam-se sintetizadores; ou não se toca bateria, tocam-se os pads. Fomos encontrar soluções para respeitar a estética.

Por teres ido mexer no teu catálogo, pode dizer-se que este concerto acaba por ser também uma “revisão da matéria dada”. É importante para ti fazer esta análise?

Sinto isso, sobretudo, na escolha do alinhamento. Quando me propus a fazer este concerto, pensei logo que não queria fazer concerto dedicado a um disco, porque já toquei muito o Sereia Louca e o Medusa! Queria traçar uma diagonal na minha discografia: a mixtape de 2008, o disco de 2012 – o primeiro – depois a mixtape de 2013, o Sereia Louca e o Medusa, mais participações e colaborações… fui ver o que resistiu melhor ao tempo e quais as músicas que tinha mais vontade de tocar.

Houve saudades de algum período específico?

Tinha saudades de duas ou três músicas do primeiro disco, que já não tocava há mesmo muito tempo. Lembro-me de me fartar delas, no percurso, e agora fui ouvi-las e perceber que tinha saudades. Com este arranjo novo foi mesmo como se tivessem ganho uma nova vida. Tem sido um processo de quase psicanálise musical: fui ouvir tudo e fazer uma lista grande das músicas que achava que ainda tinha vontade de tocar, porque há outras que já não tenho vontade de tocar desde que as gravei! Depois pus a lista grande à consideração dos músicos e foram eles que escolheram quais as que íamos tocar. Foi um processo primeiro individual e depois coletivo. Foi engraçado.

 

“Mais do que encontrar um grupo de virtuosos ou lendas vivas, quis encontrar pessoas que gostassem de tocar hip hop, sobretudo. Parece fácil encontrar gente assim, mas não é”

 

Gostavas de continuar com este projeto de banda? Gostavas de fazer um disco neste formato?

Isso não sei bem. Gosto muito do processo de começar com beat e escrever a partir dali; gosto do som dos beats de hip hop, com base sample de boom bap. Posso ir buscar uma guitarra ou um baixo para serem acrescentados em pós-produção, mas não me vejo a ter um processo criativo com banda. Para mim, o início é o sample. O que não invalida que tenha vontade de tocar mais vezes com eles e que, num próximo disco, possam fazer este processo de desconstrução-construção dos beats.

Entre vozes e produtores, a tua música tem sido feita de muitas parcerias. O concerto do CCB vai ter alguém a subir ao palco para te acompanhar (além da M7, claro)?

O Nerve. Vai cantar o “Judas & Dalilas”, do primeiro disco. Esse disco é de 2012 e nunca cantámos juntos essa música. Ele também teve retirado uns anos e não era muito fácil apanhá-lo.

Como explicaste, estás com outro projeto entre mãos: o Mão Verde. Depois do disco lançado, é altura de o levares às pessoas?

Sim. O projeto começou com um convite do São Luiz para fazermos um concerto, que aconteceu há quase um ano. Desde então tocámos muitas vezes, sobretudo para a comunidade escolar. Agora queremos continuar a fazer esse circuito, mas fazer mais concertos abertos ao público. Vamos ter o concerto de apresentação em fevereiro e depois continuar a tocar no resto do ano para auditórios municipais para escolas e famílias, mas também em salas maiores e festivais e ao ar livre.

O Mão Verde é um projeto teu e do Pedro Geraldes, guitarrista dos Linda Martini, de música para crianças. Ao vivo também são só os dois?

Um dos objetivos é começar a próxima temporada com um formato diferente. Até agora somos só nós os dois no palco, mas temos vontade de criar uma banda, com mais dois ou três músicos. Até agora era o Pedro a disparar os beats, no computador, e toca um instrumento por cada música – baixa, guitarra, percussão, teclas… – e é giro porque as crianças percebem que a música tem várias camadas. Ficámos muito contentes com todo o trabalho: com o disco, com o livro, com as ilustrações, com todo o conteúdo didático que acompanha as letras. Foi uma aventura nova para os dois: eu nunca tinha feito música para crianças e o Pedro muito menos, mas levámos isto muito a sério: não queríamos que fosse pateta, queríamos que fosse uma coisa que nos representasse. Brincamos com os vários estilos de música, que vão do rap à música havaiana, ao calipso, afrobeat, um bailarico de velhotas do bingo, Ace of Base dos anos 1990. E as letras também me deram muito prazer a fazer e têm a ver com os meus hobbies: tenho uma horta, adoro agricultura, alimentação. São coisas que nunca tinham tido expressão nas minhas outras músicas.

E acredito que, para ti, seja um exercício interessante de provocação da escrita. Obriga-te a esforçar a escrever.

Claro que sim. Porque também tenho de transmitir uma mensagem, de passar um conteúdo interessante. E adorei brincar com o formato lengalenga, que é quase a génese do meu interesse pelas palavras: rimas , lengalengas,  jogos de palavras… é levar a minha escrita para a repetição, para a aliteração, para o trocadilho, para as pescadinhas-de-rabo-na-boca. Foi isso que me fez interessar pelas palavras. E depois foi um exercício de quase libertação, de tentar uma escrita mais intuitiva e menos cerebral. Quase resgatar o Peter Pan interior e deixá-lo escrever sozinho.

 

“O projeto [Mão Verde] começou com um convite do São Luiz para fazermos [com Pedro Geraldes] um concerto há quase um ano. Desde então tocámos muitas vezes, sobretudo para a comunidade escolar. Agora queremos fazer mais concertos abertos ao público”

 

O que é que os miúdos vos dizem?

Dizem tudo! Mas fazem muitas perguntas, contam histórias de família e envergonham os pais (risos). Fazem perguntas sobre o cenário e sobre as luzes; e sobre as canções. E depois sabem muitas coisas sobre os temas: eu não estava à espera de perguntar o nome de uma erva aromática e ter 100 crianças com o dedo no ar a dizer “tomilho”, “alecrim”, “sálvia”… eles sabem tudo. Depois fazem muitas perguntas porque estão muito atentos às letras. Às vezes olhas para eles e reparas que ficam a pensar naquilo durante muito tempo, como se esviesses a ver a roda dentada dentro da cabeça a trabalhar. Estão mesmo a absorver. São umas esponjas.

No meio disto tudo, há tempo para escrever canções novas?

Quero fazer isso para o ano. Quero escrever. Quero acabar esta temporada de trabalho e durante o próximo ano quero pôr o Mão Verde na estrada e tocar o máximo de tempo possível com esta banda que arranjei para mim. E escrever, que é aquilo que me apetece fazer agora.

Não consegues escrever numa altura como esta, por exemplo?

Não, eu faço temporadas de escrita. Não escrevo seguido porque não gosto de escrever sem objetivo. E também é uma forma de não repetir vícios e fórmulas. Num disco gosto que as canções fiquem próximas umas das outras, temporalmente e em termos de estado de espírito.

Entrevista: Bruno Martins