50 anos de The Doors:

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O primeiro disco de uma das mais essenciais bandas celebra hoje meio século. Quanto mais longe estamos dele mais vontade temos de o ouvir, mais queremos subir o pano deste quarteto fantástico

 


Por Miguel Branco

Álbum de estreia, editado a 4 de Janeiro de 1967

Cara ou coroa.

A possibilidade de uma banda como os Doors terem aparecido nos anos 60 não está muito distante da teoria da torrada, aquela que diz que a malandra cai sempre com o lado da manteiga para baixo. Não sabemos – admitamos já – se foi a própria década ou uma entidade superior a barrar o pão do lado certo, o que é certo é que era ali ou nunca. E não é que foi?

The Doors, primeiro disco da banda de Los Angeles, foi feito há meio século.

Estúdio Sunset Sound

Dificilmente outro tempo aceitaria, sem um rezingar ofendido, temas de onze minutos onde se trata a morte por amiga, concertos onde a audiência é apelidada de escrava pelo vocalista. Público dos sessenta, claro, que sempre achou essas manifestações da libertação do ego de Jim Morrison um número de espetáculo. Foi nessa atmosfera turva, nesse vale do vale-tudo, que este disco nasceu. Editado pela Elektra há 50 anos, a 4 de janeiro de 1967 – composto entre 24 e 31 de agosto de 1966 no estúdio Sunset Sound em Hollywood e produzido por Paul A. Rothchild –  é mais do que tempo de recuperar a sua destemida história. E sublinhar que como este disco há poucos.

UCLA: A escola

Algum intervalo ou engate de cacifo, não importa, juntou Ray Manzarek (teclista) e Jim Morrison (voz) na UCLA, em 1965. E esse acaso foi obra de mestre. A estes juntar-se-iam, mais tarde, Robbie Krieger (guitarra) e John Densmore (bateria), conjunto cujo nome se deve a “The Doors Of Perception”, obra do filósofo inglês Aldous Huxley que detalha as suas experiências científicas sobre o efeito de mescalina. Os quatro músicos começaram a atuar em bares locais como o London Fog e Whisky A Go Go, locais centrais na confeção deste cinquentenário The Doors.

 

 

UCLA

Rui Pedro Silva, autor português com vários livros editados sobre a banda – tendo chegado mesmo a obter testemunhos dos sobreviventes da banda – considera um privilégio ter visitado a UCLA, onde Morrison e Manzarek eram ainda desconhecidos. Debatiam-se temas com a Guerra do Vietname, os Direitos Civis, o oxigénio que pairava naquele campus revelar-se perfeita para estes amigos. “A UCLA dos então alunos de Cinema, Jim Morrison e Ray Manzarek, era um campo muito fértil onde essas temáticas assumiram uma proporção real, vivida intensamente, que levou Jim Morrison a visualizar uma alternativa ao cinema e à sua poesia, onde poderia projetar esta última a um nível incomparável. Foi na música que a descobriu com toda a bagagem que a UCLA lhe proporcionou”, garante.

 

Noites encharcadas onde observavam o jogo da cadeira, sentar-beber-sair, a exaltação inconsciente da década que os viu nascer serviu-lhes lindamente. Como Greil Marcus – autor, crítico musical e grande especialista em Doors – afirma em The Doors (livro editado pela Faber em 2011): “Os sessenta são descritos genericamente como o tempo onde as pessoas participaram, saíram de si mesmas e atuaram em público, mas é também o tempo onde as pessoas bloqueavam a polícia e corriam para casa para se verem nas notícias da noite, para serem telespetadores da sua ação”.

Se foi essa a geração, o frenesim, que idolatrou os Doors assim que “Light My Fire” chegou às rádios, pode bem ter sido a mesma a corrompê-los. Sobretudo ao ego de Jim Morrison, ser humano anti sistémico, flutuante, atraído pelo xamanismo e pela cultura primitiva, pela forma totalmente livre de se pensar. “O sofrimento foi feito para nos acordar, as pessoas tentam escondê-lo, mas estão erradas. O sofrimento é para transportar, como um rádio”, disse Jim Morrison a Lizze James, jornalista que em 1981 publicou um longo artigo, na “Creem Magazine” do tempo em que conviveu com o músico.

Agora sim, rock’n’roll

Como quase sempre na comunicação humana, o que é emitido nem sempre chega ao recetor. Ou, por outra, ninguém assegura as condições em que a receção é feita. Ainda que para Morrison o mundo fosse sombrio e pura incompreensão, o mundo, que se abriu perante os Doors em 1967, só queria ouvir Doors. E no que a isso diz respeito, não podia estar mais certo.

 

 

A sua aparição na indústria musical e cultural foi um dos grandes volte-faces do século XX. Até aí reinava o cabelo à tigela, as calças à boca de sino, a gravata escura, e, sobretudo, canções, no estrito sentido da palavra. E isso os Doors nem sempre fizeram. Identidades como as dos Beatles ou dos Beach Boys pouco tinham que ver com esta personalidade áspera, com a sonoridade psicadélica, linguagem difusa e mordaz – por vezes de braço dado com a morte – que definia os quatro amigos de L.A. O rock começou a ser rock, isto é, as rockstars estavam a partir de agora a praticá-lo, sobretudo quando em contraste com os dois exemplos dados acima. Mas há mais: pensemos em gente como os Who, que incitaram um caminho bem menos pop do que até aqui havia feito.

O culto não chega

Rui Pedro Silva confessa que os Doors são “muito mais que música”, e que foi “via Morrison”, que descobriu Nietzsche, Rimbaud, a Beat Generation, uma série de referências que guarda para a vida. “Foi através dessa consciência artística que nasceu o meu real interesse pelos Doors em paralelo com o fascínio pelo sublime trabalho de Ray Manzarek, Robby Krieger e John Densmore, porque sem eles a magia do som dos Doors, que envolve as letras de Jim Morrison e Krieger, nunca teria a força universal que conquistou.”

 

 

Por mais que o automático seja a aproximação ao culto dos Doors, enquanto bandeira de modificação sociocultural, seria por demais injusto, redutor, não escutar a sua música sem considerar os seus egos. É o que Greil Marcus – em entrevista ao “The Atlantic” em 2011, pouco depois de editar “The Doors” – prega: “Não é uma biografia da banda, não quero saber quem é que estas pessoas são ou foram. Só estou a tentar ouvir a sua música e viver dentro dessas músicas durante um período de tempo. A música parece sempre apenas um veículo para um mito de um herói trágico. A música dos Doors ainda está a ser ouvida”.

LER The Doors: Faixa a faixa