Ricardo: Cego e indefeso

"As pessoas quando vêem um cego... é uma espécie de unicórnio"

O Ricardo tem 36 anos, é fisioterapeuta, faz stand-up comedy e é invisual. Ou cego. A nomenclatura não o incomoda, pelo menos não tanto quanto a intenção que os que o olham possam pôr nas palavras. O Ricardo não nasceu cego e não se comporta como um. À parte da ajuda que precisa para se deslocar, pelo menos numa primeira instância, de uma divisão desconhecida para outra, é difícil reconhecer na forma como se mexe alguma hesitação.

Perdeu totalmente a visão com 18 anos, depois de um pós-operatório que não correu bem, a adicionar a um acidente que teve com 7 anos. A pouca sorte podia tê-lo deixado frustrado ou revoltado, mas não é esse o tipo de energia que o Ricardo passa. Há tranquilidade na forma de se explicar e, sobretudo, um humor natural que contorna habilmente o desconforto dos que o olham e esperam alguma dose de fragilidade.

Perdi a visão e quando me reencontrei fui para um curso de massagem, de recuperação (…) Trabalho agora na área da osteopatia. Na primeira consulta, por exemplo, eu costumo dizer logo ‘eu não vejo, portanto não me diga dói aqui quando faço assim’. Normalmente as pessoas lidam bem, às vezes ficam ali dois segundos a processar a coisa. Ele está a gozar comigo ou não vê mesmo? Ou vê mal?”

Em espaços onde está habituado a movimentar-se, torna-se quase imperceptível que Ricardo seja cego. A memória ajuda-o nestas questões mas isso acaba por confundir os normovisuais, ou seja, os que conseguem ver e o acompanham ao que consideram uma “velocidade normal”. Na ausência de fragilidade, desconfiam.

Eu se for preciso faço a minha rua a correr – e quando digo a correr não estou a brincar na palavra – e nem sequer tenho a bengala na mão. É normal que faça confusão às pessoas. Eu consigo compreender. Mas eu tenho uma memória muito visual; tanto que se as pessoas falarem comigo eu tenho tendência para olhar para as pessoas. No meu local de trabalho eu subo escadas e desço escadas… Incomodou-me um bocadinho ao início as pessoas comentarem ‘ele finge é que não vê!’ (…) Eu mexo nos telemóveis também porque tenho um leitor no telemóvel, que existe precisamente para pessoas que não vêem poderem trabalhar com aquilo. 

Antes e depois da desconfiança há também a compaixão, a pena e uma errada noção da incapacidade destas pessoas para levarem uma vida de forma normal, obedecendo (ou não) à escada relacional que a sociedade desenha para a maioria. O que levanta algumas questões sobre a vida amorosa das pessoas com este género de incapacidade – como se a falta de visão impedisse o amor.

Relativamente a questões de engate, troca de olhares, pronto, não há, se houver não resulta (risos) Famílias já lidei com tudo. Mas há sempre uma tendência para os familiares dizerem coisas como ‘vê lá, vais namorar com uma pessoa que não vê, isso vai limitar muito a tua vida’ (…) Nalguns casos é normal que limite mas são sempre coisas perfeitamente ultrapassáveis. A maior limitação está sempre na cabeça das pessoas (…) Eu conheço pessoas que têm filhos e mudam-lhes a fralda e dão-lhes banho e, surpreendentemente, as crianças não ficam com a fralda na cabeça.

Mas o Ricardo leva a questão da normalidade mais longe. Para além de osteopata, foi durante muitos anos aluno de artes marciais.

De vez em quando cruzava-me com pessoas que não me conheciam e invariavelmente o pensamento era ‘então mas este gajo vem para aqui? Vai levar na boca, forte e feio!’ porque achavam estranho (…) Eu tive um mestre que todos os dias fazia treinos com os alunos de olhos fechados. E há acidentes claro, mas mesmo quem via de vez em quando queixava-se (…) Treinar sem ver ou treinar vendo mas de olhos fechados é bom para deixar todos os outros sentidos se despertem.

A dependência que os normovisuais têm em relação à visão não está sujeita a comentários da sociedade em geral. Mas a verdade é que não temos de pensar muito para nos apercebermos de que grande parte das atividades que fomos desenvolvendo ao nível tecnológico, põem a visão no centro da evolução técnica e das necessidades de primeiro mundo. No dia-a-dia, porém, talvez pudéssemos dispensá-la com maior facilidade do que imaginamos.

A visão é o sentido mais fácil de enganar. A maioria das coisas que nós fazemos vendo, a maioria delas conseguimos fazê-las sem ver. Eu continuo a fazer as mesmas coisas que fazia quando via, mas de uma forma diferente. Há uma memória corporal e espacial. Mas como o mundo está tão formatado para tudo o que é visual, as pessoas valorizam-no excessivamente.

Mesmo no que diz respeito a oportunidades profissionais, há uma excessiva preocupação com as dificuldades que uma pessoa invisual possa vir a sentir num emprego. As quotas facilitam a integração destas pessoas no mercado de trabalho, mas o facto de terem de existir põe a nu a diferença de acesso às funções

Se houvesse oportunidades iguais para toda a gente que tem uma limitação, então não tinha de haver uma lei que obriga à empregabilidade. Isso indica que as pessoas não estão assim tão abertas a empregar pessoas que não vêem ou não andam, mesmo que tenham todas as capacidades para fazer aquela função. Isso implica outros custos e às vezes algum trabalho (…) Há mais esse estigma de não empregar a pessoa porque vai dar muito trabalho preparar isto tudo para aquela pessoa trabalhar ali.

A independência das pessoas invisuais (ou com outras limitações) é posta mais em causa por toda a gente do que pelos próprios. Para o Ricardo, isso não o impede de andar na rua, fazer as coisas que quer ou almejar a outras profissões – como ser comediante enquanto discute as questões dos cegos enquanto faz rir quem o ouve. Mas quando anda na rua é quando fica mais sujeito aos olhares de pessoas que, ainda que com boa intenção, o encaram com uma compaixão por vezes desnecessária.

Eu costumo dizer que na rua há dois tipos de sinais sonoros: há os semáforos que apitam e as pessoas que gritam. As pessoas vêem um ceguinho de bengala e gritam (…) Aceito todas as ajudas quando preciso delas, mas às vezes são excessivas (…) Para além das pessoas acharem que quem não vê precisa sempre de ajuda, se a ajuda for recusada, mesmo de forma muito educada – e isto já me aconteceu montes de vezes -, a pessoa quando se vai embora diz entre dentes “É cego e mal educado!”

A desdramatização das limitações como a do Ricardo é o caminho ideal para normalizar as diferenças de uma sociedade que se quer inclusiva e que devia buscar a felicidade de todos os cidadãos e cidadãs. Empregar pessoas cegas para funções em que a visão não é um fator determinante, acomodar as necessidades delas e prever a sua inclusão numa equipa podem ser pedras basilares na mudança do paradigma da “normalidade”. Os invisuais, tais como quaisquer outras pessoas com deficiências, não são unicórnios e não têm menos profundidade intelectual por isso. A evolução tecnológica e biomédica têm vindo a facilitar, felizmente, o desenvolvimento psico-social destas pessoas e não pode ser ignorada no momento de ser aplicada à vida quotidiana e às oportunidades de trabalho.

Na relação com as pessoas, cabe a quem vê despegar-se dos preconceitos e integrar os que, à partida, estão fora de jogo. No final de conversa, ficou uma ideia curiosa: e se a cura para o racismo estivesse na cegueira?

Eu não sou racista e é uma característica que eu não consigo perceber muito bem e não é pelo facto de ter perdido a visão (…) A pessoa tenha o tom de pele que tenha eu nunca vou dar conta! (…) Se as pessoas passassem algum tempo sem ver talvez passassem a ler as pessoas, o ambiente, a vida de outra maneira e a valorizar e a desvalorizar outras coisas. A visão é um sentido muito fácil de enganar e altamente enganador!

 

 

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