Documentos – expressão de dicotomias na sociedade portuguesa


Os diferentes pontos de vista sobre o sistema político em Portugal originaram algumas divisões que contribuíram para um clima tenso entre diversos grupos/setores que se iam definindo durante o ano de 1975. As divisões existentes no seio do Movimento das Forças Armadas (MFA) foram um dos catalisadores dessa definição de campos com diferentes perspetivas económicas, sociais e políticas, visões consubstanciadas nos vários documentos publicados ao longo de 1975.


O MFA E A REVOLUÇÃO (II) – Uma “epidemia de planos”

Depois de um ano de incessante procura do rumo a seguir, as clarificações alcançadas na sequência dos golpes frustrados do 28 de Setembro e 11 de Março, que resultaram no afastamento dos sectores direitistas da esfera do poder, revelaram-se insuficientes. No Verão de 1975 a Revolução espartilha-se definitivamente. Os precários equilíbrios alcançados rompem-se e as tensões acumuladas manifestam-se com toda a violência, gerando um clima de pré guerra civil que se arrastará até ao 25 de Novembro. E, enquanto a sociedade civil se agita e mobiliza para as verdadeiras batalhas campais que então se travam, no centro do poder o núcleo duro do Movimento das Forças Armadas divide-se. A manifestação mais óbvia dos problemas que o MFA atravessa é a ‘guerra de documentos’ a que então se assiste.

O Programa do MFA representava não só um contrato político com a Junta de Salvação Nacional, mas também com o povo português. No entanto, e apesar da sua abrangência, este é um projecto mínimo, que apenas estabelece as suas linhas mestras. A revolução exigia novas clarificações e definições mais concretas sobre o caminho a seguir.

O Programa do MFA falava, ambiguamente, na instauração de um regime democrático. O problema agrava-se quando o termo «democracia» é substituído pela «via socialista», expressão consagrada no Pacto MFA-Partidos, e que, a partir do 11 de Março, passa a dominar o léxico político nacional. A dificuldade reside em estabelecer com clareza os parâmetros desta «via socialista», tanto mais que o socialismo é uma fórmula política que encerra numerosas possibilidades. A questão ganha particular relevância depois da realização das eleições para a Assembleia Constituinte e dos primeiros confrontos violentos entre os apologistas da via revolucionária e os da via eleitoral.

As propostas quanto ao caminho a seguir são múltiplas, quer no campo civil quer no militar. Neste último domínio, apesar do aparente consenso quanto à necessidade do estabelecimento de uma ‘aliança Povo-MFA’, concebida como elemento central e estruturante da via a instituir, a determinação dos contornos e parâmetros dessa aliança, assim como do esquema de organização do Estado, geram uma profunda divisão.

Na madrugada de 21 de Junho, depois de um longo debate, o Plano de Acção Política (PAP) do Conselho da Revolução é apresentado à imprensa. Solução de compromisso, em que se procura aglutinar ou promover o entendimento entre as diferentes tendências que se definiam no interior do MFA, o PAP defende uma identidade entre o MFA (“movimento de libertação do povo português” disposto a proceder a uma “descolonização interna”) e os movimentos de libertação africanos, não deixando, porém, de acentuar o seu “carácter suprapartidário” e “a via pluralista para a construção da nova sociedade”. Em última análise, este documento propõe a criação de uma sociedade socialista (“sociedade sem classes, obtida pela colectivização dos meios de produção”), a atingir pela via pluralista, com a participação dos partidos políticos. A ‘aliança Povo-MFA’ não é esquecida, esclarecendo-se que o MFA “pretende que todo o Povo Português participe activamente na sua própria Revolução”, e que, para o efeito, “estabelecerá ligações com todas as organizações unitárias de base, cujos objectivos se enquadrem na concretização e defesa do programa do MFA para a construção da sociedade socialista”. Segundo este documento, essas organizações populares “constituirão o embrião dum sistema experimental de democracia directa”.

O Programa de Acção Política (PAP) representa ainda uma tentativa de encontrar uma plataforma de entendimento no seio do MFA. No entanto, e apesar de ser uma proposta suficientemente lata para poder abarcar todas as tendências que se iam definindo, o acordo é frágil e precário. Não solucionando, de forma satisfatória, os problemas que se colocavam na definição de poderes e áreas de competência dos diferentes agentes da transição – MFA / Partidos / Poder Popular – o PAP é rapidamente ultrapassado. A partir de inícios de Julho, assistimos a uma pulverização de projectos políticos. Uma verdadeira ‘epidemia de planos’ que, na prática, traduz as rupturas já operadas no seio do MFA, mas também as tensões que, nesse momento, percorriam a sociedade portuguesa.

O comunicado final da Assembleia do MFA de 8 de Julho deixa patente as contradições que o dominaram. Nele se anuncia a aprovação de três documentos: o Plano de Acção Política; um documento de análise política global apresentado pelo Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves; e o Documento-Guia de Aliança Povo-MFA.

Visando, em última análise, a “instauração do poder popular”, o Documento-Guia assume a forma de instruções de acção prática, a levar a cabo nas unidades e organizações militares, tendo em vista a criação de uma extensa rede de associações, grupos, comissões, conselhos e assembleias estruturantes da “organização popular”. A constituição destas comissões seria faseada cabendo, num primeiro momento, a iniciativa às Assembleias de Unidades que, para o efeito, deveriam promover “sessões de esclarecimento e informação, o lançamento das Comissões de Moradores e Trabalhadores”. Depois, proceder-se-ia à criação de Assembleias Populares Locais e Municipais (segunda fase), Assembleias Populares Distritais (terceira), Assembleias Populares Regionais (quarta) e, finalmente, à criação da Assembleia Popular Nacional, “órgão superior de participação popular” (quinta fase).

Definindo um modelo contrário ao sistema de democracia representativa, o projecto é imediatamente apoiado por partidos e organizações políticas como o PCP, MDP, MES e PRP/BR. Representando um “salto em frente” no processo revolucionário, está, no entanto, longe de reunir consensos, não apenas nos meios civis como também nas estruturas do MFA.

Elaborado por uma equipa de trabalho integrando elementos do COPCON, representantes do Gabinete de Dinamização dos Ramos das Forças Armadas, 5ª Divisão, e outros, o Documento Guia resulta de uma aliança entre sectores afectos ao primeiro-ministro Vasco Gonçalves e os que gravitavam em torno do COPCON.

A aliança é, no entanto, de curta duração: a 13 de Agosto o COPCON apresenta uma nova proposta política em que se faz a apologia do poder popular e da democracia directa: Autocrítica Revolucionária do COPCON e Proposta de Trabalho para um Programa Político. Redigido por Mário Tomé, este documento era, para os seus apoiantes, a “única proposta viável e realista” para a construção da “sociedade socialista que se pretende alcançar”, tendo em vista a “real emancipação das classes trabalhadoras”. Em suma, um projecto em que, tal como no Documento dos Nove, se nega o modelo soviético e a social-democracia mas em que, ao contrário deste, se propõe um modelo assente no poder popular basista, uma ‘alternativa de esquerda’ entre o PCP e os gonçalvistas de um lado, e o grupo dos Nove do outro. Uma proposta claramente inspirada em algumas das ideias preconizadas por organizações de esquerda como o PRP/BR, MES ou mesmo a UDP.

Por outro lado, a 7 de Agosto, um outro grupo apresenta-se como defensor de uma proposta de transição gradual, através de democracia política, com um documento que ficou conhecido como o Documento dos Nove e que virá a concitar um amplo apoio militar e da sociedade portuguesa, em especial mobilizada pelo Partido Socialista e por todos os outros partidos à sua direita.

Fonte: Aniceto Afonso, Carlos Matos Gomes e Maria Inácia Rezola.

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