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Era uma vez uma banana

The Velvet Underground: Era uma vez uma banana

 


The Velvet Underground & Nico completa agora 50 anos, mas é um daqueles raros casos em que o tempo não parece ter funcionado contra a obra impondo uma inultrapassável distância só passível de ser percorrida pela imaginação. Pelo contrário, o avanço dos anos resultou antes como um factor de amplificação da sua original grandiosidade. Rui Miguel Abreu afina a máquina do tempo para 1967 e parte à descoberta do mítico álbum da banana que influenciou e continua a influenciar gerações.


 

Livros – incontáveis livros -, documentários, uma incrível exposição em Paris e até concertos comemorativos e novos filmes, além, claro, da reedição para acabar com todas as reedições, não nos permitem esquecer The Velvet Underground & Nico, o álbum que Lou Reed, John Cale, Sterling Morrison, Mo Tucker e a diva Nico criaram com o apoio financeiro de Andy Warhol e que viu a luz do dia a 12 de Março de 1967. Não que alguém fosse querer esquecer um disco tão singular quanto uma supernova, tal a luz que emitiu sobre todo o planeta rock quando explodiu há meio século em Nova Iorque, tão poderoso quanto um buraco negro, já que exerceu um tal magnetismo de proporções quânticas que foi impossível à melhor música popular eléctrica das últimas cinco décadas manter-se demasiado afastada do seu centro.

Foi Barbara Rubin, uma cineasta experimental ligada a Jonas Mekas, que apresentou os Velvet Underground a Andy Warhol, figura incontornável da arte pop que na altura se mostrava profundamente interessado no cinema como meio para expressar as suas particulares ideias. Para Warhol, uma obra de arte era uma provocação e as provocações não se limitavam às telas: uma banda de rock ou um concerto multimédia podiam igualmente ser vistos como obras de arte e terá sido esse o impulso que seguiu quando decidiu “cruzar” os Velvets com Nico, «uma incrível beleza alemã que tinha acabado de chegar a Nova Iorque vinda de Londres,» como escreveu Warhol em Popism, o seu retrato pessoal da década de 60. «Ela tinha o ar de quem podia ter feito a viagem até Nova Iorque na proa de um navio Viking, ela tinha esse tipo de cara e de corpo.» Uma cara, um corpo e, pelos vistos, uma voz singular, descrita à época «como um computador da IBM com um sotaque à Greta Garbo.»

Nico vinha de Londres onde já tinha esboçado o início de uma carreira musical. Esta modelo e actriz conheceu Brian Jones dos Rolling Stones em 1965 e impressionou-o tanto que este convenceu o seu manager, Andrew Loog Oldham, a produzir e editar um single de Nico na sua etiqueta Immediate. «I’m Not Sayin’» foi a sua estreia no mundo da música. De Londres para Paris, Nico conheceu Dylan que ficou igualmente impressionado e aparentemente lhe escreveu o tema «I’ll Keep It With Mine», exatamente o single que Nico tinha na sua bolsa no dia em que conheceu Andy Warhol em Nova Iorque.

Nova Iorque, o cenário desta história, era um lugar incrível em meados da década de 60. É o que se percebe em New York Extravaganza, a exposição que Christian Fevret, fundador da Les Inrockuptibles, imaginou para a Philharmonie de Paris o ano passado, desenhando uma Nova Iorque agitada pelas melhores mentes de uma geração transformadora, a começar em avançados pensadores como Allen Ginsberg. Fotos assinadas por gente como Nat Finkelstein e Fred W. McDarrah davam nessa exposição conta de um complexo labirinto social e artístico onde se cruzavam poetas e músicos de jazz e vanguarda, pintores, cineastas experimentais, dançarinos e milionários, inspirados pela cultura beat, pelos movimentos de direitos civis, pelo expressionismo abstrato e pela arte pop, pelo psicadelismo e a contracultura das drogas. Nesse caldeirão libertário, Lou Reed sobreviveu a um emprego na editora budget Pickwick para que tinha sido contratado para criar pastiches de garage rock de êxitos pop da época e acabou por se cruzar com John Cale, um galês expatriado em Nova Iorque para estudar música de vanguarda com LaMonte Young que depois apresentou Reed a um círculo onde se moviam figuras como Tony Conrad ou Angus MacLise (ambos com ligações ao Theatre of Eternal Music de LaMonte Young), chaves importantes na abertura do mundo da Factory comandado por um dos mais brilhantes e radicais criadores da época, Andy Warhol.

Pré-história

«Os Velvets mostraram-se interessados no ruído desde o início e apoiaram-se no extenso currículo académico de John Cale para conseguirem moldar a sua experimentação,» escreveu Lester Bangs. John Cale chegou a Nova Iorque em 1963 depois de muita correspondência trocada com John Cage. Vinha do País de Gales e queria assistir às aulas de Aaron Copland. Em 1964, John Cale aproximou-se do grupo que orbitava em torno de LaMonte Young e integrou o seu Dream Syndicate com Angus MacLise, com quem aliás dividiria um apartamento. Foi nesse mesmo ano que Cale conheceu Lou Reed, na altura a trabalhar numa espécie de mini Tin Pan Alley na editora Pickwick, como compositor e músico. Cale era bastante interessado em rock e percebia que as ideias de LaMonte Young sobre os “drones” podiam igualmente ser aplicadas neste contexto. O facto de Lou Reed já na altura exibir uma personalidade bastante aberta à experimentação – usava, por exemplo, afinações pouco convencionais na sua guitarra – funcionou certamente como factor de aproximação a John Cale.

O primeiro grupo de Lou Reed com John Cale levou o nome The Primitives e foi criado, basicamente, para promover o single «The Ostrich» que Reed tinha escrito para a Pickwick. Com Sterling Morrison na guitarra e Angus MacLise nas percussões, os Primitives tiveram uma existência fugaz, mas foram importantes para a chegada aos Velvet Underground.

O nome veio depois: Reed encontrou um livro sobre sadomasoquismo com o título The Velvet Underground escrito por Michael Leigh e deixado por Tony Conrad no apartamento que o futuro marido de Laurie Anderson viria a ocupar. O nome parecia perfeito. Não só Reed já tinha escrito «Venus In Furs» como a própria palavra underground parecia ir de encontro ao universo em que se moviam, do cinema alternativo e experimental, dos subterrâneos da arte mais séria. O grupo começou a ensaiar e a dar concertos em 1965, altura em que MacLise abandonou o projecto. Angus seria substituído por Maureen Tucker, irmã mais nova de um antigo colega de faculdade de Sterling Morrison. O estilo de Maureen – que antes dos Velvet tinha trabalhado na IBM a introduzir dados – servia perfeitamente aos Velvet Underground: tocava de pé, com o bombo virado para cima, quase não utilizava os pratos, e tinha um estilo rígido e metronómico – ou seja, o modelo de Bobby Gillespie nos tempos dos Jesus & Mary Chain (aliás o molde para todo o seu primeiro álbum, Psychocandy). O grupo estava assim completo e o concerto no Café Bizarre, onde Barbara Rubin levaria Warhol para conhecer os Velvets, estava próximo.

No livro Superstars (tradução de João Lisboa na Assírio e Alvim para um trabalho da Les Inrockuptibles de Christian Fevret organizado como um dicionário do universo dos Velvet Underground), a entrada do Café Bizarre reza o seguinte: «Café-armadilha para turistas, situado em MacDougall Street, Nova Iorque. À razão de seis “sets” por noite, os Velvet Underground dão aí os seus primeiros concertos sob esse nome e com a formação dos dois primeiros álbuns (Reed, Cale, Morrison, Tucker) em Novembro de 65. Sob recomendação de Gerard Malanga (ele próprio atraído por Barbara Rubin), Warhol e Nico vão aí ver o grupo na segunda noite. Os Velvets fazem-se despedir durante a segunda semana e juntam-se à Factory.» Andy Warhol, em Popism, acrescenta mais colorido a esta história: «A música deles era demasiado alta e louca para a clientela de qualquer café de turistas. As pessoas saíam com um ar confuso e magoado. De qualquer forma, os Velvets estavam prestes a ser despedidos. Falámos com eles um pouco nessa noite enquanto a Barbara e a sua equipa andavam pelo meio do público colocando as câmaras e as luzes mesmo na cara das pessoas enquanto perguntavam ‘És quadrado? És quadrado?’ até obterem uma reacção(…). Gostámos dos Velvets e convidámo-los para irem até à Factory.»

Fábrica de arte

Entre 1963 e 1968, o estúdio de Andy Warhol conhecido como The Factory situava-se num enorme loft no quinto andar do número 231 da East 47th Street. Decorado por Billy Name com papel de alumínio e tinta prateada, a Factory era um local onde qualquer coisa poderia acontecer: ensaios dos Velvets, rodagens de filmes, leituras de poesia, performances, sexo hetero e homossexual, pintura… De portas permanentemente abertas, este local era uma espécie de instalação artística em exibição 24 horas por dia, uma obra de arte viva, uma obra de arte real fora das paredes confinadas de um museu. E por isso mesmo visitado pela nata da contracultura, de Tenessee Williams a Bob Dylan, de Mick Jagger a Allen Ginsberg, de Truman Capote a Salvador Dali.

Foi neste ambiente de cruzamento constante de todas as artes que Warhol concebeu o Exploding Plastic Inevitable (EPI), um espectáculo multimédia onde o cinema, a música, a dança, a pintura e outras formas de expressão se combinavam de forma caótica. Como muitas outras ideias em Warhol, também o EPI foi resultado de uma evolução: começou por ser um espectáculo designado como Up-tight e foi crescendo de complexidade. Tudo começou quando Warhol aceitou um convite da Sociedade de Nova Iorque para a Psiquiatria Clínica para discursar no seu banquete anual. Warhol respondeu afirmativamente ao desafio, mas impôs uma condição: poder “exprimir-se” através dos seus filmes. Depois de conhecer os Velvet Underground, o artista plástico decidiu que seria melhor deixar a “expressão” para eles. Como se tratava de Warhol, a insuspeita Sociedade aceitou a sugestão. Em Janeiro de 1966, lá foram todos até ao Hotel Delmonico, onde se realizava o banquete. «No preciso momento em que começaram a servir o prato principal, os Velvets começaram a disparar e a Nico a gemer. O Gerard (Malanga) e a Edie (Sedgwick) saltaram para cima do palco e começaram a dançar e as portas abriram-se para Jonas Mekas e Barbara Rubin entrarem de rompante com a sua equipa com câmaras e luzes brilhantes atropelando todos os psiquiatras enquanto lhes perguntavam coisas como ‘como é a vagina dela?’ ou ‘o pénis dele é suficientemente grande?’» Warhol não foi convidado para discursar no ano seguinte.

Nas páginas do terceiro número da Aspen Magazine, a “Pop Art Issue” publicada em Dezembro de 1966 e com Andy Warhol como editor convidado, Robert Shelton do New York Times afirmava com autoridade que «um espectáculo de rock and roll em 1966 não é o vazio agrupar de adolescentes de há dez anos. O mais provável é ser um espontâneo festival de artes – combinando música, poesia, dança, luzes e filme. No Avalon Ballroom em São Francisco, num espectáculo de Andy Warhol em Nova Iorque no Dom ou no hangar de aviões de Murray The K em Long Island, os sentidos são tomados de assalto por tudo o que está a acontecer. A melodia insinua-se, a poesia invade, a batida atravessa, os corpos dançantes giram, as luzes estroboscópicas dançam no tecto, os projectores de cinema enchem as paredes com murais vivos e pulsantes. É uma forma de arte totalmente nova.»

Este número especial da Aspen Magazine foi comercializado por uns meros quatro dólares e incluía vários panfletos e livretes com textos e fotografias variados, incluindo, por exemplo, um ensaio sobre o rock and roll da autoria de Lou Reed. Na embalagem que remetia para uma caixa de detergente, incluía-se igualmente um “flexi disc” (disco de plástico maleável) com uma gravação de Peter Walker, nome associado a Timothy Leary, e outra creditada aos Velvet Underground intitulada “Loop”. Na verdade, esta peça tinha sido gravada apenas por John Cale e era um loop de feedback impresso com uma “locked groove” (a agulha fica retida naquela espira e continua a ler incessantemente o mesmo loop) que antecipava em cerca de uma década o que Lou Reed faria de forma mais desenvolvida no seu polémico Metal Machine Music. Esta foi também a primeira vez que o nome The Velvet Underground surgiu numa gravação disponível para o público.

The Velvet Underground & Nico

Nico foi claramente uma ideia de Andy Warhol, como o próprio confirmou em Popism: «Outra ideia que tivemos quando fomos ver os Velvets (ao Café Bizarre) foi a de que eles poderiam ser uma boa banda para tocar atrás de Nico.» Claro que tratando-se dos Velvet Underground, grupo de grandes egos, «tocar atrás» de alguém nunca foi realmente uma opção. «Houve problemas desde o início,» explicou Sterling Morrison em Abril de 1981 (citado no livro Beyond The Velvet Underground de Dave Thompson). «Só havia algumas canções apropriadas para a voz de Nico, mas ela queria cantá-las todas – ‘Waiting For The Man’, ‘Heroin’, todas. E ela tentava fazer pequenas cenas de política sexual na banda. Quem quer que parecesse estar a ter uma influência determinante nos eventos, era de quem Nico estaria mais próxima. E assim ela foi de Lou para o John, mas nenhum desses casos durou muito.»

O álbum de estreia dos Velvet Underground foi primeiramente gravado em 1966 por Norman Dolph (versão disponível no mítico acetato de Norman Dolph gravado no estúdio da Scepter em 25 de Abril de 1966, descoberto num mercado de rua em Nova Iorque por 75 cêntimos e vendido no eBay por 25 mil dólares), mas até chegar às mãos da Verve, subsidiária da MGM, muito aconteceu. A Verve aceitou editar o álbum graças à influência de Tom Wilson, mas antes já a Atlantic, a Columbia (para quem Norman Dolph trabalhava) e a Elektra tinham recusado a demo gravada nos estúdios da Scepter. Foi das sessões da Scepter que saiu a maior parte do material de The Velvet Underground & Nico, embora novas misturas fossem realizadas para alguns dos temas. Mas «I’m Waiting For The Man», «Heroin» e «Venus in Furs» foram regravadas num estúdio de Hollywood a pedido da MGM e, mais tarde, já no final de 1966, Wilson também levou os Velvets para um outro estúdio de Nova Iorque de onde saiu «Sunday Morning» (e daí o seu crédito na produção desse tema).

Quando finalmente foi editado, em Março de 1967, o álbum foi um choque. Adornado com uma icónica capa criada por Andy Warhol, com uma pintura de uma banana que era um autocolante que se podia despegar («peel slowly and see») revelando uma fálica forma cor de rosa, The Velvet Underground & Nico não se parecia com nada que a música pop estivesse então a produzir e era, de facto, a derradeira provocação – musical, estética, sexual. Brian Eno terá afirmado mais tarde que mesmo tendo vendido poucos milhares de cópias, cada uma foi ter a alguém que formou a sua própria banda. Descontando o (relativo) exagero da afirmação, é impossível não ver na influência crescente deste álbum e dos Velvet Underground logo a partir da década de 70 uma das reais marcas da sua grandiosidade. De David Bowie logo em 1971 a You Can’t Win Charlie Brown antes de ontem, passando pelos Suicide e pelos DNA da Nova Iorque punk e no wave, pelos Sonic Youth e The Jesus & Mary Chain no período pós punk e daí até ao pós-psicadelismo dos Black Angels ao ao pós-neo soul de Aloe Blacc, têm sido incontáveis as manifestações de descendência de um trabalho que teima em manter-se agarrado ao futuro. O que se irá escrever daqui a 50 anos?

Rui Miguel Abreu