Oub'lá

Scúru Fitchádu

 

“Sempre gostei de funaná e sempre gostei de música da pancada. Se saísse uma coisa diferente disto não seria eu!”

 

Marcus Veiga é o nome que está por trás do projeto de Sette Sujidade, hoje mais conhecido como Scúru Fitchádu. Um nome em criôlo para marcar a forte ligação deste produtor de Almada, de 37 anos, ao funaná de Cabo Verde — que sempre cresceu em locais escuros e fechados, sem nunca deixar acabar a festa. Esta é uma revisitação dessas influências, mas sem separar o funaná do punk, do hip hop e do metal com que Marcus Veiga cresceu. “Vou buscar a sujidade para as harmonias — se é que elas existem!”, diz.

Scúru Fitchádu vai abrir a noite do segundo dia do festival MIL, no Musicbox, no Cais do Sodré. “É uma sala onde queria tocar já há muito tempo. E vai ser ainda mais peso, porque vou abrir para os Linda Martini — por isso vou tentar rebentar com o palco para o Hélio Morais poder dizer que não tem sítio para pôr a bateria.”

 

Adotaste o nome artístico Sette Sujidade e é com esse nome que tens desenvolvido o teu trabalho como produtor. No festival MIL vais-te apresentar com o projeto Scuru Fitchádu.

O “Sette” vem dos tempos de miúdo, em que jogava basquetebol e era o número 7 — isto ainda antes de aparecer o Ronaldo (risos). “Sujidade” é o nome que veio de um grupo restrito de amigos em que eu era sempre o gajo que tinha as ideias mais esquisitas! Eu venho de uma base do hip hop, dos finais dos anos 1990, e sempre ouvi outras coisas mais distantes, mais lo-fi, com mais distorção, que fugiam da linha mais compacta do hip hop. Quando comecei a compor foi sempre de uma forma lo-fi, muito punk. Nunca fui para o lado do virtuosismo e da composição e dos samples. Fazia, mas com as ferramentas mais rústicas que tivesse…

 

E ainda é esse o modelo que segues, agora com Scuru Fitchádu?

Sim, é daí que vem a Sujidade. É trazer a sujidade para as harmonias — se é que elas existem! Eu vou direto às minhas influências: desde Atari Teenage Riot, Prodigy, Tricky até à estética do Tom Waits, menos fácil, mais de mente aberta. Transpus tudo isso para a minha linguagem de Sette Sujidade e agora traduz-se em Scuru Fitchadu, que é uma mescla daquilo que eu ouvia na parte familiar, da música PALOP, do semba, do funaná.

 

Scúru Fitchádu atua sexta-feira, às 22h, no Musicbox, em Lisboa, na abertura do segundo dia do Festival MIL

 

Quando é que começaste a sentir a vontade de fazer algo que fosse mexer com as memórias da música que ouvias em casa, quando eras mais pequeno?

Foi tudo em paralelo: ao mesmo tempo que ouvia o hip hop também ouvia a canção criôla, o funaná. E comecei a samplar esses discos de Cabo Verde para a minha música. Depois tive a sorte de encontrar o Nuno Faria — ex-Afonsinhos do Condado — como professor na ETIC. Mostrei-lhe um instrumental que tinha samplado de Ferro Gaita, ele disse-me que estava muito bom, mas perguntou-me: “E o real deal?” Foi aí que pensei: não faz mal arranjar uma concertina e aprender a tocar umas coisinhas só para mim, aprender um funaná instrumental, mais tradicional e rural — ligado à ilha de Santiago. Acabei a pesquisar mais, a ir mais fundo e comecei a ouvir os Ferro Gaita e a perceber de onde é que vinham; descobri o Bitori Nha Bibinha, que ensinou outros tocadores… cheguei aos Bulimundo e Finaçon, à eletrificação do funaná nos anos 1980… enfim, acabou por ser esse processo de aprendizagem que fez com que, em 2010, começasse a fazer as primeiras experiências com o pouco que conseguia fazer em casa.

 

Hoje em dia se calhar já se vai encontrando alguns discos destes nomes de que falaste. Ainda há pouco tempo a editora Analog Africa editou um disco chamado Legend Of Funaná (The Forbidden Music of The Cape Verde Islands). Em 2010, há sete anos, era mais difícil ter acesso a todas estas referências?

Muito difícil… esta malta, os mestres de Cabo Verde, tinham muito pouca hipótese de gravar. Os Ferro Gaita foram das primeiras bandas com instrumentos tradicionais do funaná a conseguir gravar e sair cá para fora. Antes disso, e não falo de Cesária Évora ou de mornas, era muito, muito difícil o funaná sair de Cabo Verde. Só há muito pouco tempo, e também pelo Ocidente acabar por explorar esse lado e trazer a festivais, é que há essa transposição. Mas ainda há muita dificuldade de gravar em Cabo Verde: havia as rotas dos EUA e Holanda e era pelas correntes de emigração que gravavam. O Bitóri também andou uma vida inteira a dar concertos no gueto, na txada de Son Francisku, uma zona lá na ilha de Santiago, e só agora é que começou a viajar pelo mundo!

 

Qual é a proposta deste teu projeto Scuru Fitchadu?

Bem, quando criei isto não fui atrás da ideia de “vou fazer uma coisa que não existe…”. Os Buraka Som Sistema, por exemplo, trouxeram aquela coisa da progressão ao kuduro, algo que já havia, mas reafirmaram e explodiram para o mundo. Eu não vim com essa ideia de fazer algo diferente, até porque isto é algo natural: eu sempre gostei de funaná e sempre gostei de música da pancada, então, se saísse uma coisa diferente disto não seria eu! Foi por isso que pus um bocado de lado a ideia do hip hop e das mixtapes.

 

Ao hip hop foste buscar o know how para saberes fazer este cruzamento?

Exatamente, porque o hip hop é uma escola, praticamente. Educa, cada vez mais. O processo do sample é um trabalho de pesquisa, quase de antropologia musical! E foi à pála disso que comecei a ouvir Public Enemy e Wu-Tang Clan e a procurar aquele sonzinho que se ouvia lá atrás. “Al Green? O que é isto? Howlin’ Wolf?” E no funaná foi a mesma coisa: a ouvir Ferro Gaita e Bulimundo e fui atrás dos mestres. É essa a educação e a procura incessante de cada vez que me sento à frente do PC ou da concertina para tentar perceber o que vou fazer agora.

 

“O funaná está muito ligado à cena marginal, a quem foi marginalizado e posto de lado. Os tocadores de concertina têm uma linguagem punk, porque até há muito pouco tempo não havia gajos muito virtuosos: eram três ou quatro acordes que podiam durar um baile inteiro de seis horas ou um baptizado inteiro”

 

E pegas sobretudo em referências que, digo eu, também têm qualquer coisa de escuro. Quando ouço Ferro Gaita ou Bulimundo, a minha imaginação vai sempre parar a festas em bairros, com pouca luz, onde tudo pode acontecer! Também está relacionado com esse universo da pancada, com o punk?

Exatamente. Quando apresento o projeto de Scuru Fitchadú a malta pergunta em que gaveta é que eu fico. Eu digo para meterem em punk e depois, quando chegarem lá, logo vêem o que pode sair dali. O funaná é isso que dizes, mas também vejo um bocado como aquele blues primário de Nova Orleães, boémio, com pancada à mistura… o funaná vem dessa linha, muito ligado à cena marginal, a serem marginalizados, a serem postos de lado. Os tocadores de concertina têm uma linguagem punk, porque até há muito pouco tempo não havia gajos muito virtuosos a tocar: eram três ou quatro acordes que podiam durar um baile inteiro de seis horas ou um baptizado inteiro.

 

Tens mostrado esta revisitação do funaná às gerações mais antigas? O que é que te têm dito?

Ainda não tem chegado a essas gerações, mas àquelas poucas a que chegou… bem,  não acharam muita piada (risos). Apesar de tudo, o povo cabo-verdiano ainda é um bocado conservador. E eu percebo: se aparecesse aí um maluco a misturar fado, com distorção…

 

Mas tu também gostas de ser provocador.

Exatamente: fazer as coisas sem pretensões e é por isso que assumo uma estética punk naquilo que faço. Não só no som, mas na atitude disto! O feedback é negativo (risos)… mas é isso que dá força. Só que há 20 por cento do restante feedback é excelente, que são as pessoas que percebem o que estou a fazer. É preciso ter uma mente aberta e o porquê de estar a fazer isto.

 

“Ao mesmo tempo que ouvia o hip hop também ouvia a canção criôla, o funaná. E comecei a samplar esses discos de Cabo Verde para a minha música”

 

O que é que já editaste?

Saiu um EP no ano passado, auto-intitulado de Scúru Fitchádu.

 

“Quando comecei a compor foi sempre de uma forma lo-fi, muito punk. Nunca fui para o lado do virtuosismo e da composição e dos samples

 

E é esse EP que vais mostrar no festival MIL?

Exatamente! Mas já estou a trabalhar num próximo EP — se calhar ainda antes do verão, vamos ver. Acaba por ir na mesma linha sonora, mas quem ouviu o primeiro e ficou na dúvida sobre o que ouviu, este aqui diz o porque é que digo aquele verso ou uso aquele sample. No MIL vou apresentar o EP na íntegra e fazer, se calhar, mais algumas brincadeiras, com alguns covers que toco… corre sempre bem ao vivo!

 

Como é que é um concerto de Scúru Fitchádu?

O ferro e a concertina têm que estar sempre presentes, ainda que sejam só umas incursões na concertina. Mas basicamente funciona com o Ronnie [Ronaldo D’Alva Teixeira] na percussão e tenho o Chullage que me acompanha ao vivo a samplar, a disparar midi, outras percussões e o que ele quiser fazer, basicamente.

 

Entrevista: Bruno Martins