Oub'lá

Samuel Úria

 

“Tenho uma relação demasiado apaixonada com a música para achar que podia ser uma profissão”

 

As últimas semanas de Samuel Úria têm sido num corropio. Entre festivais da canção, concertos e problemas na garganta — isto das mudanças de temperatura misturadas com a época de alergias deixam qualquer um de rastos — tem estado, no horizonte, a data de 27 de maio. É no sábado que Samuel vai subir ao palco do Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, para celebrar o primeiro aniversário do último disco, Carga de Ombro. Já recuperado da voz, Úria passou pela Antena 3 para explicar como foi o último ano: a ansiedade que o costuma atacar na altura de escrever e que o torna, durante um curto período de tempo, num homem de convívio quase impossível existe pouco por estes dias. O foco para novas canções está a modos que meio adormecido pelo menos até lá mais para o final do ano — altura em que poderá começar a pensar em novas canções. Para já, Samuel vai pensando naquilo que vai acontecer no sábado, no palco do Tivoli, e nos amigos e convidados que vai ter por lá a cantar consigo as suas canções: Ana Moura, Golden Slumbers, Manuela Azevedo e Miguel Ferreira.

 

Como é que te relacionas hoje com as canções que editaste há cerca de um ano, neste Carga de Ombro? Os concertos trouxeram coisas novas a este álbum?

Sim, no chamado tempo de promoção de um disco, os alinhamentos dos concertos incidem mais sobre o último disco. E é uma altura em que eu acho que as canções — e podem até evoluir para pior! Mas vão fugindo daquela coisa um bocado ditadora do estúdio e da forma como saíram no disco, mas vão ganhando outras características nos palcos e nas formações que tocam comigo. Sinto que houve uma espécie de mutação na interpretação das canções e se calhar até no significado que elas tinham. E isso é fixe.

 

Também sentes isso enquanto autor?

Sim, também mudam para mim. Se hoje me perguntam o que é que as canções querem dizer, as respostas podem ser já completamente diferentes. E não é que há um ano estivesse a inventar alguma coisa só para ser diferente. Mas como são coisas muito pessoais, o meu próprio entendimento sobre eventos que são descritos nas canções são às vezes traduzidos de uma forma lírica muito específica, a minha própria noção delas — ou a falta de noção (sorri) — é diferente. E isso é fixe porque se repercute na canção.

 

“É bom que as canções toquem às pessoas, mas às vezes, para que isso aconteça, têm que sair dos exemplos ou experiências específicas que lá faço conter”

 

Queres dar-nos um exemplo? Que outra canção terá ganho outro significado para ti?

A própria “Carga de Ombro”: é um tema sobre coisas que eu queria refazer na minha vida. Tinha que ver com relações na minha vida e com o meu casamento e fala sobre a maneira como gostava de refazer o meu passado para me tornar numa pessoa mais digna daquilo que pude receber. E da forma como achei que se não podia refazer o passado, vou tentar melhorar o futuro e ser digno desse passado. Apesar de não ter mudado esta mentalidade em mim, sinto um ano depois que já estou a viver esse futuro, por isso essa responsabilidade tem que ser vivida no presente. E então apetece-me cantar essa canção mais como um rescaldo e não como uma promessa.

 

E é giro que essas mudanças acontecem sem se mudar as palavras.

E não alterei rigorosamente nada. Mas dei por mim a pensar que se calhar é mais do que uma canção pop que anda a passar na rádio e foi mesmo um comprometimento.

 

Há músicos que dizem que as canções, a partir do momento em que estão editadas, partem para longe deles. Entregam-se apenas ao público. Tu continuas a ter as tuas canções na tua propriedade?

Eu acho que elas podem ganhar vida própria, mas parte, sobretudo, da interpretação que o público dá. E aí, para mim, é fixe que as pessoas não fiquem reféns do significado ou de um entendimento daquilo que quero dizer. É bom que as canções toquem às pessoas, mas às vezes, para que isso aconteça, têm que sair dos exemplos ou experiências específicas que lá faço conter. Para mim é muito agradável quando existe um reconhecimento da emotividade de uma canção e que desaparece o cunho empírico da experiência pela qual eu passei. Creio que isso está muito dependente da sinceridade que voto na interpretação da canção: quanto mais pessoais forem da minha parte, se calhar mais pessoais se tornam na apreensão que as pessoas vão fazer das canções.

 

Achas que com este Carga de Ombro o público relacionou-se de forma diferente?

Foi especial com este disco, mas não sei se isso se deve ao conjunto de canções que lá está, ou à espécie de evolução natural. O disco anterior granjeou mais pessoas para ouvir o disco seguinte e assim sucessivamente. Na medida em que ainda não tive nenhum disco completamente fracassado, que tenha reduzido o meu público, faz com que eu tenha crescido em termos de público, de promoção e presença nas rádios de um disco para o outro, sem que isso tenha que ver, exclusivamente, com as características das canções. E nesse sentido também é natural que se multipliquem e que me cheguem aos ouvidos esses feedbacks. Eu acho que é por causa do disco, mas também por causa do momento, mas independentemente do que vá fazer no próximo disco, também tenho ideia de que isto poderá dar um salto para as próximas canções que vou escrever.

 

“Mesmo as secas que às vezes tenho que apanhar são um privilégio do caraças porque estou a fazer aquilo de que gosto verdadeiramente”

 

Lembro-me de, há um ano, falar contigo sobre o Carga de Ombro e dizeres-me que te tornavas numa pessoa de quase impossível convívio na altura de compor um disco. Como é que é o Samuel Úria quando não está a escrever um disco? Existe um foco permanente de ir à procura de ideias, mesmo que não haja disco em agenda?

Não existe um foco obstinado, existe um foco… quase adormecido sem o ser. O período em que sou insuportável é, felizmente, curto. Mas para esse período insuportável ser curto, todos os outros momentos que o antecedem são de muita atenção a tudo. Esse período de foco é o espremer e filtrar daquilo que se vai amealhando de uma forma quase despercebida. Eu estou atento a tudo e não renego nada: a minha vinda aqui ao edifício da RTP e ter apanhado uma estrada cortada pode resultar numa canção. Por que não? Claro que não estou a falar de um grande tema que vá mudar o mundo, mas a minha disposição face a um corte de trânsito pode dar-me uma ideia para falar das autárquicas. Eu não penso nisto agora, mas na altura de escrever canções vou lembrar-me.

 

Já pensas nisso? De voltar à escrita?

Sim. Tem que acontecer este ano. Ainda não especifiquei a agenda — e vou ter que fazê-lo, de uma forma mais profissional e menos romântica, quase de um lado meio materialista. Depois é deixar fluir todos os sucos do romantismo.

 

Mesmo sendo meio materialista, não deixas de retirar daí prazer.

Muito mesmo.

 

É só do período de criação ou esta altura de preparação de um concerto também é estimulante?

Estaria a revelar-me muito ingrato se houvesse algum momento da minha vida enquanto músico profissional que eu achasse que não fosse prazeroso. Mesmo as secas que às vezes tenho que apanhar são um privilégio do caraças porque estou a fazer aquilo de que gosto verdadeiramente. Eu nem sequer estudei para ser músico, porque a música sempre me pareceu demasiado boa e fixe para ser uma profissão.

 

“Fui obrigado a ir para a música e ainda vivo um bocado de alguma incredulidade em relação a essa obrigação que me foi imposta!”

 

Corrige-me se estiver errado, mas tu quase que foste obrigado a ser músico!

Foi mesmo! Fui obrigado a ir para a música e ainda vivo um bocado de alguma incredulidade em relação a essa obrigação que me foi imposta! Primeiro por pessoas que achavam que eu não podia estar a desperdiçar aquilo que fazia de forma amadora — e devia dedicar-me mais a isso. E depois uma imposição que fiz a mim próprio: tinha tanta gente a apostar em mim… isto pode parecer a conversa de alguém que não está bem resolvido ou inseguro, mas viver da música era uma decisão que não podia partir de mim, porque tenho uma relação demasiado apaixonada com a música para achar que podia ser uma profissão.

 

Eras professor de Educação Visual. Ainda te lembras do dia em que chegaste a casa e disseste à mulher: “Não vou voltar a dar aulas. A partir de agora sou músico a tempo inteiro”?

(risos) Não aconteceu propriamente assim. Ainda numa fase de uma grande incredulidade, já estava a fazer músicas e a dar bastantes concertos, já tinha discos editados e continuava a dar aulas. Foi mais por não estar a conseguir dar vazão a tudo e de sentir que não estava a ser bom professor: apesar de ser muito dedicado, na relação com os miúdos e querer que eles aprendessem, mas depois tudo o resto, como a entrega de coisas burocráticas, as avaliações disto e daquilo, estava a custar-me porque não estava a ser especialmente profissional.

 

Foste diretor de turma, com as responsabilidades de participar em reuniões de pais e tudo?

Tudo! Às vezes atrasava-me a resolver coisas e tinha que pedir ajuda aos colegas para coisas que me  tinha esquecido. E houve um ano em que disse: “Vou concorrer só a duas escolas perto de casa: se ficar fiquei, se não ficar, não fiquei”. E acabei por ficar mais um ano, numa escola em que ia a pé de casa, mas mesmo assim foi muito complicado por estar a fazer concertos em Guimarães e no outro dia ter que estar de manhã nas aulas. Foi difícil habituar-me a não ter um salário regular, não vivo com fartura, mas vivo com alegria de fazer aquilo de que gosto.

 

E ainda desenhas?

Pouquíssimo. É um desenho estritamente utilitário, como cartazes ou capas de disco, para não ter que gastar dinheiro com designers. É mesmo para ser poupadinho.

 

“Descobri na música um prazer em ser desleixado que nunca descobri no desenho: na música posso estar a ser o gajo mais incapaz de sempre e assumir o que estou a fazer”

 

Há uns meses falei com a Lula Pena, a propósito do novo disco dela, e ela disse-me que também já não desenha… que padrão é este?

Eu não sei se com a Lula é semelhante, mas ao contrário da música em que existe uma espécie de preocupação em achar que a expressão pode corresponder a momentos, a vontades e a falta de meios, no desenho se não estiver sempre a praticar, perco o comboio. Tenho uma relação muito mais profissional e académica com o desenho do que tenho com a música. Descobri na música um prazer em ser desleixado que nunca descobri no desenho: na música posso estar a ser o gajo mais incapaz de sempre e assumir o que estou a fazer.

 

No sábado vais estar no Teatro Tivoli BBVA e com muitos amigos e convidados. Ana Moura; Golden Slumbers; Manuela Azevedo; e Miguel Ferreira. São pessoas que fazes questão de ter contigo em palco?

De facto, tenho conhecido muita gente na música. É o caso da maioria dos convidados que chegaram até mim depois de ouvirem as minhas canções. Por exemplo, eu não conhecia a Ana Moura e lembro-me de a ver dar entrevistas na televisão a dizer que no próximo disco gostava de ter o Samuel Úria a escrever. E eu de queixo caído em casa a arfar! De repente, é fácil estabelecer uma amizade e até uma “latice” de meter conversa com pessoas que já nos fizeram “shout out” público! Com os Clã também aconteceu isso: eles viram um concerto meu — e eu, obviamente que os conhecia perfeitamente. Foi fácil estreitar os laços e acabei a escrever letras para eles. Tinha um fardo completamente desonroso que foi ter sido convidado pelos Clã para estar com eles nos concertos para cantar com eles e nunca ter feito um convite à Manuela — que é o melhor espécime que eles têm, os outros são todos maltrapilhos, sobretudo o Miguel Ferreira (risos) — para estar comigo em palco. Tinha que acontecer e tinha que ser num concerto de celebração! As Golden Slumbers: se pudesse adotava-as, que são crianças (risos) sobredotadas.

 

E é possível que haja mais surpresas, não é?

Até vou dizer que é garantido que essas surpresas aconteçam. Não vou revelá-las porque senão deixam de ser surpresas.

 

E no alinhamento? Qual é a ideia? Percorrer toda a tua carreira da música, mesmo para lá dos teu três discos de estúdio?

Sim, juntar tudo. Obviamente que faz um ano de Carga de Ombro, e é um disco que tenho estado a tocar e há canções que estão ainda frescas, mas também há canções de sempre que nunca deixaram de aparecer! E também vão existir canções para servir especificamente os convidados e outras específicas para servir o espetáculo — estou a pensar em canções que podem ou não ser dos discos, mas também dos repertórios dos convidados que irão fazer parte do alinhamento.

 

Entrevista: Bruno Martins