Oub'lá

Primeira Dama

 

“Tenho bastante noção do que quero começar a fazer a partir de agora”

 

Aos 20 anos, Manuel Lourenço transporta consigo uma maturidade desarmante. Mas ao mesmo tempo, salta à vista o traço da energia própria de um rapaz de 20 anos, a eletricidade de quem ainda tem muitos sonhos para realizar e a força nas canetas para querer correr atrás.

Dois discos em dois anos enquanto Primeira Dama, mais a produção para outros parceiros, organização de concertos e ainda todas as atividades que fazem parte do trabalho de uma editora. Agora diz que é altura de parar um pouco. O corpo pede férias que hão-de começar depois de sábado, dia 6 de janeiro, depois do concerto que está a preparar e que o junta a Lena D’Água.

Já lá vamos.

Manuel “Primeira Dama” Lourenço fala em férias, mas depois diz que ainda há mais alguns concertos previstos. E o disco de Migas para produzir. Depois disso, férias. Mas quando lhe perguntamos se já tem uma ideia do que lhe reserva o futuro enquanto compositor não hesita em replicar que tem tudo bastante claro. Fazem agora falta as canções. Ele vive e respira a música, desde sempre e conta-nos como tudo começou.

Há uns cinco anos, quando tinha 15, chocou de frente com a música de Lena D’Água, com as composições de Luís Pedro Fonseca que diz serem dois expoentes máximos da pop feita em Portugal. É essa estética que quer resgatar para o seu tempo. A forma de o fazer será ditada pelo tempo, mas, para já, convocou Lena D’Água para um concerto a meias na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, acompanhados por uma banda da Xita Records para interpretar temas de um e do outro. Uma carinhosa troca de afectos por via da música, a visitar temas clássicos para uns, incógnitos para outros, que nem vale a pena pensar em renegar.

 

Manuel, que concerto é este que estás a preparar para o dia 6 de janeiro na galeria Zé dos Bois, em Lisboa?

Para mim é um concerto de despedida momentânea, porque preciso de parar um bocadinho de fazer coisas. Foram dois anos muito intensos, entre a Xita Records, dois discos e mil e uma outras coisas…

 

És tu o responsável pela editora?

Sou o fundador, juntamente com o António [Queiroz] – fomos nós que tivemos a ideia de juntar o pessoal. No meio disso, fiz dois discos no espaço de dois anos e isso fez-me tocar bastante ao vivo, também.

 

E queres parar para fazer o quê?

Para descansar. Por acaso vou fazer o disco de Migas, mas que já está em processo, porque é o meu duo com o António. Provavelmente vou tratar de mais coisas que sejam necessárias de tratar relativamente à Xita.

 

“Claro que já conhecia coisas antigas: a ‘Dou-te um Doce’ ou ‘Sempre que o Amor Me Quiser’. Mas lembro-me de aos 15 anos aparecer-me a ‘Perto de Ti’ e a ‘Papalagui’ – que são duas das que vamos tocar – e de repente percebi que havia todo um Luís Pedro Fonseca e uma Lena D’Água a acontecer…”

 

Mas o que é que te faz falta fazer? Ficar parado em casa a olhar para o tecto? 

Fazer férias, ir passear, viajar um bocadinho, ver os amigos pelo país fora, jantaradas, ficar a descansar – não beber demais nem me lixar muito. Dormir bastante. Mas acima de tudo relaxar.

 

Dar-te tempo a ti.

Exatamente. Para depois começar, com calma, a fazer um disco novo.

 

Parar e ficar à espera que canções novas venham até ti, também?

Sim, já há coisas. Mas para as coisas saírem bem preciso de descansar um bocadinho. Ganhar forças.

 

Este concerto – que dizes ser de despedida – tem uma convidada muito especial: a Lena D’Água. Em maio, quando editaste o teu último disco, deixaste-lhe um agradecimento especial por ser “uma fonte de inspiração única”. Qual é o efeito que a Lena D’Água tem em ti e na tua forma de seres músico?

De uma forma geral, no que toca à música pop global, os anos 1980 – apesar de imensos exageros – trouxeram coisas muito fixes. Muito groove e muita coisa bonita. E em Portugal aconteceu uma ou outra coisa, mas só houve duas grandes figuras. Acho que os anos 80 e 90, musicalmente, em Portugal, foram anos pobres, com um negrume muito grande à excepção de António Variações e Lena D’Água.

 

Qual é a tua primeira recordação da Lena D’Água?

É uma coisa mais recente do que se possa pensar. Já é antiga porque acompanha-me desde os meus 15 anos – eu tenho 20. Claro que já conhecia coisas antigas: a “Dou-te um Doce” ou “Sempre que o Amor Me Quiser”, os clássicos maiores. Mas lembro-me de aos 15 anos aparecer-me a “Perto de Ti” e a “Papalagui” – que são duas das que vamos tocar – e de repente percebi que havia todo um Luís Pedro Fonseca e uma Lena D’Água a acontecer… o Variações é um caso à parte, diferente, mas o Luís Pedro e a Lena D’Água têm um lado musical mais funk e groove. Eu tenho percebido o génio do Luís Pedro porque tenho estado a tentar retrabalhar os temas – antes de vir para aqui estava a suar em bica, a acertar os arranjos.

 

O que é que puxaste para ti desse universo estético da Lena D’Água para as tuas canções?

Puxei esse imaginário de canção. E as frases sempre bué alongadas; os coros gigantes por detrás de um refrão que não pára de acontecer; e linhas que se prolongam de uns sítios para os outros; um certo épico sem ser feioso ou só porque sim: uma coisa com bom gosto, que normalmente até pode ser associado a algo mais azeiteiro, mas são apenas muitos momentos geniais muito bem pensados e com um respeito enorme à canção base, em que está tudo no sítio certo.

 

Achas que os anos 80 estão agora a ser depurados? Está a vir ao de cima agora aquilo que é muito bom?

Acho que sim, de certa forma. Neste caso estamos a falar de dois músicos excepcionais. A Lena pela magia toda, pela voz incrível, pela capacidade de interpretação da canção, pelas coisas que escreve e que diz, pelo imaginário que constrói enquanto pop star – e isso é muito importante. E depois o arranjista que era o Luís Pedro, que, para mim, é indescritível. É a escola perfeita para se aprender a fazer um arranjo, que respeita e enaltece a canção ao máximo.

 

Como é que conheceste a Lena D’Água?

Ela tem uma grande presença online e por isso fomos falando. A primeira vez que tive contacto mais direto com ela foi num evento no Damas [em Lisboa] e nesse dia estive mais tempo a falar com ela. Depois saiu o meu disco, ela ouviu e gostou, partilhou, fomos falando e em agosto liguei-lhe a perguntar se gostava de fazer um concerto comigo e com uma banda da Xita [Records].

 

Já sabias que seria na ZDB?

Sim, já tinha pensado tudo, mesmo que ainda que não estivesse tudo delineado. Estava em Berlim quando lhe liguei, no verão. E ela aceitou! Temos estado a trabalhar desde então, com muito trabalho de casa.

 

“Não aprendi a fazer canções como elas devem ser feitas: de ouvido. Às vezes começava muito preso a um conceito, ficando muito mais mastigado. Prefiro que, mesmo que fique mal, vai-se trabalhando assim em vez de corrigir logo e arrumar tudo”

 

Em que é que consiste esse trabalho de casa?

A Lena, apesar de tudo, continuou a fazer coisas ao longo do tempo – com a malta do jazz e com a Rock ‘n’ Roll Station. Mas aquilo que sempre senti mais falta foi a tal genialidade, perfeição e respeito que os arranjos do Luís Pedro Fonseca tinham e que eram tocados pela Banda Atlântida e cantados pela Lena. É preciso uma Lena D’Água pop; é preciso que alguém pegue nisto e recrie o melhor possível – porque nós também estamos muito longe de ser a Banda Atlântida. Estamos a tentar chegar o mais perto possível dos arranjos originais (e é impossível, porque é demais, uma mind expansion next level [risos]), adaptando a uma estética mais nossa e mais atual, mais indie, mais com teclados Casio e beats.

 

Quem é que vai estar a acompanhar-te nessa noite?

Eu começo o concerto sozinho ao piano. Depois o António, o meu bud em Migas, está a tocar baixo; o João Raposo nas teclas, beats e vozes; o Martim [Brito] d’Os Vinhos na bateria, e a Inês Matos na guitarra. E a Lena, claro.

 

Mas também vai haver tempo para músicas tuas.

Sim, é um concerto dividido. Eu começo o concerto sozinho, depois a banda entra, tocamos umas da Lena… depois verão. Há-de haver um final mais especial, digo eu.

 

Mesmo querendo agora parar e tirar um período de férias, já imaginas para onde irá a tua música?

Ah, sim, isso eu tenho bastante noção do que quero começar a fazer a partir de agora. Preciso é de ter canções para o fazer. Acho que há-de estar cada vez mais eletrónico, a tentar que a canção base seja cada vez menos agarrada ao piano e à voz. Quero libertar-me disso, poder ter canções mais livres. E trabalhar os beats já como base da canção permite fazer muitas mais coisas. Dá uma liberdade muito maior para repetir os refrões e dar 20 voltas ao mesmo refrão, ir atrás e voltar à frente… permite ter uma estrutura muito mais maleável.

 

O teu processo de criação e composição começa sempre no piano? É para continuar?

Sim, o momento base e fulcral da canção há-de ser sempre ao piano. O que vou tentar fazer é que o beat passe a ser também uma parte. Ou o groove da canção já tem que estar implícito.

 

Sentir logo na raiz da canção.

Sim. Até posso começar por fazer tudo ao piano, mas assim que sentir a coisa, vou ter logo um Ableton ligado e um kick a dar. A ideia é trabalhar a ideia rítmica desde o início e não estar a tentar forçar, sem impingir coisas à canção.

 

Achas que essa vontade também é geracional? Tens 20 anos, estudaste música, compões de uma forma que, pode dizer-se, é mais ou menos clássica. E no entanto estamos aqui a falar de beats, de Ableton… de ferramentas próprias de uma composição mais eletrónica.

Acho que sim. Hoje em dia toda a gente tem um Ableton e toda a gente arranja uma volca beats, ou um sampler qualquer, um MPC, seja o que for.

 

“É preciso uma Lena D’Água pop; é preciso que alguém pegue nisto e recrie o melhor possível – porque nós também estamos muito longe de ser a Banda Atlântida”

 

Os géneros também são eles muito mais difusos? Não estás propriamente a fazer pop, nem rock, nem indie nem estás a fazer hip hop.

Hoje em dia pomos as coisas cada vez menos em prateleiras e em gavetas. A ideia é que isto seja tudo livre. A ideia da pop é essa! O que se tenta preservar essa linguagem que seja de todos e para todos. Depois tento sempre respeitar uma certa tradição de algumas coisas, que a mim me dizem mais.

 

Que coisas?

Eu tento sempre pôr menos barreiras ao tipo de música que estou a fazer. Não é necessariamente mais pop, hip hop ou rock. Cada canção tem a sua interpretação e depois, cada disco, vais construindo uma linguagem. Mais rock, hip hop ou uma coisa entre a outra! Quero mesmo que as coisas se tornem mais fluidas.

 

E para isso também é preciso ter tempo para descansares, como dizias. Vamos recuar um pouco só para percebermos como começaste esta aventura da música.

A música sempre teve muito presente na minha vida. A família do lado do meu pai é, praticamente, só músicos. O meu pai tem mais cinco irmãos e só um é que não faz música. O meu tio é maestro, o meu pai também; o meu tio e a minha tia são cantores e o outro tio é saxofonista. E todos mega-bosses naquilo que fazem. Então a música sempre esteve presente, mas nunca foi aquilo que quis fazer, porque, na verdade, grande parte da minha cultura e educação musical vem muito da minha mãe e do meu padrasto que me introduziram muito à pop, à pop portuguesa, à world music, ao jazz que ouvi muito, o rock e indie rock da década de 2000… às tantas parei de estudar música porque já não era ali que me sentia bem, mas de repente percebi que queria fazer música, mas completamente diferente: pop, canções.

 

“A música sempre teve muito presente na minha vida. A família do lado do meu pai é, praticamente, só músicos. O meu pai tem mais cinco irmãos e só um é que não faz música”

 

Mas toda a formação inicial tem sido bastante útil, não?

Sim, mas às vezes é ao contrário: ao início foi meio limitadora, porque tive que desaprender. Não aprendi a fazer canções como elas devem ser feitas: de ouvido. Às vezes começava muito preso a um conceito, ficando muito mais mastigado. Prefiro que, mesmo que fique mal, vai-se trabalhando assim em vez de corrigir logo e arrumar tudo. É preciso que saia mais fluidamente.

 

Hoje em dia estás ligado só à música?

Sim, maioritariamente. Não faço mais nada. Pus a faculdade de lado.

 

Que curso é que ficou de lado?

Estava em Estudos Africanos na Universidade de Letras, que é, basicamente, literatura e cultura africana, uma coisa que me diz muito. Era a minha a segunda opção. A primeira era Línguas, Literaturas e Culturas – Artes e Culturas Comparadas;  que é aqueles em que fazes tudo. Em não indo para a primeira, que era mais “à balda”, vou dedicar-me a um lado que acho que é super importante que é África, a nossa maior herança cultural e nós nem sequer sabemos… continuamos a achar que nós é que lhes demos coisas quando, na verdade, só demos as más e não deixámos lá nada. E metade da nossa herança cultural vem de lá, principalmente a musical.

 

“Ah, sim, isso eu tenho bastante noção do que quero começar a fazer a partir de agora”

 

Então nem me atrevo a perguntar se essa herança também faz parte da tua música.

Faz, claro. Eu cresci a ouvir muitas coisas que tento que façam, cada vez mais, parte da minha música.

 

Por exemplo?

Salif Keita, muita música do Mali… Toumani Diabaté; a Rokia Traoré que agora mudou um bocado o registo, mas que era mais roots; claro que muito Fela Kuti e filhos: Femi e Seohyun. Perdi muito tempo da minha vida a ouvir Tony Allen e etc… Julinho da Concertinha… Já vi um grande concerto dele num sarau da Filho Único. Gosto muito dele. Mais tarde também o Bonga, já por causa do B [Fachada], que curtia muito. E ouvi durante muito tempo o Bonga 79, que são discos ridículos de bom! As pessoas às vezes falam-te de 15 canções do Bonga e nenhuma é desses discos. É um lado muito importante da minha música, também.

 

E que há-de aparecer, eventualmente, lá mais para a frente. Achas que poderá começar por se notar no sentido de ritmo que tens?

Sim, é isso. E neste disco já houve mais coisas a puxar por esse lado. Tentei ter aquela marca rítmica do afrobeat, pelo menos nos teclados – nem que seja implícita! São coisas que estão na minha cabeça, mas não me saem naturalmente para as canções porque fico muito preso à ideia de construção de canção. São coisas que, com o passar dos anos, hão-de acontecer, inevitavelmente. Também ainda só fiz dois discos.

 

Entrevista: Bruno Martins