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Guitarras ao Alto 2016: Uma crónica alentejana

Domingo. 19 de Junho. 19h30. Praça de Touros de Sousel. Segundo concerto do Guitarras ao Alto. O Luís Martins sobe ao palco. Estou sentado ao lado do Norberto Lobo, que me confidencia: sabes porque aceitei este desafio? Porque queria ver o Luís tocar ao vivo.

Neste pequeno aparte encerra-se o simbolismo do Guitarras ao Alto: juntar dois guitarristas que se admiram mutuamente e que querem experimentar novas ideias musicais em espaços fora do comum e fora dos locais do costume, e para novos públicos, criando algo inédito e exclusivo no Alentejo. E na segunda edição do evento esta premissa cumpriu-se na íntegra.

Tudo começou com o desejo de avançar de novo com esta aventura alentejana, depois do sucesso da primeira volta (na devida escala de um evento de nicho), em Novembro de 2014, com o Tó Trips e o Filho da Mãe.

Desta feita, e confesso que desde o primeiro momento, queria trazer o Norberto ao Alentejo e vê-lo tocar o que ele quisesse e com quem quisesse. Por sugestão do Jorge Guerra e Paz e concordância do Nélson Gomes, o nome do Luís Martins veio à baila. Nunca me tinha ocorrido tal hipótese, apesar de reconhecer e apreciar o talento do Luís na Deolinda e nos seus projetos experimentais com a Joana Sá. Quando tive a oportunidade de conhecer o Luís em pessoa, a empatia com ele e dele com o Guitarras ao Alto foi imediata. E ficou assim completa a dupla que tocou nos dias 18, 19 e 23 de Junho em Beirã-Marvão, Sousel e Évora.

Em Beirã-Marvão, o concerto subiu a um palco instalado sobre a linha de comboio, numa antiga estação ferroviária, que é hoje a guesthouse Trainspot, no mais alto do Alentejo, mesmo junto à fronteira com Espanha. Podia dizer-se que era arriscado levar o Guitarras ao Alto até perto do fim do mundo, mas a verdade é que estiveram na estação quase 200 pessoas. O concerto começou com o Luís a tirar notas ao silêncio em cinco momentos que nunca antes tinham sido ouvidos ao vivo e que esperamos ouvir brevemente registados em disco. Sentiu-se a magia intimista de um músico que não cria nada ao acaso, que sabe e prepara muito bem aquilo que faz e que mostrou mais uma das suas múltiplas facetas para além da Deolinda e do Power Trio. O Norberto, como espírito musical livre que é, abriu mais uma porta da sua ilustre biblioteca de babel, e durante meia hora levou-nos numa viagem espacial, e por vezes psicadélica, de guitarra eléctrica. Naturalmente, parte do público assustou-se, pouco habituado às experiências do Norberto, mas a descoberta e o desafio também fazem parte da essência do Guitarras ao Alto. Como o faz na mesma medida a harmonia e a alegria, palavras comuns, bem sei, mas as melhores que encontro para a simbiose que se sentiu quando o Norberto chamou o Luís ao palco para a terceira e apoteótica parte do concerto. Deu para tudo. Para uma homenagem aos ritmos do Brasil com sabor a chorinho. Para uma reinvenção do tema “Do Alto Da Faia”, o único registo dos dois músicos juntos em disco (“Pata Lenta” de Norberto Lobo”). E para outras abordagens, com sabor popular e experimental em igual medida, sempre de sorriso na cara.

Podia dizer-se que os 3 espetáculos se pautaram pela mesma sintonia, mas uma das surpresas do Guitarras ao Alto é que nenhum é igual ao que se lhe segue. Tanto pela evolução que se vai sentindo ao longo dos dias na simbiose entre os músicos, como pela completamente diferente experiência que é assistir a um evento musical à noite ou ao final da tarde, numa estação de comboio, numa praça de touros ou num jardim romântico.

Eu diria que o concerto de Sousel, naquela que é provavelmente a mais antiga praça de touros de Portugal, uma ilha banhada por um mar de oliveiras, foi o que melhor refletiu a arte do Norberto e do Luís. Sobretudo pelo magnífico som que o Miguel Lima e o Sérgio Milhano garantiram e apesar de ter registado a menor assistência dos 3 dias. Mas também porque acredito que aquelas quase 100 pessoas que testemunharam a energia que ali se comungou, e que ainda tiveram a oportunidade de saborear os sabores de Sousel (aqui fica a homenagem à cabeça de xara da Dona Octávia, do Cano) e provar os vinhos Virgo de Torre do Frade, não se vão esquecer tão depressa do que ali se passou.

A prova de fogo veio com o concerto de Évora, na inauguração da Feira de São João. Um evento de uma escala que não é a do Guitarras ao Alto, mas cujo risco a Câmara de Évora assumiu. E mais uma vez o Norberto e o Luís estiveram à altura, entre as fugas para outros planetas e o voar junto ao público.

No final ficou uma certeza: à segunda edição o Guitarras ao Alto afirma-se plenamente como uma experiência para quem quer marcar um encontro único entre o Alentejo – o seu vinho, a sua gastronomia, a sua paisagem e o seu património – e a inspiração que ecoa através da guitarra em Portugal. Este ano já houve repetentes e até quem tenha assistido a mais de um concerto e passado um fim de semana irrepetível. É assim que o Guitarras ao Alto quer crescer. E o Norberto Lobo e o Luís Martins estiveram em alta.

Vasco Durão