Oub'lá

Galo Cant’às Duas

 

À procura do equilíbrio entre as melodias e os improvisos

 

Este Galo vem de Viseu: Hugo Cardoso e Gonçalo Alegre são dois amigos que há cerca de dois anos, numa semana dedicada à criação experimental em Castro de Aire, tiveram a ousadia de subir de improviso a um palco e, simplesmente, tocar. Hugo, baterista, e Gonçalo, baixista, têm formação em jazz — algo que se vai sentindo aqui e acolá no universo do pós-rock que criaram em Os Anjos Também Cantam, o primeiro disco da banda.

É mais um disco com o carimbo dos estúdios HAUS, em Lisboa — que tem trazido dentro deste género, e nos últimos tempos, vários sabores para a mesa. E todos eles, curiosamente, com ligações a temáticas zoológicas: os Quelle Dead Gazelle, os Galgo, os Riding Pânico — que regressaram com o disco Rabo de Cavalo e agora os Galo Cant’às Duas.

Gonçalo e Hugo contam-nos agora como nasceu este Galo e em que capoeira anda ele a cantar.

 

Vamos até às origens do vosso projeto: como é que o Galo começa a cantar? Foi num evento em Castro d’Aire?

Hugo Cardoso [H.C.] — Nós fazemos parte da organização de uma associação cultural, o GEIC – Grupo Experimental de Intervenção Cultural, que anualmente faz um encontro de uma semana dedicado às artes na aldeia da Moita, em Castro de Aire — teatro, danças, artes plásticas… E nesse encontro, há dois anos, houve um músico que falhou à última da hora e avançámos nós!

Gonçalo Alegre [G.A.] — Uma das coisas interessantes que acontece nesse encontro na Moita é que as pessoas vão lá para ficar a semana toda. Não é só para um espetáculo: chama-se Encontro de Artes em Meio Rural. A Moita tem muito a componente de experimentação e tudo começou com um grupo de amigos que se juntava lá na Moita para pintar, para tocar, para fazer jams… esse foi o mote inicial da criação do GEIC.

 

Esse fator experimental marcou a criação do Galo Cant’Ás Duas?

G.A. — Sim. Se estávamos lá para experimentar, por que não? O Hugo lançou o mote: se o outro gajo não vem, embora aí assumir a cena. Isto foi em 2015.

H.C. — Foi arriscar naquela noite: improvisar com contrabaixo e bateria.

 

Vocês têm formação musical?

H.C. — Eu comecei a tocar bateria com sete ou oito anos, e aos 16 é que fui para uma escola profissional de música na Covilhã. Até que abriu um curso de jazz ao pé de Albergaria-a-Velha — grande escola, que é também de artes — e foi a partir daí que comecei. Foi o jazz que me deu mais abertura de mente.

G.A. — Eu comecei mais tarde. Só aos 18 anos, depois do secundário, é que entro na escola da jazz do Porto, onde estive dois anos a estudar baixo elétrico. Aos 19 comecei a tocar contrabaixo. Foquei-me no instrumento e fui fazer a licenciatura em Viseu em clássico.

 

“Não vou dizer que começámos logo a compor, porque o objetivo, ao início, era fazer jams. Mas muito naturalmente o Gonçalo fazia uma linha de baixo e eu achava interessante e pedia-lhe para guardar. Quando demos conta, tínhamos uma estrutura”

 

O vosso primeiro encontro na bateria e baixo deve ter vindo carregado de um grande à vontade para a experimentação. Isso também é a base do Galo Cant’Às Duas?

G.A. — Nós já nos conhecíamos de outros projetos e, a par disso, havia então a tal liberdade para conhecermos outros estilos e por termos estudado outras texturas e formas de nos expressarmos na música. Posso dizer que terá sido mais fácil improvisar por termos os dois formação em jazz.

H.C. — Principalmente porque partimos sem qualquer preconceito. Se viesse um groove de disco dos anos 1970, não tínhamos de ter medo de o assumir! Nesse primeiro encontro tocámos uma meia hora de seguida — não foi mais porque estava de trovoada e a luz foi abaixo umas quantas vezes. Mas foi ótimo.

 

O que é que nasceu desse encontro? Ou seja: o que é Galo Cant´Às Duas?

H.C. — Quando fizemos esse concerto na Moita sentimos que foi missão cumprida. E quando acabou aquela semana fomos para casa, a pensar nas coisas. E passado uns tempos estávamos fechados na sala de ensaios a estudar improvisação. Não vou dizer que começámos logo a compor, porque o objetivo, ao início, era fazer jams. Mas muito naturalmente o Gonçalo fazia uma linha de baixo e eu achava interessante e pedia-lhe para guardar. E ele fazia o mesmo comigo. Quando demos conta, tínhamos uma estrutura. A partir daí foi equilibrar essas estruturas de composição com a improvisação: coisas mais balançadas e até mais fáceis de ouvir. Desde muito cedo que começámos a conseguir concertos, o que foi ótimo porque nos deu alta rodagem.

 

Ainda utilizam o contrabaixo nas composições? O que é que mudou?

G.A. — Usamos, sim. A nossa primeira semana foi determinante na definição da estrutura daquilo que é o disco. Os outros instrumentos aparecem por uma necessidade quase prática. Eu fazia uma linha de baixo, o Hugo na bateria, mas sentíamos a necessidade de haver um elemento instrumento harmónico. Precisávamos de harmonia e acordes. E como tínhamos uma guitarra…

H.C. — E foi uma forma de conseguirmos outras cores. O Gonçalo trabalha com imensos pedais, mas não deixa de ser um baixo. A guitarra vai dar outra cor, começámos a fazer linhas de teclado e a dispará-las ao vivo. É um grande trabalho do Gonçalo, que já tem um jogo quase de sapateado (risos).

 

Acham que o Galo é hoje menos experimental?

G.A. — É menos, mas não deixa de ser experimental.

H.C. — Nós continuamos a trabalhar coisas novas. Sim, já está um bocadinho mais solidificado, mas ainda há tempos estávamos a experimentar um tema novo e apareceu um amigo nosso ver, que disse que já estava algo mais estruturado, mas que continuava a soar a Galo: são os tempos partidos que usamos, os silêncios… está mais estruturado, mas continuamos a ser nós.

 

Quando ouvi falar no nome da banda, associei, de imediato, ao mundo rural, à raiz da música tradicional portuguesa, a bombos e adufes e velhinhas a cantar. Afinal não era. Ainda que, talvez por essa associação, não deixe de pensar em alguma raiz portuguesa nos vossos temas…

H.C. — É engraçado, mas não foi nisso que pensámos. Foi o Gonçalo que deu o nome: foi na noite da Moita, em que precisávamos de um nome, e estávamos num parque de campismo onde havia uma série de galinheiros e havia um galo que estava sempre a cantar — fossem duas da manhã ou seis.

 

Começaram a tocar às duas da manhã?

H.C. — Não, acho que foi por sermos os dois! Eu nem percebi, mas gostei da sonoridade e do carisma.

G.A. — Já nos fizeram a cabeça para mudar o nome só para Galo, mas não vai acontecer (risos).

 

“O nome do disco [Os Anjos Também Cantam] surgiu numa altura em que começámos à procura de umas sonoridades mais celestiais — que se percebe no segundo e último temas. A mim remeteu-me aos anjos: se o galo canta, os anjos também”

 

E o nome do disco? Os Anjos Também Cantam, mas só no último tema é que se escutam vozes…

H.C. — Não nos referimos tanto ao cantar de cordas vocais. Tocar bateria também se pode encarar como cantar — tudo o que seja sonoro. O nome do disco surgiu numa altura em que começámos à procura de umas sonoridades mais celestiais — que se percebe no segundo e último temas. E eu pensei: se o galo canta, os anjos também.

G.A. — Fica sempre tudo sujeito a interpretações.

 

Já voltaram ao estúdio para tentar fazer coisas novas?

H.C. — Nós gravámos o disco em Lisboa no HAUS e foi nessa altura que senti tudo muito claro. Tínhamos cinco dias de estúdio e tínhamos que gravar em dois dias: sentimos uma certa pressão, mas o Makoto e o Fábio Jevelim ajudaram-nos bastante. Com essa pressão ficou um caminho bem traçado para a sonoridade da banda.

 

Entrevista: Bruno Martins