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Curtas 2017: competição nacional de gala

O que se passa em Vila do Conde não fica em Vila do Conde. Espalha-se, internacionaliza-se. A edição 25 do Curtas foi marcada pelo aniversário, mas também pelas longas-metragens em antestreia, pela secção “Stereo” e por um punhado de curtas nacionais de gala.

O ambiente foi o habitual. O lado “capelinha” do cinema cruzou-se com o clima de festa. À noite, mais artistas do que jornalistas. Mas a cidade fica diferente. Cada vez mais, o Curtas é um evento internacional. Em cada ano que passa traz mais programadores internacionais, mais realizadores. Este ano faltaram mais atores. Filmes como os de Salomé Lamas, Carlos Conceição ou Mónica Lima tinham atores que era bom circularem pela cidade do Rio Ave.

Na margem do Ave foi bonito também perceber que a secção da Curta à Longa, onde se mostram longas de autores que já passaram pelo Curtas, está a crescer. Este ano, os diretores Miguel Dias, Mário Micaelo e Nuno Rodrigues tinham trunfos de respeito. A começar pela antestreia de O Outro Lado da Esperança, comédia seca de Aki Kaurismaki. O finlandês continua a filmar a situação dos refugiados na Europa e passa de Le Havre para a sua Helsínquia. Pode não ser o seu melhor filme, mas não há ninguém a filmar dessa maneira. Acredito que vai ser um enorme crowd-pleaser.

 

No “Stereo”, a secção que nos traz os cine concertos, foi da ordem do divino ver Capitão Fausto a encher o Teatro Municipal para um concerto que fazia diálogo com o documentário Pontas Soltas, de Ricardo Oliveira. Os Fausto souberam fazer rimas com as imagens e os fãs nortenhos foram ruidosos nos aplausos. Foi dos grandes momentos do Curtas.

 

E o que dizer do concerto dos Mão Morta, a partir do trabalho de diversos ilustradores nacionais? A banda de Braga tocou o álbum Mutantes S.21 e deixou-nos sem fôlego. Adolfo Luxúria Canibal está em grande forma e tem um prazer do outro mundo a cantar estes temas. Abençoado este festival por nos ter dado este momento.

Também é impossível não ter ficado siderado pelo momento Karlon numa das festas do festival no Barcearia. Karlon que esteve em destaque em Altas Cidades de Ossadas, o novo de João Salaviza, também em competição. Karlon rapou como se não houvesse amanhã e já se percebeu que a sua margem de crescimento é imensa.

 

Quanto à competição nacional, curioso a muito venerada Salomé Lamas ter ficado fora do palmarés. A cineasta apresentou Coup de Grâce, a sua primeira investida na ficção. O filme já tinha estreado no festival de Berlim e do ponto estético é mais um triunfo. Salomé Lamas tem um cuidado de composição que é sublime, que enche o olho, mas aqui falta algo mais. Coup de Grâce faz-nos ficar a fazer figas para a realizadora de Eldorado XXI voltar depressa ao documentário.

O melhor filme nacional de animação foi A Sonolenta, de Marta Monteiro. Uma animação que nos leva para uma aldeia onde uma menina cuida de um bebé-chorão e onde se adivinha uma tragédia. Minimal mas não repetitivo, A Sonolenta é mais uma boa notícia das curtas de animação nacionais. Um filme em que cada plano apresenta mil e uma ideias de cinema.

Voltando a Salaviza e ao seu Altas Cidades de Ossadas, convém apenas lembrar que o filme já tinha concorrido ao Urso de Ouro de Berlim. Um relato de um gueto que demora tempo a digerir e que indicia que o cineasta de Montanha está interessado num cinema adversarial com o seu passado.

Mas o melhor filme do festival foi a comédia de ficção científica Os Humores Artificiais, de Gabriel Abrantes, uma história de um robô parecido com Wall-E da Disney. Trata-se de um filme comissariado pela Bienal de São Paulo e tem efeitos visuais raros no panorama do cinema português, tendo já sido selecionado para a corrida ao Urso de Ouro de Berlim. Trata-se de um filme inundado de ideias do arco da velha, sendo a principal o facto deste simpático robô estar apaixonado por uma índia e apostar como vocação na comédia. Sim, um robô artista de stand-up comedy. Gabriel Abrantes continua a ser o cineasta mais livre de todo o cinema português. Não é pecado estar a salivar pela sua primeira longa, atualmente em fase de preparação.

 

Gonçalo Almeida, por seu turno, não tem robôs mas dispensa humanos. Thursday Night não é mais do que a história de um cão assombrado por outro cão. Um pequeno exercício de fábula meticulosamente filmado e com bons timings, tal como a animação Surpresa, de Paulo Patrício, um documentário que narra uma conversa entre uma menina de quatro anos e a sua mãe. Quem não se derreter com isto tem coração de aço. O público do Curtas deu-lhe a pontuação máxima e Patrício levou para casa o prémio do público.

Quanto a O Homem Eterno, uma mistura de ficção e documentário, de Luís Costa, não aqueceu nem arrefeceu. Esta é a história de um homem que sempre filmou tudo, uma espécie de homem-cinema. O homem em causa é o avô do cineasta. É um filme simpático, nada mais.

Água Mole, de Xã e Laura Gonçalves, já se conhecia desde a Quinzena de Cannes e é outra das animações que os programadores de Vila do Conde apostaram. Retrato enternecedor daqueles que recusam sair da província para a cidade. Tem uma divindade no traço do desenho e do seu movimento que é difícil explicar.

O Curtas foi também abalado por Verão Saturno, de Mónica Lima. Uma curta com interpretações naturalistas de Jaime Freitas, Joana de Verona e Rita Loureiro. Uma ode a atrações silenciosas ou a história de um músico que se parece com The Legendary Tigerman se fosse Tó Trips e que regressa a Lisboa. Um regresso em que descobre que algo falhou na sua geração. Outro filme tocado por uma câmara cheia de bênçãos femininas. Quero muito perceber para onde vai o cinema desta cineasta.

O vencedor do festival foi a curta de João Pedro Rodrigues, Où En Êtes-Vous João Pedro Rodrigues, autorretrato criado para o Centro Pompidou feito pelo cineasta de O Ornitólogo. João Pedro ao filmar-se está a fazer um ato de evasão de si próprio. O cinema fica a ganhar à vida.

Relativamente ao filme que venceu o prémio de Melhor Filme do Festival, o Grande Prémio, Farpões Baldios, de Marta Mateus (na foto), poucos estavam à espera desta decisão do júri. Este mergulho num Alentejo entre o passado e o presente acabou por ser considerado o melhor de uma competição internacional (todos os filmes da competição nacional podem ganhar o Grande Prémio). Esta cineasta estreante filma com uma intensidade relevante mas a nível de texto há coisas aqui que custam a entrar. Exagero nesta decisão? Muito provável. E Marta não se livra da conversas nos corredores do festival sobre a sua aproximação ao cinema de Pedro Costa. Seja como for, está lançada…

 

Texto: Rui Pedro Tendinha