Artigos

Batida 97

[Ouve o especial Batida 97 em cima]

A efeméride está para os Media como a metáfora para a literatura, da mesma forma que os questionários de Verão são tão certos como termos de pagar o IRS. No fundo, e fintando o seu destino, a efeméride não é efémera, antes pelo contrário. E é por isso que é tão apreciada e tão bem recebida. Ela traz-nos conforto. Proporciona-nos a ilusão da imortalidade. E se esta tese acabada de criar funciona para tudo em geral, confirma-se particularmente quando falamos de música e da propensão constitutiva de qualquer melómano que se preze para fazer listas. Dos melhores discos do ano, dos piores, canções de amor, canções com a palavra fuck, temas que usaram o mesmo sample, bandas que foram ver o primeiro concerto dos Joy Division, de one hit wonders ou do Spotify… A lista é interminável. E é uma lista, mais uma vez.

Por isso, não resistimos a fazer outra dos discos de música de dança que marcaram 1997. Porque foi há 20 anos e as efemérides querem-se rotundamente significativas. O primeiro disco que encontrámos foi lançado em Janeiro e já foi aqui analisado pela Isilda Sanches. Homework dos Daft Punk. Um álbum seminal, que também por isso nos deu o mote para fazer o trabalho de casa e ir à procura de mais. O número de registos bons e relevantes da colheita desse ano é espantoso. Tentámos perceber o “happycentro” neste exercício de memória, re-diggin’ e actualização à volta do mundo da chamada música electrónica e de dança.

Atenção, todo o material fonográfico referido por extenso, nome da banda e nome do disco, é de 1997. De facto, estamos mesmo em 1997!


Os Daft Punk marcaram o zénite do chamado French Touch, depois dos manifestos fundadores de St. Germain, Ettiene de Crécy e Motorbass. Uma cena fulgurante alimentada sobretudo pela deep house, sob influência funk, onde curiosamente nunca tiveram lugar os artistas da F Com, editora francesa liderada por Laurent Garnier, onde o tecno e a electrónica predominavam, mas a house também tinha o seu espaço. A excepção a esta regra foi St. Germain, que editava pela F Com.

Uma hipótese de ligação das diferentes facções poderia ser a Versatile, editora dirigida por Gilb’R, que embarcou na onda com as compilações Future Sound Of Paris ou Sounds Like Paris, por exemplo, e contava com artistas como Pépe Bradock, Chateau Flight e I:Cube, responsável pelo híbrido Picnic Attack. 97, estão a ver, é tudo de 1997!

Na F Com, inicialmente France Communication, militavam nomes de diversas nacionalidades (seriam talvez uma espécie de french touch impuro?) como Llorca, Alexx Kid, Aqua Bassino, Ready Made, Frederic Galliano ou Jori Hulkonnen, Elegia ou A Reminiscent Drive. E citamos estes, pois gravaram singles e EPs.

No mesmo ano, Garnier editou 30, um álbum que entre outros feitos deixou ao mundo um clássico, “Crispy Bacon”, com vídeo à altura, realizado por um nome que certamente vos será familiar, Quentin Dupieux, mais conhecido como Mr. Oizo.

Do outro lado do Canal da Mancha, a produção electrónica estava ao rubro, com o drum’n’bass a dominar as atenções.

Desde logo porque New Forms, de Roni Size/ Reprazent, ganhava o Mercury Muzik Prize, mas também porque as sementes do género há muito lançadas por gente como Fabio, Grooverider , Shy FX, 4 Hero ou Alex Reece tinham sido cuidadas e germinavam abundantemente em editoras dedicadas, como a Metalheadz de Goldie, a Moving Shadow de Rob Playford ou a Good Looking/Looking Good de LTJ Bukem, e contaminavam tudo ao seu redor.

Foi por estas e por outras que apareceram provas evidentes da pujança e ecletismo do drum’n’bass a ir buscar inspiração e renovação ao jazz, à electrónica mais abstracta ou ambiental, ao tecno, mantendo a vocação de incorporar a soul, ragga ou hip-hop para abraçar o formato de canção.

Discos que mantêm pertinência e o interesse, como é apanágio de todos os escolhidos e citados: James Hardway – Welcome To The Neon Lounge, Photek – Modus Operandi, Adam F – Colours, Boymerang – ‎Balance Of The Force, The Black Steele Project – Selector, Omni Trio – Skeleton Keys, Johnny L – Sawtooth e o obscuro mas surpreendente Bampot, de The Odd Toot.

O drum’n’bass estava na moda e era transversal. A prova cabal disso foi David Bowie deixar-se levar pela vertigem dos bpms em “Earthling”, a “Talkin’ Loud” de Gilles Peterson, tradicionalmente a navegar nas águas tépidas da soul jazz e hip hop, apostar em Roni Size, enquanto a multinacional Island empossava Talvin Singh como o embaixador de Anokha: Soundz Of The Asian Underground e a mítica e heterodoxa Warp marcava o ano com o álbum Hard Normal Daddy e máxi quase álbum, ou mini-álbum, Big Loada, ambos de Squarepusher. E, cereja em cima do bolo, oferecia ao mundo o perturbador e assaz esquizofrénico single “Come to Daddy” de Aphex Twin, com vídeo de Chris Cunningham a condizer. Provavelmente o melhor video do ano, a par de “Ni Ten Ichi Ryu”, que não fez parte do álbum de estreia de Photek, acima referido, mas foi como single.

A Ninja Tune também cumpriu a sua quota drum’n’bass com Bricolage, a estreia de Amon Tobin, brasileiro já nosso conhecido como Cujo, mas a sua vocação era o desenvolvimento de conceitos mais latos e abrangentes do tipo funkjazztical tricknology ou flexiexistencialism, por isso elegeu o breakbeat como linguagem primordial, jogando com os ritmos, ou tempos, do downtempo ao uptempo, enquanto veículo das mais ecléticas experiências sonoras.

Música do mundo com exotismo e elegância, então Light ‘Em Up, Blow ‘Em Out, na verdade uma compilação que não foi lançada enquanto tal, mas que serve como paradigma da plasticidade da casa. Divagações sobre o hip-hop, sob influência do jazz e um olhar cinéfilo, com a entrada em cena de instrumentos a ganharem protagonismo aos samples, então “Blow Your Headphones”, ouvindo The Herbaliser. E a encaixar que nem uma luva, no lado mais abstracto e hedonista da manipulação do breakbeat, sem constrangimentos e ao sabor da brisa do momento criativo, eis Mr Scruff, o disco de estreia de Mr. Scruff, que saiu neste ano com o selo da Pleasure Music, mas seria reeditado 8 anos depois com dois temas extra e rebaptizado como Mrs. Cruff.

Andy Carthy era, no fundo, ninja de nascença.

O ano da editora de Matt Black e Jonathan More ficaria superiormente marcado pelo disco dos seus fundadores, Let us Play, dos Coldcut, um mosaico sampladélico desequilibrado de corte e colagem que, não só enuncia as leis fundamentais da doutrina do “Xentertainment”, “fuck art lets dance” ou “fuck dance lets art”, dependendo dos astros, como apela a uma consciência ecológica, ao pensamento crítico ou à mera desbunda conceptual.

A verdade é que o enorme chapéu do breakbeat up mid ou downtempo servia, e serve, para tudo. É uma espécie de farol, mais conotativo que denominativo e, por isso, absolutamente libertário. Foi ao abrigo desta espécie de pacto auditivo que, por estes dias, a música para os nossos ouvidos era servida por editoras como a Pork Recordings, a Compost ou a Mo Wax, tão capazes de investigar o canto das sereias na orla costeira de Kingston Upon Hull, como o futuro som do jazz na Floresta Negra ou fantasias galácticas para cabaret electrónico kitsch ao serviço de Sua Majestade.

São muitos e bons os contributos recolhidos nesta franja desde Luck Be A Weirdo Tonight, dos Filla Brazillia, aos seus companheiros de tão porcina e corruptora editora, Bullitnuts, com Nut Roast, e Baby Mammoth, com dois discos em 12 meses: Bridging Two Worlds e One…Two…Freak.

Da Mo Wax, editora de James Lavelle e DJ Shadow, incontornável no assentamento das fundições do trip-hop e do hip-hop instrumental e abstracto, amostras multifacetadas que compreendem Contacto Espacial Con El Tercer Sexo de Sukia, Attica Blues dos Attica Blues e a Big Soup de Luke Vibert.

A contribuir para o caleidoscópio sonoro, há discos tão diferentes quanto cativantes, e acessíveis, como Mellowdramatic, de A Forest Mighty Black, Detunized Gravity, dos De-Phazz , Opera, dos Tosca (de Richard Dorfmeister – a outra metade dos Kruder & Dorfmeister, os pontas de lança do chamado som de Vienna), ou Sounds From The Thievery HiFi, dos Thievery Corporation, que passaram por Portugal neste mês de fevereiro.

Mas se tivéssemos de atribuir o galardão ao género de música de dança mais popular do ano, iria certamente para o festivo big beat, o encontro explosivo do tecno e do rock, enrolado em big fat beats, a cavalgar ritmos rápidos e agressivos. Um movimento que teve um ano em cheio desde logo com dois discos notáveis e vencedores: Dig Your Own Hole, dos Chemichal Brothers e The Fat of the Land, dos Prodigy. Rapidamente os “manos” foram catapultados a figuras de culto e “superstar djs”, elevando o seu poder de fogo sonoro a uma categoria de experiência audio-visual total ao vivo, absolutamente imperdível. Além disso, tiveram a inteligência de fazer pontes com gente como Dj Kool Herc, lenda viva do hip-hop, Noel Gallagher dos Oasis, Beth Orton, proto–diva folktrónica, e os psicadélicos Mercury Rev, e aumentar a sua área de influência e popularidade.

Simultaneamente, a insanidade tensa e musculada dos Prodigy conquistava Madonna ,que os levava para a sua editora Maveric e apresentava ao mundo, nos MTV Music Awards, através de uma live video performance. “Firestarter” foi número 1 do top de singles britânicos e incendiou o resto do mundo. O polémico “Smack my bitch up” ganhou o estatuto de ícone da cultura pop.

Os álbuns de Chemical Brothers e Prodigy acompanharam Ok Computer, dos Radiohead, Vanishing Point, dos Primal Scream, Second Coming, de Suede, e Spice, das Spice Girls, na lista final dos Mercury Muzik Prize, mas todos perderam para Roni Size/Reprazent.

Consolidando o big beat, estiveram Vegas, dos The Crystal Method , Bra, dos Bentley Rhythm Ace, City Delirious, de Lionrock , o híbrido Welcome To Tackletown, de Mekon e, a reforçar a tendência, Pop, dos U2, colado à cena. A bandeira foi carregada pela Skint e pela Wall Of Sound, que anteciparam o assalto aos tops com os singles “Going Out Of My Head”, de Fatboy Slim, e “History Repeating” dos Propellerheads Featuring Miss Shirley Bassey.

Por fim, houve uma série de discos que, mais ou menos desgarrados de qualquer tendência, indiferentes a modas ou hypes, demonstraram que, a conquista da imortalidade, depende no fundo de fazer aquilo em que se acredita e esperar que a recepção e a capacidade crítica de quem ouve acrescentem valor à música que se faz. O resto é silêncio e os gostos que se educam e moldam. E o cinzel do tempo… Ou como diria Sófocles, “Não procures esconder nada; o tempo vê, escuta e revela tudo”.

Nesta última secção, dos objectos fonográficos avulsos, há de tudo um pouco, e desde logo temos um dos nomes fundamentais e pioneiro da electrónica contemporânea, Carl Craig, também conhecido como Papperclip People e Innerzone Orchestra, entre outros disfarces. Em More Songs About Food And Revolutionary Art, Craig alargou a moldura formal do chamado tecno de Detroit de primeira geração (cunhado por Derrick May, Juan Atkins e Kevin Saunderson), temperando alguma frieza atávica da electrónica com breakbeat, ambient, jazz, soul e até um piscar de olho à música contemporânea.

Segundo álbum de originais de Carl Craig, em nome próprio, lançado na editora que fundou, em 1991, a Planet E, que viria a descobrir e a lançar outro dos nomes de referência da nova geração de Detroit, Moodymann, também conhecido como Kenny Dixon Jr e KDJ. Um produtor e dj de mente aberta e espírito livre que, no seu disco de estreia, simplesmente reinventou a house.

Silentintroduction é um disco fulgurante, um manual de groove e um sofisticado e infalível dispositivo no enchimento de pistas de dança. Moodymann bebeu os ensinamentos da house mais festiva e musculada de Chicago, manteve as ancas a abanar com balanço de deep house e depois deixou-se contaminar pela espontaneidade das sessões de djing ao vivo, pela soul, funk e disco-sound, integrando samples de voz, colhidos no imaginário blaxploitation, e found sounds, jazz e elementos de tecno. Bebeu tudo de um trago e cuspiu fogo. Foi o início de uma carreira promissora, profícua e sempre surpreendente.

House absorvente com espaço para erguer o punho e contestar a sociedade e os costumes, sob uma perspectiva afro-centrada e uma orientação estética agregadora, com infiltrações garage, utilização de instrumentos analógicos, baixo, saxofone e até guitarra de inspiração baleárica, foi o que descobrimos em Basic Blaze, dos Blaze. Directamente da Big Apple, para a Glasgow Underground, aterrou dose sólida de soulfoul house de Nova York a cumprir a função primordial da música de dança, fazer dançar, com os New York Rhythms, de Mateo & Matos.

Pistas inesperadas, surgiram com a adopção do “french touch” pelo escocês DJ Q, em Face The Music, na incursão house disco orquestral dos Faze Action, em Plans & Designs, e no tecno-trance-dub hipnótico da compilação da caixa prateada Maurizio, dos Maurizio ‎, aliás Mark Ernestus e Moritz von Oswald (também conhecidos como Rythm and Sound), e no tecno-rock árido e experimentalista dos Sofa Surfers, em Transit, a comprovar que a Áustria é uma verdadeira caixinha de surpresas.

Para recuperar o fôlego, num ano desafiante e desgastante, o som de Bristol na secção da torch song a brilhar em Portishead, dos Portishead.

Por esta altura, a grande e incontornável questão que se coloca é: que combinação de factores terá desencadeado esta tempestade perfeita? Provavelmente, os mesmos que se repetem todos os anos. O mundo não pára, a tecnologia também não, e não é por acaso que há coincidências. Para terem uma ideia geral, em 1997, houve uma série de desastres naturais.

Para além disso:
– Bill Clinton toma posse para o segundo mandato como presidente dos Estados.
– Hillary Clinton vem a Fátima.
– Tony Blair é eleito primeiro-ministro.
– Na Irlanda do Norte, o IRA anuncia o cessar-fogo.
– A Coroa britânica entrega Hong Kong aos Chineses. É o fim do império que durou 414 anos.
– Laurent Kabila depõe Mobutu e o Zaire volta a chamar-se República Democrática do Congo.
– A sonda Pathfinder chega a Marte.
– É clonada a ovelha Dolly.
– Deflagra a doença das Vacas Loucas.
– Vale e Azevedo é eleito Presidente do Benfica.
– Santana Lopes ganha a Câmara da Figueira da Foz.
– O Presidente da República, Jorge Sampaio, inaugura o centro comercial Colombo.
– Mike Tyson arranca parte da orelha de Hollyfield à dentada.
– O FC Porto ganha o tri.
– Marc Batta expulsa Rui Costa sem motivo, quando Portugal vencia por 1-0 em Berlim. Portugal não vai ao Mundial de ’98
– Sá Pinto agride Artur Jorge.
– Há jogos olímpicos em Atenas. No atletismo, Carla Sacramento ganha medalha de ouro, Fernanda Ribeiro e Manuela Machado ganham a prata.
– Estreia-se South Park. E é lançado Harry Potter e a Pedra Filosofal.
– Dario Fo ganha o Nobel de Literatura
– Nasce Malala, futura Prémio Nobel da Paz. Morre Madre Teresa de Calcutá.
– Morrem Jeff Buckley, Notorious BIG, Chico Science, Michael Hutchence (dos INXS), Al Berto, António Gedeão, Dórdio Guimarães, William Burrougs, Allen Ginsberg, Roland Topor, Marco Ferreri, James Stewart, Robert Mitchum, Samuel Fuller e Roy Lichenstein.
– Morrem Deng Xiaoping e Mobutu.
– Morre a princesa Diana e Elton John compõe “Candle In The Wind”.
– Morrem 13 pessoas no Massacre de Amarante no Meia Culpa.
– 57 turistas morrem num ataque terrorista, em Luxor, no sul do Egito. Os fundamentalistas islâmicos reivindicam o atentado.
– 39 membros da seita Portas do Paraíso cometem suicídio coletivo na Califórnia.
– Gianni Versace é assassinado.
– Os 5 discos mais vendidos em Portugal são de Paulo Gonzo, Delfins, Spice Girls, Daniela Mercury e Vaya Con Dios. E os restantes não são melhores.
– Os Jazzanova lançam o seu primeiro EP e fundam a JCR, Jazzanova Compost Records, com Michael Reinboth, da Compost.
O Paciente Inglês ganha 9 Óscares, incluindo o de melhor filme do ano. Joel Coen, com Fargo, e Mike Leigh, com Secrets & Lies, perderam.
– António Guterres é primeiro-ministro de um governo que conta com José Socrates e António Costa.
– Só 6,3% dos portugueses têm acesso à internet.
– Foi o ano em que acabou a XFM, o Captain Kirk no Bairro Alto, em Lisboa, em que apareceu a editora Lupeca e o selo Kami Khazz, e a KAOS comemorou o 5.º aniversário.

Por último, mas não menos importante, “Music Sounds Better With You”, dos Stardust (de Thomas Bangalter, dos Daft Punk),‎ é eleita, por mim, a melhor canção para encerrar um balanço sobre os melhores discos de música de dança e electrónica de 1997, o ano que antecedeu a Expo ’98.

Rui Portulez