Ter e não ter:

Bowie em Berlim

 

Low – suite em 4 andamentos, de David Bowie – tem uma história. Mas, sobretudo, tem a profundidade da dor, enquanto a sinfonia, feita a partir dela, de Philip Glass, tem a qualidade de fino papel de parede. Olhar para um facto tão extremo como o ’11 de Setembro’ e saber porque houve quem encolhesse os ombros (e pior…), enquanto outros vertiam quantas lágrimas tinham… talvez ajude.

  

Por Ricardo Saló


 

David Bowie – Low (Lado B)

Edição: Janeiro de 1977 [RCA Records]

Manhã em Nova Iorque

can-1971

Can (1971)

Sem Karlheinz Stockhausen e Teo Macero, nunca teria havido ‘sampling’. O primeiro foi um tão notável quanto exasperante manipulador de bandas magnéticas. Mas, entre os seus alunos, contavam-se – por exemplo – Irmin Schmidt e Holger Czukay. Estes seriam – nas qualidades de teclista e baixista do grupo Can – peças essenciais do ‘krautrock’ (o rock alemão da década de 70). A compreensão da sua especificidade é matéria para uma longa-metragem autónoma. Basta, por agora, saber onde está o elo entre uma coisa e outra. No final dos anos 60, já depois de ter deixado o mestre a

falar com a tesoura e a fita-cola, Czukay foi professor de música. Certo dia, um dos seus alunos, Michael Karoli (por ironia, o único elemento dos Can falecido) aliciou-o para – juntos, mas com mais alguém – a formação de um grupo de rock. Não estando plenamente iluminado sobre o novo género de música, o futuro ’studio wizard’ (além de – ele sim- precursor directo do ‘sampling’, em Canaxis, 1968, e, sobretudo, porque já num quadro pop, em Movies, 1979) resolveu – perante tanto entusiasmo- aceder ao pedido do aluno, após o que tratou, ele próprio, de aliciar o ‘colega’ Schmidt e o amigo Jaki Liebezeit, um dos bateristas (o outro era Mani Neumeier, fundador dos Guru Guru) em fase de ruptura com a Globe Unity, orquestra de ‘free-jazz’ do pianista Alexander von Schlippenbach. Se Macero – outrora participante das sessões de The Birth Of The Cool e ex-activista do “jazz workshop” de Charles Mingus – se revelaria sobredotado para a utilização do estúdio como elemento essencial do processo criativo, Stockhausen enclausurou-se numa linguagem hermética, animada de propósitos de elevação a paradigma da estética contemporânea.

Holger Czukay – Cool in the Pool

 

 

Findo o seu período criativo mais fértil, consciente da perda da posição dianteira, na definição de uma nova realidade estética, e sentindo uma luz crepuscular a banhar dias mais curtos, o ‘germânico intranquilo’ tratou de pôr em prática uma estratégia tão comum em inúmeros casos de consciência da chegada do ocaso: o desvio das atenções para uma frente retórica em plena laboração. E aqui se chega ao momento fatídico. Sem que tenha sido instado, sequer, a pronunciar-se sobre o “11 de Setembro”, Karlheinz não faz a coisa por menos. Na aparência, sem condições para compreender que a sua triste manifestação de ‘ousadia’ seria a prova mais eloquente de um estado galopante de senilidade mental, julga estar a fazer os possíveis e os impossíveis para deixar o mundo

 

em estado de choque: “o ’11 de Setembro’ – proclama – foi a obra de arte perfeita, aquela em que o criador morre com a sua obra!” Vitoriado o ‘acto de coragem’ de Karlheinz pelos simpatizantes ocidentais do fanatismo anti-americano, Laurie Anderson foi branda (para não dizer ‘piedosa’) para o autor de Hymnen, quando se ficou pelo comentário: “Não quis mais que aproveitar uma catástrofe aterradora para fins de promoção pessoal”. Pergunta básica: “se um familiar, um amigo ou um antigo cúmplice de pesquisa tivesse estado, então, no alto de Wall Street, ter-lhe-ia saído semelhante dislate ou, antes, uma lágrima por um ente querido apanhado no lugar errado à hora errada?”

Noite em Berlim

Robert Wyatt – em entrevista concedida à televisão, por altura da edição de Comicopera – foi inquirido sobre o sofrimento implícito nas suas canções e a ‘insólita’ beleza a que essa dor dá origem. Respondeu com uma pergunta: “Sabe como nasce uma pérola?” E explicou: “Quando um grão de poeira penetra numa ostra, esta defende-se da irritação provocada pelo agente agressor, através da segregação de uma substância que almofada a zona atingida, enquanto envolve a poeira, até à neutralização desta. Nesse momento, a pérola está concluída. Sem o sofrimento, nunca teria nascido.” Low, de igual modo, nunca teria nascido. Se, no lado A, não há a registar uma ruptura com o passado recente, mas apenas, a troca de Los Angeles por Berlim, como local de gravação – porquanto da primeira fuga séria de Bowie à cocaína se tratava – já o lado B tem a palavra ‘dor’ escrita da primeira à última espira, na qual, porém, já parece dar a vez a uma outra: ‘libertação’. Se bem que a ‘verdade’ apresente, como sempre, algumas ‘nuances’ em relação à ‘lenda’.

“Warszawa”, por exemplo, foi composto por Eno, com a ajuda do filho do produtor, Tony Visconti, enquanto Bowie se encontrava em Paris. Vale a pena conhecer a leitura de Pietro Leveratto: “A trama da música deixa entrever que a depressão é uma patologia que tem na falta de auto-estima um dos rastilhos que a fazem deflagrar da maneira dissimulada que conhecemos: não apenas as letras de todas as canções estão ligadas a temáticas de isolamento e dificuldade de enfrentar o mundo exterior, como o mesmo clima percorre, ainda, os temas instrumentais. Destes, ressalta ‘Warszawa’, homenagem à dor da cidade martirizada pela Segunda Guerra Mundial, que é uma trenodia¹ ctónica² e repleta de sombras.


¹ Canção, hino ou poema, no qual se chora a partida de alguém, ou o fim de alguma coisa, que nos era querido;
² Interior da terra, aos subterrâneos, ao que não está à vista. De lembrar que, por um lado, uma das partes de Low tem o título de “Subterraneans” e, por outro, Bowie estava a braços com uma profunda depressão. A secção referida da sinfonia seria uma incursão metafórica pelos ‘corredores’ dessa depressão.
Philip Glass – Symphony No.1: Low

 

 

Anos depois (1993), a música realizada por Eno e Bowie (1976/77) deu origem ao material trabalhado por Philip Glass para a sua primeira sinfonia. Nas mãos do compositor norte-americano, os temas ‘Subterraneans’, ‘Some Are’ e ‘Warszawa’ atenuam-se de forma sensível, ao passo que o clima emotivo torna-se mais próximo da reflexão que do mal-estar existencial, sentimento distante das cordas de Glass.” Glass não é Stockhausen. Glass somos nós, a assistir ao “11/9” pela TV. Percebe-se, com clareza, que Bowie desce às profundezas de uma depressão no lado B de Low. E que se liberta pela música.

 

Diz as tais incongruências e manifesta a incapacidade de comunicar, percorre os corredores subterrâneos mais sombrios (os do inconsciente), de onde sai – assim parece – de passada ainda insegura, até que o vigor regressa, acompanhado de gritos que sugerem que ‘já passou’. Para Glass, que não deve ser menorizado por isso, as 4 secções do lado 2 de Low são música bela, estimulante e inovadora. Dá vontade de lhe dar outra forma, de jogar com a sua dimensão, de testar a elasticidade da sua beleza, etc.. Mas Glass pouco além vai da sinfonia para o amante de música ‘clássica ligeira’.

 

 

John Adams – On The Transmigration Of Souls

 

 

Porque só teria rondado as profundezas do original se tivesse conhecido, e bem de perto, o estímulo de Bowie: a dor. E é por isso que a obra mais impressionante sobre os ataques a Nova Iorque vem do minimalista – da ‘escola original’ – de menor nomeada (apesar de autor da ópera Nixon In China), John Adams. On The Transmigration Of Souls (2002), além da sua ousadia formal e sonora, é o mais sério ensaio sobre a dor. De que só se podia ocupar quem viveu rodeado por ela. Por estar onde a tragédia aconteceu mas, sobretudo, por viver rodeado por quem perdeu o marido, o melhor amigo, o filho…