A Vinda de Brian

Parte 2

 


 

 Por Ricardo Saló

A admiração da nata da música

 

The Wrecking Crew, o grupo de estúdio, fez sempre uso do seu génio e, assim, excedeu o conceito de ‘máquina de música’. E, no entanto, em dez mil gravações, a Carol Kaye (a baixista) nunca lhe ocorrera o que Brian lhe propunha em “Good Vibrations”. Não admira que se mostrasse radiante quando alguém a informava de que o dia seguinte seria passado em estúdio com os Beach Boys.

Se a maioria do público não exigia mais que ‘fun’ dos irmãos Wilson, nunca faltou quem se apercebesse do ‘outro lado’ da invulgar dimensão criativa de Brian: alguém, por exemplo, capaz de encontrar em “Jesu, Joy Of Man’s Desiring”, de Bach, o motivo capital para o intróito (e não só) de “California Girls” – tida como a melhor introdução dos anos 60.

Se na rádio se falava sobre aqueles 22”, muita gente que comprou o disco deu por isso. Do cidadão anónimo a John Cale

 

Incluindo a do Krautrock: “We Love The Beach Boys”, lia-se na contracapa do disco mais aventureiro deste grupo, já de si, de vocação vanguardista.

 

Faust – “So Far” (1972)

 

Tique snob de um ‘bando de intelectuais’ (como quem jura adorar Abba, desde que essa confissão passou a valer um certo ‘pedigree’) ou a Prova de que, mesmo com o colapso do ‘Projecto Smile’, os irmãos Wilson e companhia nunca deixaram de cativar – pela singularidade de métodos e pela veia experimental – a ‘vanguarda europeia’?

Uma razão forte: “Getting Hungry” (como “Vegetables”), de Smiley Smile (1967).

 

The Beach Boys – “Gettin’ Hungry”

Outra prova maior de admiração veio de Ryuichi Sakamoto, que, no álbum Beauty (1989) conseguiu reunir em estúdio (encontro, contudo, virtual) Brian Wilson e Robert Wyatt para cantar Rolling Stones.

 

Ryuichi Sakamoto – “We Love You”

Pet Sounds (1966)

A Jóia da Coroa: “God Only Knows”

 

Carl Wilson foi, desde logo, considerado o detentor da voz ideal para dar expressão a este exercício extremo de adopção do estúdio como instrumento de composição e de elevação da música – em pé de igualdade com o Cinema – a nova ‘máquina de sonhos’ (como tal, e foi o caso, capaz de sugerir mundos sem existência real).

 

 

Não foi, apenas, a ideia corrente de ser dotado de ‘voz angelical’ que levou à escolha de Carl Wilson (secundado, a meio, por Al Jardine e Mike Love, e, na secção final, por Bruce Johnston e pelo autor) para protagonizar uma canção onde – embora numa acepção coloquial – figurava a palavra ‘Deus’.

Na verdade, a, até então, peça maior de Brian exigia uma voz capaz de suster um registo elevado até final. Outros que, venerando a canção, quiseram prestar-lhe homenagem pública tiveram, por vezes, que seguir por diferentes caminhos. Por exemplo, David Bowie, em 1984.

 

David Bowie – “God Only Knows”

 

Em 2007, quando da entrega de um galardão do Kennedy Center a Brian Wilson, a canção foi confiada a Lyle Lovett, figura de proa do renascimento country dos anos 80.

Não terá sido por mera cortesia que o grupo considerou esta como a melhor versão de sempre; mas Lovett, plenamente consciente de que o original não tem superação possível, disse do canto de Carl que ‘nem aos 8 anos de idade, eu conseguia cantar num tom tão alto; e mantê-lo até final estava fora de questão”.

 

Lyle Lovett – “God Only Knows” (2007 Kennedy Center Honors)

A Visita de George Martin

 

 

 

Certo dia, alguém bateu à porta de Brian. Era George Martin, produtor de sempre dos Beatles, que – tal como Brian, às portas da Terceira Idade – vinha tentar saber, da boca do autor, como fora possível tal milagre sonoro.

Depois, já podia morrer descansado. Brian – depois de, por instantes, se ter interrogado, com perplexidade, ‘então, e eu é que me fui abaixo, na época?’ – conduziu George ao estúdio e dispôs os elementos da gravação original na mesa de mistura.

 

A Peça Contestada: “I Know There’s An Answer”/ “Hang On To Your Ego”

 

Mike Love sempre foi o grande opositor de qualquer mudança que pusesse em causa um ‘som Beach Boys’ em harmonia com a ‘imagem oficial’ de surfistas (disciplina que só Dennis Wilson dominava e que de nada lhe valeu no momento em que pereceu por afogamento).

No regresso da longa jornada nipónica de 1966, e confrontado com as formas embrionárias, mas plenamente definidas, do projecto Pet Sounds, Mike – pensando, decerto, que ‘não se pode deixar este gajo sozinho’ – não perdeu tempo a manifestar que aquilo que se estava a ouvir era produto do ego ‘insuflado’ de Brian.

Quando deu de caras com uma canção alusiva ao ego (se bem que olhado como uma bóia em momentos de desespero), logo exigiu que a letra fosse alterada; caso contrário, não participaria na gravação do disco. Porque o grupo preservava a sua coesão e a complementaridade entre os seus elementos, assim foi feita a sua vontade.

E assim se chega ao clássico “Antes e Depois”.

 

A Peça Imposta: “Sloop John B”

 

Apesar do prazer auditivo que proporciona, não é difícil ficar-se com a impressão de que “Sloop John B” parece não pertencer ao mesmo (e tão sólido) cancioneiro.

De facto, o receio manifestado pela editora a respeito da escassez de potenciais ‘hits’ no álbum, bem como a incerteza sobre a reacção pública face a “God Only Knows” (que acabou, em single, remetido para lado B de “Wouldn’t It Be Nice”), fizeram despertar na editora a ideia de que o LP devia ter uma ponta evidente por onde se lhe pegasse.

É nessa altura que entra em cena uma canção de 1926/7, já proposta por Al Jardine, sobre o naufrágio, ocorrido ao largo da Jamaica, de uma chalupa, na qual seguia um pequeno grupo de gente em irremediável estado de embriaguez.

A canção nunca perdeu popularidade entre as gentes do mar, mas seria The Kingston Trio, em 1962, a fazer dela um êxito em pleno coração da modernidade.

O ‘affair’ The High Llamas

 

Foi Bruce Johnston – o elemento arregimentado pelos Beach Boys para ‘fazer as vezes’ de Brian Wilson nas digressões do grupo a partir de 1966 – quem deu o alerta: decorria o ano de 1996, quando se apercebera da existência de um grupo britânico chamado The High Llamas, cujo mais recente álbum, Hawaii, dava mostras de ter descoberto no sexteto californiano a sua grande fonte de inspiração.

Não sabia, ainda, Johnston que, no álbum Gideon Gaye, de 1994, o mesmo grupo havia incluido uma peça, “The Goat”, inteiramente inspirada em “Let’s Go Away For a While”, de Pet Sounds.

Nos anos 80, Sean O’Hagan tinha feito parte dos Microdisney – no plano criativo, o mais independente e um dos melhores grupos do ‘renascimento britânico’, de sinal revivalista, pós-Smiths.

 

Foi, curiosamente, o seu cúmplice e motor criativo de tão sublime aventura, Cathal Coughlan, quem lhe referiu as vantagens da audição integral, todos os dias ao despertar, de Pet Sounds. Desfeita a parceria em 1988, desde então que O’Hagan dirige, sem a menor quebra de entusiasmo, The High Llamas, o qual, ano após ano, tem vindo a apurar a sua leitura singular de uma estética pop-barroca – ‘sunshine’, animada pela dinâmica dos dias de hoje mas fiel ao modelo de Wilson.

Estabelecido o contacto, O’Hagan partiu ao encontro dos Beach Boys, na ilusão de concretizar o desejo mútuo da gravação de um álbum em conjunto. A sua intenção era a de contribuir para a revitalização de um grupo, cuja chama, apenas a espaços, iluminava a noite do Planeta. Apesar de ter privado, durante alguns dias, com Brian e de ter havido, mesmo, troca de ideias musicais, cedo O’Hagan compreendeu que, entre ambos, não existia empatia.

Fim do sonho.

Os Artífices do Sonho

 

The Wrecking Crew: já presente na quase totalidade das gravações de Phil Spector, este grupo de profissionais de estúdio é o responsável pela parte instrumental de Pet Sounds (no qual obedeceu às ordens estritas de Brian) e de outras peças marcantes da sofisticada ‘fase de estúdio’ como “California Girls”, “Good Vibrations” ou “Surf’s Up”.

Na verdade, o colectivo – no qual pontificavam ‘virtuosos com ideias’ como Glen Campbell (guitarra), Carol Kaey (baixo) e Hal Blaine (bateria) – definiu o som da pop branca norte-americana dos anos 60, na mesma medida em que The Funk Brothers (editora Motown, de Detroit), Booker T. & The MG’s e The Bar-Kays (editora Stax, de Memphis) e seus pares de Muscle Shoals (editora Hi, por exemplo) definiram o som da ‘Black America’.

Portanto, quem toca aqui?…

‘Virtuosos de Estúdio com Ideias’

 

Lê-se no parágrafo anterior. Se o que deviam tocar, para eles, não fazia sentido, não o tocavam. Mas tinham sempre uma ideia para contrapor. E não foram poucos os ‘flops’ que ajudaram a converter em ‘hits’. Como este ‘disco perdido’ que a genialidade de Carol Kaye converteu num ‘clássico’ dos anos 60.

Sobre A Dimensão de Brian Wilson

 

Carol participou numa infinidade de gravações. Em estúdio, lidou com todos os tipos de autores (ou intérpretes) e assim ficou a conhecer todos os graus de talento, de ‘ciência musical’ e de consistência do ‘ideal estético’.

O seu depoimento (bem como os dos demais intervenientes e a reacção de Glen Campbell) sobre as sessões de gravação de “Good Vibrations”, por ser genuíno e sério, é o mais merecido ‘happy end’.

Como o cumprimento de Brian (“she was way ahead of her time”) está muito para lá do cavalheirismo. E mostra como o génio admira, sempre, o génio.

 

[Ler A Vinda de Brian (Parte 3)]